Entrevistamos o professor Áquilas Mendes sobre a situação do SUS, principalmente em relação ao financiamento, e a preparação do Sistema Único de Saúde para enfrentar a pandemia do Covid-19.
Áquilas Mendes – Prof. de Economia Política da Saúde da FSP/USP e do Programa de Pós-Graduação em Economia Política da PUC-SP
Contrapoder: O SUS está preparado financeiramente para enfrentar a crise do coronavírus?
Áquilas Mendes: O SUS não apresenta condições financeiras para enfrentar essa crise. Na realidade, o SUS tem uma história de subfinanciamento ao longo de sua existência de 32 anos. Este tem sido um dos problemas centrais ao longo de sua implementação. Alguns dados esclarecem isso. Para se ter uma ideia, em 2019, o Orçamento da Seguridade Social foi de R$ 752,7 bilhões, se destinados 30% à saúde, como previsto na Constituição de 1988 e nunca cumprido, considerando os gastos do governo federal, corresponderiam a R$ 225,8 bilhões. No entanto, a dotação empenhada foi de R$ 122,3 bilhões. Trata-se de uma dotação muito aquém do estabelecido há quase trinta anos passados. Além disso, o reduzido esforço do gasto em “ações e serviços de saúde” na proporção do PIB, realizado pelo Ministério da Saúde, tem sido mantido o mesmo entre 1995 a 2019, sendo 1,7%, enquanto o gasto com juros e encargos da dívida representou, em média, no período, 6,6%. Já, ao se analisar o gasto total do SUS, em 2019, tem-se 3,9% do PIB (União – 1,7%, estados – 1,0% e municípios – 1,2%), enquanto o gasto público em saúde na média dos países europeus com sistemas universais correspondeu a 8,0%. A partir desses dados podemos perceber que o SUS nunca foi tratado como prioridade pelos governos em exercício desde sua implantação. Ao contrário, o que se constata é a fragilidade financeira do seu financiamento por meio de insuficiência de recursos e do baixo volume de gasto com recursos públicos.
Contrapoder: Qual o hiato de recursos para que o SUS desempenhe suas funções adequadamente?
Áquilas Mendes: Como já dissemos, o SUS precisaria de um gasto total (União, estados e municípios) correspondente a 8% do PIB para responder à universalidade, como os demais sistemas universais de saúde. Isto significaria, em 2019, o montante de R$ 595 bilhões. Na realidade, foram alocados apenas R$ 290,0 bilhões, somados governos federal, estaduais e municipais.
Contrapoder: De onde poderiam vir tais recursos?
Áquilas Mendes: De forma mais geral, háduas medidas importantes que deveriam ser revogadas para termos mais recursos para o SUS: a Emenda Constitucional n. 93/2016 e a EC n. 95/2016, que congelou o gasto público por 20 anos. A primeira diz respeito à Desvinculação das Receitas da União (DRU) – criada desde 1994 e em vigor até 2023 que retira 30% do total das receitas do Orçamento da Seguridade Social (OSS) – formado pela saúde, previdência e assistência social – (EC 93), com a finalidade de serem destinadas ao pagamento de juros da dívida, em respeito à já histórica política econômica do governo federal de manutenção do superávit primário, sob as exigências do capital portador de juros (capital financeiro) dominante na fase contemporânea do capitalismo. Para ser ter uma ideia, do período mais recente, a subtração de recursos da Seguridade passou de uma média de R$ 63,4 bilhões, entre 2013 e 2015, para R$ 99,4 bilhões, em 2016, R$ 113 bilhões, em 2017 e R$ 120 bilhões, em 2018 (dados da ANFIP). Entre 2005 e 2016, o superávit médio anual do OSS foi de R$ 50,1 bilhões. Por sua vez, nesse mesmo período, o valor médio de recursos desviados da Seguridade Social afastados pela DRU foi de R$ 52,4 bilhões, ou seja, da mesma ordem de grandeza da média dos superávits da Seguridade no mesmo período. Então, fica claro para todos que sem a DRU, a exposição pública dessa sobra de recursos incentivaria o aumento da aplicação de recursos na Saúde, entre as outras áreas.
Bem, a segunda medida importante para direcionar recursos para o SUS seria a revogação da EC-95.
Contrapoder: Sabemos que a saúde vem sofrendo sucessivos cortes, quais foram os impactos da EC95 até o momento?
Áquilas Mendes: Antes de mais nada, é importante esclarecer que com a vigência da EC 95 o subfinanciamento histórico do SUS, que já vinha determinando um patamar insuficiente, conforme já mencionado, passa a um processo de desfinanciamento descendo gradativamente seu valor em relação à arrecadação. Isto porque, para a saúde, a mudança da regra do piso federal significou congelar o parâmetro de aplicação mínima no valor monetário correspondente a 15% da Receita Corrente Líquida (RCL) de 2017, atualizado anualmente tão somente pela variação do IPCA/IBGE, até 2036.
A perda de recursos para o SUS desde 2018 já atingiu o patamar de R$ 22,5 bilhões. De forma detalhada, observa-se uma queda de R$ 4,0 bilhões, em 2018, de R$ 13,6 bilhões em 2019 e R$ 4,9 bilhões em 2020 (orçamento anual). Esses recursos perdidos poderiam contribuir para o enfrentamento do coronavírus. Mas, como todos sabemos, a revogação da EC-95 nem tem sido cogitada pelo governo Bolsonaro.
Após quase 75 dias de pandemia, as medidas do governo, em termos de aportar recursos financeiros para enfrentar o coronavírus foram muito pequenas. Foram realizadas duas medidas apenas: 1) um remanejamento interno do orçamento do MS de cerca de R$ 5,0 bilhões, sendo que 96% deste valor decorreu da retirada de recursos das “subfunções” ‘Atenção Básica’ e da ‘Assistência Hospitalar e Ambulatorial’, alocadas para outras necessidades de saúde ao período anterior do coronavírus; 2) o estabelecimento da Medida Provisória 940 de 2 de abril em que ficou acrescido ao orçamento do MS R$ 9,4 bilhões, o que corresponde a 7,5% do total alocado para esse Ministério em 2020. Sabe-se que esse último valor é totalmente insuficiente para assegurar a guerra contra o Covid-19.
Contrapoder: Como a política de mercantilização da saúde das últimas três décadas afetou a capacidade financeira do SUS? Existem diferenças substanciais entre as políticas de FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro?
Áquilas Mendes: As políticas de mercantilização da saúde tiveram uma continuidade ao longo de todos os governos FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro. Não faltaram incentivos desses governos federais, nessa longa trajetória, para que a saúde privada crescesse significativamente no decorrer das décadas de 1990, 2000 e 2010. Por sua vez, quando se compara o gasto público total com saúde (União, estados e municípios) e o gasto privado em relação ao PIB, praticamente no mesmo período, verifica-se a intensidade do crescimento do privado em relação ao público. Para se ter uma ideia, em 1993, o gasto público foi de 2,8% do PIB e o Privado de 1,4% do PIB; em 2002, ambos cresceram, sendo 3,2% e 3,9%, respectivamente. Observa-se que o gasto privado ultrapassa o público em relação ao PIB, especialmente nos governos do FHC. Em 2015, o gasto público correspondeu a 3,9% do PIB e o gasto privado a 5,2% do PIB. Fica evidente o aumento mais significativo do gasto privado no decorrer dos anos de existência do SUS.
Assim, de forma geral, trata-se de reconhecer a fragilidade financeira do seu financiamento por meio de insuficiência de recursos e do baixo volume de gasto com recursos públicos; de indefinição de fontes próprias para a saúde; de ausência de maior comprometimento do Estado brasileiro com alocação de recursos e com melhor distribuição de recursos no interior do Orçamento da Seguridade Social (saúde, previdência e assistência social); das elevadas transferências de recursos ao setor privado via recursos direcionados as modalidades privatizantes de gestão (OSs, Oscips, Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – Ebserh e Fundações Estatais Públicas de Direito Público/Privado com contratos celetistas).
Por sua vez, não adianta apenas pleitear a proibição de privatizações e de terceirizações na saúde se não alinhar essa discussão à extinção do limite com gasto em pessoal da saúde na Lei de Responsabilidade Fiscal (n. 101/2000, artigo 18) que impede a contratação pela administração direta de trabalhadores na área da saúde. Sabemos que essa Lei implantada pelo governo FHC não sofreu oposição pelos governos do PT e nem pelos governos após o golpe de 2016. Trata-se de mais um artifício que drena recursos para formas privadas de vínculos trabalhistas.
Especificamente, as medidas implantadas no país, por meio do tripé macroeconômico ortodoxo – metas de inflação, superávit primário e câmbio flutuante -, adotadas pelo governo federal desde o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) até o Governo Dilma Roussef, vêm envolvendo a redução de recursos direcionados ao nosso sistema de proteção social. É possível admitir que nenhum desses governos atribuiu prioridade à saúde como política social de direito. De maneira intensificada, nos governos Temer e Bolsonaro, a lógica da política econômica se manteve e constatam-se diversas medidas que vêm sendo impulsionadas, de forma crescente, no sentido de direcionar a saúde para o livre mercado.
Contrapoder: Seria o momento de suspender o pagamento da dívida pública para priorizar a emergência sanitária?
Áquilas Mendes: Somos totalmente favoráveis à suspensão do pagamento da dívida pública para enfrentar a fragilidade do financiamento do SUS nesse contexto da grande crise capitalista, acrescida pela crise do coronavirus. Como se sabe, há 12 anos estamos assistindo a uma crise econômica capitalista, que pode ser denominada como um período de “longa depressão”, que foi despontada desde o crash de 2007-2008 e seguiu-se agravando até 2020, com sinais claros de uma recessão. Nesses anos, as economias capitalistas vêm reunindo baixo investimento e reduzido crescimento da produtividade, provocados, especialmente, pela queda da taxa de lucro dos setores produtivos e um aumento gigantesco da especulação financeira (capital fictício), como resposta à essa situação. Inclusive, aqui no Brasil, essa desaceleração da economia tem se mostrado de forma contundente, em que são 6 anos de estagnação, sendo dois anos de PIB negativo, 2014 (0,5%), 2015 (-3,5%) e 2016 (-3,3%), seguidos dos decepcionantes resultados de 2017 (1,3%), 2018 (1,3%), 2019 (1,1%). A crise econômica capitalista tem impacto violento sobre a economia brasileira. E, nesse momento de intensificação dessa crise com o problema do coronavirus, necessitamos de medidas emergenciais substantivas. De acordo com a Auditoria Cidadã da Dívida, assistimos a um crescimento vertiginoso de 9,5% da dívida pública em 2019, correspondendo a 56% do PIB, tendo realizado um pagamento com juros e encargos dessa dívida de R$ 478,0 bilhões, isto é, quase 4 vezes a mais que o valor empenhado para ações e serviços públicos em saúde (R$ 122,3 bilhões). Desse modo, a crise atual é gravíssima e coloca nossa economia à deriva, sem um poder de comando responsável para conduzi-la, com contrarreformas do governo Bolsonaro que só têm feito agravá-la e maquiá-la como sendo uma crise provocada pelo coronavírus. Na realidade, poderíamos dizer que esse vírus expõe, ainda mais, a crua face do capitalismo contemporâneo.