Entrevista com Juan Carlos La Rosa Velazco

Na sexta parte do dossiê As derivas da Venezuela: deterioração do processo bolivariano, Raúl Zibechi e Silvia Adoue entrevistaram Juan Carlos La Rosa Velazco, Kekisai, militante, educador, comunicador, investigador. Povo Kaketí, Organização Kainjirawa-UAIN. Experiência Territorial El agua nos une, Bacia de Tuy.

Você pode acessar o dossiê completo aqui:


Dossiê Venezuela – Raul Zibechi e Silvia Adoue: As condições de vida do povo venezuelano vêm se deteriorando ano após ano. Isso tem levado um crescente número de trabalhadores a empreender o caminho da migração. No exterior, vemos venezuelanos, muitos deles com qualificação, aceitar empregos mal pagos e situações e situações legais incertas e com risco. De sua perspectiva, que levou tantos venezuelanos a desistir de permanecer em seu território?

O Estado venezuelano, nos últimos 15 anos, teve o sobre ingresso  petroleiro mais alto, pelo menos 12 vezes maior que o sobre ingresso histórico do quinquênio 1974-1979, por um período mais prolongado. A estimativa mais conservadora indica 970 bilhões de dólares distribuídos em 17 anos. A essas cifras é preciso acrescentar os ingressos pela via do endividamento externo.

Em 1975, alguns, como Alfredo Maneiro e seu grupo de trabalho de então, dissidentes do Partido Comunista de Venezuela (PCV), e Juan Pablo Pérez Alonso, desenhador do sistema da Organização de Países Produtores de Petróleo (OPEP), advertiram, sobre o ingresso petroleiro, que pervertia a alma nacional, e recomendaram uma redução da produção na medida de um crescimento assimilável industrial e culturalmente. Ninguém os ouviu e apenas se lembram os documentos em que se argumentava aquela advertência.

Assim aconteceu. Foi uma época em que o sobre ingresso competia com o endividamento, a classe média surgida desse sobre ingresso, de empregados bem pagos e investimentos periféricos à produção petroleira, corruptos, apoderaram-se da cidade de Miami, nos EUA e a fizeram crescer. Criaram seu próprio sonho americano para ir de visita e consumir dispendiosamente. Paradoxalmente, a pobreza e o investimento social mantiveram seus índices permanente, ainda que nas maiorias também persistia a sensação de bonança.

No período chavista, já desde 2005, desapareceram os índices e a opacidade estatística do Estado tornou-se norma, junto a outras opacidades com relação a todas as políticas e manejos financeiros do Estado venezuelano.

Com a queda dos preços do petróleo, todo veio abaixo em 2014. Fez que o ingresso constante de aproximadamente 50 bilhões de dólares anuais passara a 10 bilhões de dólares anuais. O deterioro desse ingresso foi resultante da falta de capacidades de produção. Devido à clara ausência de políticas de manutenção, continuou baixando essa estimativa.

Na linguagem coloquial, já essas cifras, contrastadas com o acelerado deterioro da qualidade de vida dos habitantes, supõem já uma pilhagem a todos os níveis da indústria e da execução de políticas públicas do Estado venezuelano, com especial ênfase nas políticas sociais, da política social alimentaria, baseada na importação de alimentos com dólares preferenciais outorgados pelo Estado, saíram os corruptos mais escandalosos.

Não há uma correção da pilhagem que aconteceu no sobre ingresso e a crise pariu uma pilhagem em todos os níveis e um assédio mortal sobre os territórios e as soberanias sociais que se mantêm em pé.

A administração Maduro, quem, à morte de Chávez, teve que administrar uma economia recessiva, não mudou a lógica administrativa e persiste no modelo nefasto praticado por seu antecessor, se endividando ainda mais e carregando os custos da recessão nas maiorias empobrecidas.

A fome é um sinal oculto sobre o consumo desequilibrado de carboidratos. A dolarização da economia no centro do país vai da mão com o uso de divisas de países vizinhos em todos os estados fronteiriços, inclusive nos estados centro ocidentais como Barinas e Lara. No sul, a moeda é o gramo de ouro e é território de venezuelanos escravizados pelos grupos irregulares que extraem ouro e outros minérios.

É cada vez mais evidente que o dinheiro com que nos sustentamos na rua provém de negócios irregulares, como ouro, outros extrativismos, o uso do território e as costas venezuelanas para a narcoindústria e o narcotráfico. O contrabando de extração de sucata e outros negócios em mãos do crime organizado, hibridado com os corpos de segurança do Estado.

Numa reunião indígena no Cauca colombiano, uma trabalhadora social que foi minha guia está desconcertada porque todo indicava desnutrição nos venezuelanos migrantes atendidos por um programa do qual fazia parte, por pouca ingestão de alimentos ou por ausência de equilíbrio na dieta. E, ao ser entrevistados, diziam que migravam, a pé desde a fronteira venezuelana em direção ao sul da Colômbia, porque não podiam já viajar com frequência, comprar artigos suntuários. O estudo perdeu sentido para as maiorias.

Ninguém se reconhece ainda na fome venezuelana. Tal é a tragédia cultural de um país com uma renda milagrosa ao serviço do consumo dos países desenvolvidos.

Fiquei muito sério ao responder para ser um simples militante. As razões dessa migração de milhões de venezuelanos, a maior e significativa da história disto que chamam Venezuela, se aclara em nossos corpos, os mesmos corpos que perderam peso e o recuperaram com baixa qualidade no consumo, os corpos que recebem uma sacola “clap” (Cesta básica) que evidencia o desprezo e a humilhação em seu conteúdo, em sua periodicidade e na redução de nossas vidas a uma lista descuidada que não nos pergunta nem quantxs filhxs, nem quantxs anciãxs moram em nossa casa, nem se temos alguma pessoa doente, se tem algum jovem atleta na família. Esses mesmos corpos alimentados como descarte sabem que quem nos vendem a baixo custo essa sacola de alimentos, a compram de novo ou a trocam para voltar a vender para a gente. Sabem nossos corpos que, com importação desses alimentos, sem fiscalização da qualidade sanitária ou nutricional, enriqueceram-se rapidamente os corruptos mais vergonhosos da história. São esses corpos femininos e adolescentes os que são solicitados para o tráfico de pessoas nos países vizinhos por grupos irregulares. São os mesmos corpos que recebem as balas na cara, pela violência policial e dos bandidos.

Nossos corpos violados sabem que a guerra econômica é uma ficção que esse governo e esse Estado, se fez funcional à pilhagem definitiva, por isso se sustenta sem necessidade de votos e com a carícia oculta de seus supostos inimigos.


Dossiê Venezuela – Raul Zibechi e Silvia Adoue: O processo iniciado em Venezuela sob direção de Hugo Chávez prometia superar a dependência da exportação de petróleo com todas as mazelas históricas resultantes de tal dependência. Para isso, propunha-se, entre outras medidas, a reforma agrária, que seria base da soberania alimentaria. Porém, um quarto de século depois, a dependência da exportação de petróleo e também de outros minérios parece ter se intensificado. E continuam importando produtos de primeira necessidade. Como explica esses fatos?

Chávez foi um grande caudilho, do nível de Antonio Guzmán Blanco[1], tão irresponsável e corrupto como ele. Desde o começo, de uma vocação autoritária inocultável. Apesar do entusiasmo que despertou sua chefia em nós, povos recolonizados, em nossa rebeldia, pela sedução do caudilho e a lança em nossas mãos.

A última reforma agrária aconteceu em 1959. Chávez jamais propôs uma reforma agrária. De fato, nunca usou essa denominação, apesar de sua irresponsabilidade verbal.

A lei de terras e desenvolvimento agrário tem seu nó de compreensão na proscrição do direito a recuperar terras ociosas por iniciativa do movimento camponês. Se você ocupa a terra que reclama e começa a produzir, perde o direito a ela de forma definitiva e é sancionado.

Outorgaram-se cartas agrárias e certificações, mas de forma proselitista e clientelar, para mostrar uma vitrine e sob a mediação agora legal de funcionários do INTI[2], que, com honrosas exceções de militantes sociais, preferiam vender as cartas agrárias e os certificados de terras produtivas a terratenentes que honrar os camponeses em luta pela terra. Na reforma mais recente de outorga de títulos agrários, os tribunais agrários ditaram sentencias de despejo a milhares de camponeses com cartas agrárias, aproveitando erros na gestão de transição de títulos agrários. Conheço o caso de Zulia, a mãos de Billy Gazca, da “tribo” judicial dos Rincón, que em tempos de Chávez foram os primeiros donos da justiça venezuelana, a reforma da lei de terras foi um grande negócio para essa “tribo” ou máfia judiciária. Os despejos sentenciados foram violentos e executados por grupos irregulares com a assistência da polícia.

O estado expropriou prédios de grande tamanho que, paradoxalmente, eram, no sistema do latifúndio, os mais produtivos. O governo os usou como vitrines e os espoliou. Talvez tenha sido uma das evidências mais vergonhosas da falsa reforma agrária chavista.

Tem algum sentido que funcionários incapazes mandados desde Caracas administrassem aquela pilhagem? Enquanto isso aconteceu, 400 camponesxs foram assassinados em operativos de despejo e em ações de execuções pelos corpos de segurança do Estado ou por membros dos mesmos agindo de maneira privada.

A importação era inevitável e era o negócio mais rentável, já que o controle do câmbio permitiu a política de dólares preferenciais para importações de interesse social e estratégico para o país. O mecanismo de outorga de divisas preferenciais chamou-se Cadivi.

Desde esse momento, o negócio era obter essas divisas e tirá-las do país, comprar o que tinha sido acordado. Colocá-lo no país nas mãos que o acordo indicava não era importante. Os funcionários de Cadivi foram vorazes no cobro de comissões. Foi o momento de contêiners nos portos com alimentos em estragados, pois tinham sido esquecidos. Os importadores foram para Brasil, Uruguai e Argentina para comprar abatedouros e fazendas, gado de descarte pago como novo, por desconhecimento ou por negócio.

Em Valencia e Maracay havia e há escritórios de advogados que vendem empresas novas, prontas para importar com as licenças prontas. O preço oscila segundo a capacidade de importação que se queira ter.

Às vezes me pergunto se os camponeses devemos ter vergonha disto. E digo o que diz um velho da comunidade: eles são de Venezuela, nós somos de outros países sem nome.

Por último, a Lei de Terras foi aprovada em dezembro de 2001, em pleno auge inicial da popularidade do governo Hugo Chávez. Aprovou-se junto com outras 48 leis especiais (feitas por decreto e com maioria simples na Assembleia Nacional) que prometiam mudanças radicais a partir da nova constituição, mas ninguém conseguiu lê-las antes de sua aprovação, não houve debate social, apenas imprecações mediáticas do Presidente, em plena polarização e com os pecuaristas queimando o decreto, todo parecia claro e suficiente. Hoje sabemos que todas essas leis tinham seu “guardao”, seu nó de compreensão que evidenciava que não eram para os povos, e sim para os interesses corporativos dos novos administradores da pilhagem.


[1] Caudilho de mais relevancia do último quarto do século XXI em Venezuela, presidente durante três mandatos.pr

[2] Instituto de Terras.


Dossiê Venezuela – Raul Zibechi e Silvia Adoue: Outra promessa, que também atraiu a atenção entusiasta dos povos do continente, foi a de superar as formas tradicionais do exercício do poder pelas vias representativas e passar ao exercício da democracia direta por meio das comunas. Na prática, porém, as decisões políticas continuaram buscando legitimação das eleições. A própria direção chavista montou o Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV), a partir de várias organizações que o apoiavam, para participar de eleições. A constituição chegou a plasmar em sua letra uma “nova geometria do poder” e a última palavra de ordem de Chávez foi “Comuna ou nada!”. Essa “nova geometria” não saiu do papel, as comunas não têm autonomia e a democracia representativa é exercida (ou não) para referendar o que o governo central decide. Isto é, consolidaram-se práticas centralizadas e autoritárias. Como explica essa deriva da política venezuelana?

As comunas foram decretadas de cima e sua implementação foi delegada a todo o poder administrativo do Estado, como, antes delas, os “núcleos endógenos”[1] foram um falso positivo. As comunas foram a mesma coisa, com muito poucas exceções, tão excepcionais como estéreis para servir de início a uma correção, ainda desde os povos. Para a administração burocrática pragmática do chavismo, se Chávez amanhecia falando de mesas de água, de conselhos comunais, de “clap”, de comitês de saúde, de comunas, o assunto era ver quem lhe dava melhores cifras de tais “espaços sociais”. Assim chegaram a anunciar “núcleos endógenos” de telecomunicações no ministério desse ramo. O governo chavista foi um mercado de falsos positivos com um único comprador e de consumo passivo da classe média incauta criada pelo sobre ingresso petroleiro, parasitária do Estado. Cada construção dessas era outro negócio para alguns.

Por isso, teorizar sobre algo inexistente e analisar “se aconteceu” não tem sentido na experiência “comunera” do chavismo. As comunas apenas existem em Venezuela quando chega o funcionário que pretende se reunir com elas. E quando as sustenta algum ânimo social, casos que se contam com os dedos de apenas uma mão, foram reduzidas a vitrines que ninguém pode se vincular a elas. Isto é, não sabemos se são de verdade ou não.

É bom mencionar no catálogo das vergonhas da literatura sobre comunas venezuelanas o livro mais popular, de Juan Barreto[2], um jornalista de Caracas e ex-prefeito metropolitano com graves evidências de corrupção em sua gestão e em toda sua vida política que tenta se apresentar como erudito comuneiro.

Os conselhos comunais, a mais real de todas as instâncias de representação de base cidadã perante o Estado, chegou, depois do fracasso do referendum de reforma constitucional que os propunha, dependendo diretamente da presidência da república para sua legalização e financiamento de projetos que tinham tetos orçamentários que anulavam uma incidência real. Tal parece que todo financiamento se fez para que os funcionários provassem a si mesmos que os conselhos comunais não tinham maturidade de administrar nada.

A assembleia cidadão é ainda mais excepcional que antes, agora que a constituição diz que suas decisões são vinculantes. Não existe consequência processual que permita esse caráter para nossas pobres assembleias. O governo as afundou culturalmente, pelo menos, por uns tempos.

Para arrematar, o governo criou os “clap” e os tornou “legais” com sua maioria sem oposição na Assembleia Nacional. Uns mecanismos onde, inconstitucionalmente, é o partido do governo quem promove seus membros e desde aí controla a política alimentaria mais precária que conhecemos, sem os conselhos comunais, que ficam por fora de toda incidência legal sobre nossa alimentação.

Creio que as comunas apenas foram implementadas e regulamentadas para ser uma extensão, com nome pretencioso, incômodo para os mais reacionários, dos mecanismos de controle social por habitat, cuja base sempre é mais protocolo, requisitos, que experiência. Todos esses mecanismos reduziram a cidadania a a participação a lista de beneficiários, que não incidem, e nem precisam existir realmente, e sim agradecer desde o silêncio. Esses mecanismos de controle começaram com as missões, um tipo de políticas sociais outsourcing[3], que começaram e foram aperfeiçoando os mecanismos de controle por habitat do chavismo no governo. Quando digo mecanismos, isso supõe, obviamente, que foram desenhados por especialistas que ainda permanecem livres de responsabilidade por seus aportes tecnológicos e epistémicos. As missões inauguraram um modelo liberal oculto, para a última etapa da pilhagem colonial em nossos territórios, uma espécie de terceirização da exclusão, concluíram no 1º Seminário de Integração Sulamericana desde Baixo, realizado em Venezuela por militantes como Aníbal Quijano, Carlos Walter Porto Gonçalves e José Ángel Quintero.

Sobre o PSUV: quando Chávez convoca o PSUV, ele lhe outorga, em seu caráter de Presidente do mesmo, poderes sobre a estrutura como o veto e a capacidade de reformar a seu gosto o desenho da estrutura de autoridades. A vontade do presidente é absoluta como nos piores partidos patriarcais que podemos imaginar na história. Sua própria base nesse momento não votou por seus candidatos e ele os impôs de cima dos eleitos com outros cargos, que ainda hoje seguem à frente desse partido.

É muito duro ver como se supõe a existência de algo, a partir do que se falou em Caracas por intelectuais de café. Urge outra maneira de vermos que não seja desde a narrativa de pobres metáforas da propaganda oficial.

Não apenas as comunas não puderam ser nem em experiência e nem em autonomia, nem em cultura, outros espaços que mediam a relação do Estado com a sociedade, como as universidades e as experiências educativas, foram colonizadas pelos ministérios até perder todos seus sucessos autonômicos, que enriqueciam a vida venezuelana. Por exemplo, a autonomia das universidades, de muitas experiências agrárias e sociais, das organizações sindicais, camponesas e indígenas de intermediação, que não eram fortes quando a chegada do chavismo, mas que agora apenas falam quando se lhes ordena, com muito honrosas, mas débeis exceções.

É o caso do Conselho Nacional Indígena de Venezuela (CONIVE) e suas sucursais, que são uma extensão eleitoral do PSUV, para colocar ume exemplo desde nossos afazeres.


[1] Os Núcleos de Desenvolvimento Endógeno foram uma ideia de Chávez que precedeu as comunas, nos primeiros anos de Chávez, com foco no “desenvolvimento local” e popular.

[2] Refere-se a La comuna. Antecedentes históricos del gobierno popular. Caracas: 2011.

[3] Terceirizadas.


Dossiê Venezuela – Raul Zibechi e Silvia Adoue: Como afeta a autonomia dos povos a intensificação do extrativismo espoliador por parte do Estado venezuelano? E como pode sair desse atoleiro?

O modelo extrativista venezuelano é irregular, como em Angola, como no Congo e em outras partes da Amazônia, é mais barato e manejável assim, e libera de responsabilidades sociais, penais, ambientais e políticas aos associados no negócio, mas não ao Estado.

Venezuela deu licenças de certificação para seu ouro e outros minerais a empresas “mineiras” ad hoc, criadas, muitas delas, em Londres, nos meses anteriores ao ato administrativo. Essas empresas não foram extrair minério no território, instalaram-se no Caribe na espera dos carregamentos para limpar sua origem irregular e ingressa-los no mercado como commodities legais, sem sangue, sem crime.

O decreto da zona do Arco Mineiro, que já legalmente, por meio de outros decretos especiais, funciona em todo o país, proscreve direitos de associação, de reunião e de protesto no mesmo e convoca o “poder popular” para, junto com os corpos de segurança, garantir a produtividade. Na prática, esse “poder popular” é a cara legal de grupos armados do crime organizado, paramilitares do Estado venezuelano e guerrilhas colombianas que viraram grupos do crime organizado, para financiar suas operações e listas. O exército venezuelano está na periferia dessas explorações para cobrar comissões e administrar parcialmente o comércio extrativo do qual apenas 5% é legalizado no tesouro do Estado.

Esse negócio sustenta toda a operação corporativa inclusive dentro do Estado, que não se preocupa por ser caraterizado como Estado falido, já que essa caracterização lhe permite agir escancaradamente e sem consequências imediatas.

Obviamente, isso supõe a dissolução desde dentro do projeto nacional chamado Venezuela, mas supõe a dissolução pela força externa das nacionalidades e soberanias originárias dos Territórios e toda a dinâmica social e cultural da vida dos povos, que deve se integrar ao modelo ou perecer. Como única resposta efetiva até hoje, alguns povos se organizaram para se integrar mantendo níveis de autonomia e outra relação com os minérios e seu comércio. Isso não é absoluto e não é definitivo. É um terrível risco, mas permite-lhes construir alternativas de supervivência e força que os sustente, apesar da preocupação deles e especialmente das e dos maiorxs das comunidades. Não são os primeiros povos do continente que vivem essa experiência.

A autonomia entendida como projeto político dos povos é nova em Venezuela e em alguns casos é débil reflexo ainda de outros povos. Aqui existiram organizações de intermediação nacionais e regionais que deixaram de ter alguma utilidade para nossas comunidades faz mais de 25 anos e o chavismo as encontra fracas e passa por um esforço para conduzir, acompanhado de especialistas que antes foram aliados dos povos, agora funcionários e assessores da política do governo para assuntos indígenas. Antes, nossas organizações eram de intermediação, medianamente representativas. Sua relação prioritária era com os governos, as igrejas e as ONGs. Quase todas elas são agora franquias de controle do governo, de supressão das dissidências indígenas, com débeis, mas honrosas exceções.

Algumas poucas mudaram dando prioridade à relação com as ONGs. Apenas os Pemón têm uma instância de governo próprio para dar resposta às necessidades e critérios de suas próprias comunidades, mas o commodity que sustenta essa governança novidadeira é o ouro. Não foram eles que inventaram, foi imposto a eles para subordiná-los e eles reverteram o processo, mas isso ainda está para ser resolvido em meio a graves riscos de dissolução de sua identidade e de sua vida cultural.

Outros povos mantemos a governança ancestral no coração de nossas relações sociais, mas ainda não damos o passo de nos refazer politicamente a partir disso. Para tomar a decisão de resistir politicamente.

O extrativismo é o projeto de despojo definitivo e é o projeto do Estado venezuelano e do governo atual. Sempre fomos uma capitania geral extrativista, mas a intensidade das operações atuais é inédita e anuncia-nos o genocídio.

As leis “para os povos” apenas nos transformam e vítimas e beneficiários e os estatutos mais favoráveis são inaplicáveis sem que exista a vontade políticas de aplica-las.

Devemos aprender e nos refazer desde nós e agir politicamente desde nós ou desaparecer.


Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.

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