
Na quinta parte do dossiê “As derivas da Venezuela: deterioração do processo bolivariano“, Raúl Zibechi e Silvia Adoue entrevistaram Las Comadres Púrpuras1, grupo popular de contra-cultural, despatriarcal de feministas insurgentes e autônomas, que atua política e artísticamente na Venezuela, tendo relações com diferentes realidades e lutas do mundo.
Você pode acessar o dossiê completo aqui:
Dossiê Venezuela – Raul Zibechi e Silvia Adoue: As condições de vida do povo venezuelano vêm se deteriorando ano após ano. Isso tem levado um crescente número de trabalhadores a empreender o caminho da migração. No exterior, vemos venezuelanos, muitos deles com qualificação, aceitar empregos mal pagos e situações e situações legais incertas e com risco. De sua perspectiva, que levou tantos venezuelanos a desistir de permanecer em seu território?
É importante destacar que os povos não desistem de permanecer em seus territórios, são expulsados, execrados, expatriados, e, com a premissa de não violentar a vida, nos convertemos em nómadas para confessar física e verbalmente a história de um território que está sendo profanado e violado.
Houve muitos métodos não violentos, com os quais, nas diferentes conjunturas, a venezolanidade mostrou, por meio do protesto social, seu descontentamento com as políticas governamentais empregadas. Porém, assim como o tecido social aprende, os governos sofisticam mais seus métodos de subordinação, doutrinando, alavancando dispositivos de controle, de terror, de miséria e verborragia propagandística embrutecedora, que muito bem se compra e se filtra no academicismo, as esquerdas e em seu próprio modelo corporativo, que só responde à consolidação do sistema patriarcal e capitalista. Mas, olho vivo, esse modelo se entrelaçou com o mercado ilegal, antes seu comportamento era mais subterrâneo; agora é tanta a demência de sua violência que sobressaem as práticas mafiosas para o controle social e a devastação da vida ou o que é vivo que não responda à lealdade desse modelo coercitivo.
A pilhagem do território não é apenas da terra, é a pilhagem do pensamento crítico, da alegria, da saúde, das culturas, cosmovisões e espiritualidades, do ar, da água, dos elementos necessários para a vida, uma pilhagem do que comum; a humanidade venezuelana se desloca porque a hostilização foi sistemática. Há poucas possibilidades para se pensar fora do sequestro social que cada governo instaurou, e, agora, numa temporalidade de governo que parece dinástico.
As causas desta crise são múltiplas, e se entrelaçam de maneira complexa para a compreensão do povo venezuelano e complementária para o projeto bolivariano, que principalmente se alimenta do abandono histórico que os governos deixaram no seu rasto. O modelo rentista e extrativista nos converteu num povo que internamente teve uma mobilidade em torno dos recursos, mas a globalização do trabalho informal e das promessas de estabilidade em outros territórios impulsiona uma mobilidade forçada fora de Venezuela.
A isso se somam as precárias condições de trabalho, graças à pulverização do salário, a erosão dos direitos das e dos trabalhadores, o que coadjuva em detrimento da qualidade de vida, junto à ineficácia dos serviços básicos, o desmantelamento das instituições redunda na vulneração da vida. Razões que se acrescentam para buscar melhores condições de vida fora de nosso país. A hiperinflação galopante, a escassez de alimentos e medicinas em muitas regiões do país, o declive dos serviços básicos, a desvalorização da moeda e a perda do poder de compra erodiram o tecido social e geraram uma profunda sensação de incerteza. A isso é preciso somar a crise política, marcada pela violação dos Direitos Humanos e a agudização da repressão, que socavou as instituições democráticas e gerou um clima de insegurança, medo e angústia.
Dossiê Venezuela – Raul Zibechi e Silvia Adoue: O processo iniciado em Venezuela sob direção de Hugo Chávez prometia superar a dependência da exportação de petróleo com todas as mazelas históricas resultantes de tal dependência. Para isso, propunha-se, entre outras medidas, a reforma agrária, que seria base da soberania alimentaria. Porém, um quarto de século depois, a dependência da exportação de petróleo e também de outros minérios parece ter se intensificado. E continuam importando produtos de primeira necessidade. Como explica esses fatos?
Venezuela é reconhecida como o segundo país mais corrupto do mundo. Isso se deve à participação de membros do gabinete governamental nos desfalques à Nação. Por exemplo, recentemente, no ano 2024, veio à tona que o ex-ministro Tareck El Aissami esteve associado a toda uma trama de corrupção na empresa petroleira estatal e de desfalque de mais de 21 milhões de dólares, dos quais ainda se carece de informação a respeito desse roubo descomunal, mas podemos mencionar outros casos de corrupção como o denunciado em 2013 por Edmée Betancourt, ex-presidenta do Banco Central de Venezuela que, com apenas 3 meses no exercício do cargo, foi destituída por denunciar a Comissão de Administração de Divisas (CADIVI), quem, em 2012, havia outorgado a quantidade de 20 bilhões de dólares a empresas fantasmas, também conhecidas como empresas de “maletim”.
Também a denúncia que fez Alcedo Mora, o caso que desde 2013 evidenciou a existência de uma rede de contrabando de combustível que teria corrompido as operações de enchimento de PDVSA em El Vigía, estado de Mérida, involucrando funcionários da empresa estatal petroleira e da governação de Mérida. Mora foi ameaçado, e, em 27 de fevereiro de 2015, saiu caminho ao trabalho e não retornou. Ainda está desaparecido.
Em 2016 foram instauradas as zonas de desenvolvimento estratégico nacional e por decreto se adjuntou ao Arco Mineiro do Orinoco (AMO), que não é mais que uma grande zona de sacrifício da natureza e as pessoas, fora de qualquer lei. Com isso, a devastação de qualquer projeto ecossocial. Por outro lado, a soberania alimentaria permaneceu em leis com letra morta, pois a corrupção contaminou boa parte dos gabinetes ministeriais, que deviam velar pela segurança alimentaria. Com relação à reforma agrária na gestão de Chávez, se converteu no chamado mercado de terras. Se bem nas primeiras etapas se observou um benefício para o campesinato, logo se converteu no mercado de um novo latifúndio de elites militares, políticos e más práticas orientadas ao enriquecimento de interesses dos funcionários governamentais.
Por isso, as commodities, no primeiro período do chavismo, foram a base para sustentar a política clientelar, um duplo discurso pelo qual, por um lado, se negociava a soberania com uma política rentista e extrativista, e, por outro, se faziam reuniões com os setores indígenas, camponeses, ambientalistas, populares. Houve centenas de mesas de trabalho nas que houve promessas que consolidaram a cooptação e a instrumentalização governamental dos discursos de transformação social, mas que finalmente apenas foram vitrines dependentes da renda petroleira.
Quando dizemos que o modelo implementado em Venezuela como processo bolivariano engendra formatos de gestão mafiosa, é porque financiou grande parte de sua propaganda política por meio de extorsão, sequestro e captura de financiamentos. É um modelo profundamente clientelar que, a quem não compra, exclui. Uma parte significativa dos recursos vindos da renda petroleira foram desviados para as redes clientelares e projetos faraónicos, em lugar de ser investida no bem-estar do país.
Dossiê Venezuela – Raul Zibechi e Silvia Adoue: Outra promessa, que também atraiu a atenção entusiasta dos povos do continente, foi a de superar as formas tradicionais do exercício do poder pelas vias representativas e passar ao exercício da democracia direta por meio das comunas. Na prática, porém, as decisões políticas continuaram buscando legitimação das eleições. A própria direção chavista montou o Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV), a partir de várias organizações que o apoiavam, para participar de eleições. A constituição chegou a plasmar em sua letra uma “nova geometria do poder” e a última palavra de ordem de Chávez foi “Comuna ou nada!”. Essa “nova geometria” não saiu do papel, as comunas não têm autonomia e a democracia representativa é exercida (ou não) para referendar o que o governo central decide. Isto é, consolidaram-se práticas centralizadas e autoritárias. Como explica essa deriva da política?
Explica-se da forma mais simples: o chavismo é um projeto que representa uma estafa global. Com o projeto chavista proliferaram as políticas clientelares. Não houve diversificação da produção e os direitos trabalhistas foram mermando. Há pessoas que acreditaram de coração e com fé, e com sua vida defenderam a causa, mas, no final, de uma ou outra forma, apoiar o projeto chavista é sustentar a tortura, ser cúmplice da malversação de fundos, na narrativa de ódio e de guerra e na transação da soberania nacional. Não há escala de cores, este tempo serviu para concretar uma forma de gestão da política que subordina a ideia e os princípios coletivos ou comuns pelas necessidades do líder.
Venezuela, como muitas outras nações de América Latina, tem uma longa história de centralismo e de governos autoritários. Apesar dos intentos de construir uma nova institucionalidade, as estruturas do Estado e as práticas políticas arraigadas dificultaram a implementação de um modelo radicalmente diferente. Os mecanismos de participação cidadã, como as comunas, foram cooptados pelos poderes estabelecidos para legitimar decisões já tomadas ou para fortalecer o controle social. No caso venezuelano, as comunas foram utilizadas em muitas ocasiões como instrumentos de controle político, mais que como espaços de verdadeira autonomia e participação. Existem muitas experiências que são “vitrines socialistas” dentro de um país que é totalmente dependente da ineficiência do Estado.
Dossiê Venezuela – Raul Zibechi e Silvia Adoue: Como se milita a luta antipatriarcal no atual contexto da cidade, do campo e das zonas de extrativismo em Venezuela?
Como mulheres dos setores populares venezuelanos e de zonas periféricas, nossa luta é antipatriarcal, antirracista e anticolonialista. Centra-se em construir redes de apoio com outras mulheres que, igual que nós, romperam com o pacto patriarcal. Porém, a atual situação política de Venezuela levou-nos a recolocar nossas alianças.
Rejeitamos os discursos que procuram dividir, polarizar e desqualificar a quem dissente, e exigimos o cesse das práticas repressivas, da política da crueldade e da guerra, que limita nossa liberdade de expressão e organização, que socava nossa humanidade, e que submete os corpos e territórios gerando profundas feridas em nosso tecido social e natural. Nossa luta se estende para além das fronteiras de Venezuela, abrangendo todas aquelas situações em que se vulneram direitos das mulheres, meninas, meninos e adolescentes, comunidades e a mãe natureza.
Fazer militância antipatriarcal significa se rebelar diretamente contra o governo nacional, que evoca uma gestão machista, militar, para-militar, mafiosa, caudilhista e cruel com a vida. Todo isso é a representação mais simbólica e contemporânea do colonialista que trai o próprio povo, por umas peças de ouro. Neste caso, não apenas foram umas peças de ouro, foram as arcas da nação, a pensão de velhice, o futuro e presente das infâncias, o trabalho decente, os direitos mais elementares, obtidos por meio de lutas históricas. Uma pilhagem a plena luz do dia, destroçando o futuro vivo do território. Todo isso, não é mais que a precarização da vida de centos de venezuelanas e venezuelanos, à mercê da casa do amo.
Dossiê Venezuela – Raul Zibechi e Silvia Adoue: Desde sua perspectiva, como as gentes dos territórios do que hoje chamamos Venezuela podem sair desse atoleiro?
A perversão na política de quem dirigem o poder das instituições do Estado cria a narrativa de um país polarizado e dividido. Certamente, as redes de solidariedade ainda presentes são as que mantêm a mínima cordura frente aos promotores das desconfianças. O impulso global do neoliberalismo é nos converter em escravas, nómadas das migalhas que resvalam na terra. Não é somente uma Venezuela, é um paco de guerra que patriarcas poderosos selaram para violentar territórios e corpos e extrair recursos para mais projetos de guerra e conquista, e de pulverização do planeta Terra e da autonomia social. Ser seres mais dependentes da renda em todos seus formatos, inclusive a renda sobre nossos corpos. Sair da violência global em direção à vida digna é uma questão emergente e solidária com cada canto em luta. Desde uma serena areia no Kurdistão, risos de jovens palestinas, lembranças de terra zapatista, o frio mapuche, o cálido Cauca, a vertiginosa serra, mares nicaraguenses… é nos cuidar na palavra coletiva que brota na narrativa comum da pilhagem e do amor. Nos abraçar, sair do atoleiro é abraçar a causa da vida frente ao sepulcro das lutas.
Sim. Insistimos, seguimos insistindo na juntança de almas que acreditam e criam com suas próprias mãos uma vida mais digna, mais harmoniosa, mais autônoma. Almas que cuidam e que lutam, almas que se movem, que transformam e comovem, almas que semeiam e se juntam para colher a esperança, enquanto seguimos fazendo de nossa alegre rebeldia um campo de construção social, por um país que se construa desde a diversidade, a emancipação social, a autonomia dos corpos, a reivindicação dos territórios, a relação harmoniosa com a natureza e seus recursos, a garantia dos Direitos Humanos e a liberdade de decidir sobre nossos corpos e ser sem repressão.
Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.
Referências
- Site oficial: https://lascomadrespurpuras.com/