“Casa à Venda” – Entrevista com a autora

Entrevista publicada no site da editora Lutas Anticapital

O livro está a venda aqui.


Entrevista com a Profa. Dra. Aline Miglioli (IE – Unicamp) sobre seu livro “Casa à Venda”

O livro “Casa à Venda” aborda a abertura do mercado de imóveis em Cuba a partir de 2011. Por que esse tema é relevante na sua opinião?

Historicamente, a questão habitacional sempre foi uma demanda popular em Cuba, e o governo revolucionário a enfrentou de maneira radical. Para erradicar a crise que fazia com que os cubanos pagassem aluguéis altíssimos, o Estado estatizou todo o parque habitacional e assumiu a responsabilidade pela construção de novas moradias. A partir desse momento, cada família passou a viver na casa que ocupava na época da Revolução, sem a possibilidade de trocá-la, a menos que entrasse na fila para conseguir uma nova moradia.

Com o tempo, essa fixação no espaço gerou um descompasso com as transformações na vida das pessoas. Famílias cresceram ou diminuíram, surgiram novos núcleos familiares, empregos foram mudando de lugar, mas a moradia permanecia a mesma. Para tentar resolver essa limitação, criou-se um sistema de intercâmbio de moradias, a permuta, onde as famílias podiam trocar de casa, mas apenas por outra de características semelhantes. O problema é que isso não atendia a necessidade real de alguns grupos, que precisavam de moradias maiores ou menores.

Quando Raúl Castro assumiu o governo, abriu um amplo debate sobre a atualização das políticas econômicas e sociais, e a possibilidade de compra e venda de imóveis emergiu como uma demanda popular, os Lineamientos. O Decreto-Lei 288, aprovado em 2011, autorizou a comercialização de moradias, mas com algumas restrições para evitar uma volta à especulação imobiliária. Entre as limitações impostas, destacam-se a propriedade limitada a uma moradia por pessoa e a permissão de venda apenas de residências secundárias, mantendo o Estado como o único grande produtor de moradias.

Estudar esse mercado em formação, entender como se estabelecem os preços e de que maneira os agentes interagem nos ajuda a compreender muito mais sobre a sociedade cubana contemporânea. Por isso, considero o tema tão relevante.

De que forma esse debate se cruza com o turismo em Cuba?

Durante a minha pesquisa sobre a conformação desse mercado imobiliário, ficou evidente a forte conexão com o turismo. O elo entre os dois se dá por meio de uma figura central na economia cubana pós-Período Especial: o cuentapropista, ou trabalhador autônomo, que pode exercer atividades por conta própria e, em alguns casos, até empregar outras pessoas.

Esse tipo de trabalho surgiu nos anos 1990, quando o colapso da União Soviética e o endurecimento do bloqueio econômico obrigaram o governo cubano a buscar formas alternativas de geração de renda. Assim, foram criadas algumas ocupações flexíveis, como donos de restaurantes, manicures, alfaiates, entre outras, atividades que antes eram exclusivamente estatais.

Com o crescimento do turismo, muitos desses trabalhadores passaram a prestar serviços para os visitantes estrangeiros, o que lhes permitiu acessar moedas fortes, como o dólar, durante um período de extrema polarização econômica no país. Como não havia estabelecimentos comerciais para alugar, essas atividades começaram a ser incorporadas ao espaço doméstico. Foi assim que restaurantes passaram a funcionar dentro de salas de estar, e que o aluguel de quartos ou apartamentos inteiros no modelo Airbnb se tornou uma prática comum.

Quando o mercado imobiliário foi oficialmente aberto, percebi que muitas transações estavam diretamente ligadas a essa lógica de uso comercial das residências. Por isso, passei a chamar esses imóveis de casas-negócio: não são necessariamente espaços comerciais, mas possuem uma função econômica clara dentro da casa e da dinâmica familiar.

A análise dos padrões de compra revelou algo interessante: havia uma forte preferência por casas construídas antes da Revolução, localizadas no centro da cidade e, de preferência, no térreo. Esses fatores indicavam que as moradias estavam sendo adquiridas com um propósito específico: facilitar atividades econômicas vinculadas ao turismo. Assim, os preços nessas áreas se tornaram mais altos, não necessariamente pela qualidade da infraestrutura dos imóveis, mas pelo potencial de geração de lucro que eles possibilitavam.

O que esse processo nos conta sobre a Revolução Cubana?

Embora minha pesquisa esteja focada em um processo bastante específico e em um período curto – analisando o mercado imobiliário de 2023 até 2020 –, ela se insere em um fenômeno mais amplo da Revolução Cubana contemporânea: o surgimento de distinções sociais dentro do projeto político igualitário cubano. 

A base dessas diferenças está na capacidade de consumo dos trabalhadores autônomos, mas o fenômeno vai muito além da economia. Ele atravessa o espaço urbano, provoca tensões políticas e reflete os debates sobre os rumos que a Revolução pode seguir.

A questão da desigualdade é um desafio para o modelo cubano, já que suas políticas sempre foram pautadas na universalidade e na limitação da acumulação privada. Ainda não podemos afirmar com certeza se esses cuentapropistas – que, durante a pandemia, passaram a ter status de pequenas e microempresas – estão de fato acumulando capital. No entanto, eles se diferenciam socialmente do restante da população e desafiam a eficiência das políticas universais.

No espaço urbano, essa distinção social se reflete em uma nova camada de desigualdade espacial. A Revolução tentou eliminar as diferenças sociais, mas nem sempre conseguiu. Alguns bairros, por exemplo, já eram considerados mais valiosos devido à infraestrutura histórica acumulada, como o Vedado, que concentra equipamentos culturais importantes, além de ter sido historicamente um bairro das elites. Durante o Período Especial, a abertura ao turismo e ao capital estrangeiro reforçou a valorização dos espaços associados ao turismo, criando áreas com maior dinamismo econômico e portanto, com maiores opções de emprego, principalmente no setor cuentapropista. 

Com a liberalização do mercado imobiliário, surge um novo elemento: a possibilidade de mobilidade. Agora, aqueles que podem escolher, seja porque tem acesso à divisas ou porque trabalham nos setores emergentes da economia, buscam bairros que oferecem mais oportunidades ou que têm um valor social mais elevado. Isso adiciona uma nova camada de desigualdade, pois não se trata apenas da infraestrutura disponível, mas da capacidade de certas pessoas de se movimentar e ocupar os espaços mais valorizados.

Claro, essas tendências são mais perceptíveis em Havana. No interior do país, esse processo é bem mais atenuado. Além disso, essas dinâmicas não ocorrem sem resistência. Ao longo do livro, mostro como o Estado tenta regular esses fenômenos, criando mecanismos para frear ou minimizar seus efeitos, como o aumento na arrecadação de impostos sobre determinados setores ou espaços urbanos. 

Mas no final do livro, você menciona que esse movimento sofreu uma reviravolta. O que aconteceu?

Exatamente. Cuba, assim como muitos outros lugares, passa por mudanças muito rápidas. Durante a pandemia, um dos principais motores desse fenômeno – o turismo – foi severamente impactado.

Na verdade, essa crise começou antes, em 2017, com a posse de Donald Trump. Seu governo impôs restrições severas ao turismo em Cuba, afetando principalmente os cruzeiros e as visitas de cubano-americanos. Com a redução do fluxo turístico, o setor de trabalhadores autônomos também perdeu força, e, consequentemente, o mercado imobiliário esfriou.

Agora, Cuba enfrenta um novo desafio: a unificação monetária e a forte restrição à entrada de divisas estrangeiras agravaram a inflação, desencadeando uma nova onda migratória desde 2021. Ao que tudo indica – e isso ainda precisa ser mais bem investigado –, aqueles que tiveram mais acesso a reservas e bens de consumo foram os que conseguiram emigrar. Isso resultou em um fenômeno curioso: casas vazias nos bairros mais valorizados de Havana, que agora estão sendo ocupadas por migrantes do oeste do país, com dinâmicas e valores muito diferentes daqueles que dominavam o mercado imobiliário antes da crise.

Isso abre um novo campo de pesquisa, reforçando que estudar Cuba significa sempre enfrentar novos desafios teóricos, políticos e sociais. A ilha nos oferece um campo de investigação em constante movimento, que exige um olhar atento e flexível para captar suas transformações.


Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *