Uma volta ao coronelismo

A Reforma Administrativa enviada pelo governo Bolsonaro ao Congresso Nacional é uma gravíssima ameaça ao que ainda resta de caráter republicano e democrático da Constituição de 1988. Apresentada como iniciativa indispensável para a eliminação de privilégios, correção de distorções e adaptação do funcionalismo público às exigências dos novos tempos, a PEC 32 pretende, na verdade, institucionalizar o apadrinhamento oligárquico, o patrimonialismo corporativo e a arbitrariedade das autoridades instaladas no poder como formas de funcionamento do Estado brasileiro 1

O objetivo precípuo dos governantes é acabar com o Regime Jurídico Único, que estabelece o marco legal da relação do funcionalismo com a administração pública. Entretanto, o projeto também abre a possibilidade de extinção ou modificação de autarquias e fundações por decreto simples da Presidência da República. E, para arrematar, de contrabando, introduz sorrateiramente no texto constitucional o preceito da obediência da “subsidiariedade” do Estado à iniciativa privada, inspirado na Carta del Lavoro de Benito Mussolini, determinando a primazia do capital como agente das políticas públicas, o que inverte completamente o espírito “cidadão” que regeu a vontade política que culminou com a convocação da Assembleia Nacional Constituinte 2.

Apoiado entusiasticamente pelo conjunto da burguesia, o projeto de Guedes e Bolsonaro leva às últimas consequências a privatização do Estado iniciada por Bresser Pereira e Fernando Henrique Cardoso. Sob pretexto de flexibilizar a capacidade do Estado de contratar, demitir e mudar a remuneração de sua força de trabalho, a PEC 32 determina o fim da estabilidade do funcionalismo para a grande maioria dos trabalhadores, a restrição de concursos públicos para ingresso na administração pública apenas às carreiras de Estado, o fim de benefícios trabalhistas dos servidores e a quebra da autonomia funcional das autarquias e fundações. Com a alegação de que o objetivo é diminuir gastos e aumentar a eficiência do setor público, a mudança proposta coloca o Estado mínimo – mínimo para fazer políticas públicas – como objetivo estratégico da sociedade. Entusiasmado, Rodrigo Maia prometeu aprovação meteórica.

Para dividir os trabalhadores, o governo anuncia que as novas regras só valerão para novos contratados. No entanto, os danos aos funcionários públicos como um todo e à sociedade de maneira geral serão devastadores e irreversíveis, pois as mudanças propostas comprometem irremediavelmente a própria natureza do serviço público e, como consequência, a própria capacidade do Estado de realizar políticas públicas. Trata-se em última instância de institucionalizar a subordinação formal do Estado aos imperativos dos grandes negócios.

A justificativa da contrarreforma administrativa é uma farsa. Seria preciso enxugar o Estado e eliminar privilégios dos servidores para diminuir o custo da folha salarial e melhorar a qualidade das políticas públicas. No cinismo desavergonhado de Paulo Guedes, a questão foi resumida aos seguintes termos: “o Estado custa muito e entrega pouco” 3. Uma balela que, de tanto ser repetida, ganhou foro de verdade indiscutível. Trata-se simplesmente de quebrar a autonomia do serviço público a fim de promover o rentismo que parasita na dívida pública e abrir caminho para a completa mercantilização das políticas sociais.

Considerando-se as enormes carências da população brasileira, por qualquer parâmetro que se queira examinar a questão, o gasto com o funcionalismo público encontra-se, na verdade, muito aquém do que seria necessário para atender às necessidades da população. O que de fato se encontra hipertrofiada é a sangria que as despesas financeiras do Estado representam para os cofres públicos. Mas tal informação é proposital e sistematicamente omitida do debate público.

Um estudo sobre a reforma administrativa preparado pela Instituição Fiscal Independente, órgão oficial do Senado Federal, chega ao cúmulo de afirmar em tom de alerta que “as despesas (com pessoal e encargos) são a segunda maior despesa do Governo Central, atrás apenas das despesas previdenciárias do INSS” 4. Por descuido, ignorância ou má-fé, o documento deixa de mencionar que as despesas com pessoal e encargos são a segunda maior despesa “primária” do Governo Central (o que, aliás, não deveria causar nenhuma surpresa, pois o serviço público depende basicamente de trabalho humano para o atendimento da população). 

No entanto, se fossem contempladas todas as despesas do Tesouro Nacional, não apenas as “primárias” mas também as “financeiras”, o centro das atenções seria deslocado para o problema da dívida pública. Em 2019, por exemplo, apenas os pagamentos de juros, amortização e refinanciamento da dívida pública responderam por 37% do total dos gastos do Tesouro Nacional (montante quase quatro vezes superior às despesas com pessoal e encargos de todo o funcionalismo brasileiro na ativa). 5

Comparados aos de outros países, os gastos com pessoal do setor público brasileiro não estão hipertrofiados nem em expansão descontrolada. Pelo contrário. A proporção de funcionários públicos no conjunto da população brasileira – 5,6% – é consideravelmente inferior à média dos países da OCDE – 9,5% 6. Na última década, mesmo com a retração da economia a partir de 2014, o custo da folha de pagamento do setor público manteve-se estabilizado em torno de 10% do PIB – percentual inferior à média dos países da OCDE. 7

O que realmente destoa na análise comparativa das finanças brasileiras em relação a outros países não é o gasto com pessoal, mas o montante absolutamente desproporcional das despesas com pagamentos de juros. Mesmo em comparação com as economias latino-americanas, que sofrem historicamente o garrote da dívida pública, a despesa com juros da dívida interna do governo federal brasileiro foi em 2018 e 2019 o dobro da média dos países da região, ficando acima de 5% do PIB (praticamente a metade de todo o gasto com pessoal do Estado brasileiro).

Ao contrário da retórica moralista que apresenta a investida contra os servidores públicos como um meio de combate a privilégios, quando quase 60% dos trabalhadores do setor público ganham menos de quatro salários mínimos, os marajás do setor público não serão afetados pela PEC 32. Magistrados, parlamentares e militares, que ganham salários estratosféricos e gozam de privilégios aberrantes, permanecerão incólumes.

A investida do governo contra o funcionalismo não resolverá nenhum dos problemas da administração pública brasileira. Para tanto, seria necessário levar às últimas consequências o caráter democrático e republicano do Estado. A PEC 32 caminha em sentido oposto. A contrarreforma administrativa é um assalto à coisa pública e deve ser combatida a ferro e fogo pelo conjunto da classe trabalhadora.

A responsabilidade imediata pela oposição ao projeto neoliberal de reforma administrativa cabe aos servidores públicos federais, estaduais e municipais, que serão diretamente atingidos pelos ataques a seus direitos e a sua profissão, sobretudo os trabalhadores da educação, saúde e assistência social. Cabe também aos trabalhadores das autarquias e fundações – IBAMA, ANVISA, FIOCRUZ, Universidades Federais –, que podem desaparecer do dia para a noite. Mas a oposição à contrarreforma não pode ficar restrita à luta corporativa. A defesa da Res Publica é uma obrigação de todos os brasileiros que dependem de políticas públicas para uma vida digna.

A julgar pelo silêncio ensurdecedor dos partidos que compõem a esquerda da ordem, PT à frente, o futuro do serviço público dependerá única e exclusivamente da voz das ruas. Daí a importância crucial do Dia Nacional de Luta em Defesa dos Serviços Públicos convocado pelo Fórum das Entidades Nacionais dos Servidores Públicos Federais. No 30 de setembro, todos às manifestações públicas e virtuais contra a mercantilização da vida e em defesa de serviços públicos gratuitos e de qualidade. A Contrarreforma Administrativa é um engodo! Fora Bolsonaro e Mourão! Fora Guedes e Rodrigo Maia! Pelo não pagamento da dívida Pública! Pela tributação da grande riqueza! Por uma outra política econômica!

Contrapoder, 28 de setembro de 2019

Referências

  1. Para um resumo das medidas da PEC 32 e sua crítica pontual, ver Dieese, “Subsídio para debate: Governo Bolsonaro e Reforma Administrativa”, 09/09/2020. Ver: https://www.dieese.org.br/outraspublicacoes/2020/sinteseEspecialReformaAdministrativa.html
  2. Consultar artigo de Gilberto Bercovici, “A administração pública dos cupons”, in A Terra é Redonda https://aterraeredonda.com.br/a-administracao-publica-dos-cupons/
  3. O diagnóstico que fundamenta a contrarreforma administrativa enviada ao Congresso Nacional foi elaborado pelo Banco Mundial no documento “Gestão de pessoas e folha de pagamentos no setor público brasileiro. O que dizem os dados?” ver: https://bit.ly/3n2tOM3
  4. Instituição Fiscal Independente, “Retrato das despesas de pessoal no serviço público federal civil. Parte 1”, 23/12/2019. ver: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/566654/EE11.pdf?sequence=4&isAllowed=y
  5. Ver “Tesouro Nacional Transparente”, https://www.tesourotransparente.gov.br/temas/contabilidade-e-custos/relatorio-resumido-da-execucao-orcamentaria-rreo-uniao
  6. Banco Mundial, “Gestão de pessoas e folha de pagamentos no setor público brasileiro. O que dizem os dados? ver: https://bit.ly/3n2tOM3
  7. Ver, respectivamente, IPEA, Mapa do Estado Brasileiro: Três Décadas de Evolução do Funcionalismo Público no Brasil – 1986-2017″; e European Central Bank, Occasional Paper Series, No. 112, June 2010 em: https://www.ecb.europa.eu/pub/pdf/scpops/ecbocp112.pdf?eb3d92697c5237c0269739cc52243a94

Um comentário sobre “Uma volta ao coronelismo

  • 28 de setembro de 2020 at 11:47 pm
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    De fato. Desta forma vão acabar com o funcionalismo público brasileiro, do qual todos nós dependemos. Por outro lado, consolida no poder uma elite que só visa saquear o país.
    Ótimo texto. Esclarece muito acerca da conjuntura sobre a Pec 32.

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