Entrevista com Luis Bonilla-Molina

Na quarta parte do dossiê As derivas da Venezuela: deterioração do processo bolivariano, Raúl Zibechi e Silvia Adoue entrevistaram Luis Bonilla-Molina, Professor universitário venezuelano. Integrante do Comitê Diretivo da CLACSO e pesquisador do Centro Internacional de Investigação Outras Vozes em Educação.

Você pode acessar o dossiê completo aqui:


Dossiê Venezuela – Raul Zibechi e Silvia Adoue: As condições de vida do povo venezuelano vêm se deteriorando ano após ano. Isso tem levado um crescente número de trabalhadores a empreender o caminho da migração. No exterior, vemos venezuelanos, muitos deles com qualificação, aceitar empregos mal pagos e situações e situações legais incertas e com risco. De sua perspectiva, que levou tantos venezuelanos a desistir de permanecer em seu território?

Venezuela vive uma situação terrível em matéria migratória. O escritório das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) estima que o número de venezuelanos que saiu do país nos últimos dez anos alcança o 7 milhões. Num país com 30 milhões de habitantes e um pouco mais de 21 milhões de eleitores, essa cifra resulta astronômica. Cada família venezuelana tem pelo menos um de seus integrantes em condição de migrante e em alguns casos é todo o núcleo familiar que teve que partir.

A origem social de classe pesa muito nas modalidades pelas quais se concretiza esse processo. A maioria de trabalhadores e trabalhadoras teve que migrar por terra, sem passaportes pelos custos e tramitações burocráticas para obtê-lo, com o dinheiro resultante de vender suas poucas propriedades (quando as têm) e com as poucas poupanças, se é que sobrou algo após a hiperinflação.

A inflação nos últimos nove anos resulta inverossímil para quem a olhar sem uma avaliação do conjunto da situação de Venezuela. A partir de cifras independentes, se estima que a inflação foi: de 121.728% em 2015, de 254.949% em 2016, de 438.117% em 2017, de 6.537.408% em 2018, enquanto que foi de 1.990.602% em 2019, de 235.515% em 2020, de 158.851% em 2021, de 186.542% em 2022, de 337.458% em 2023 e no que vai de 2024 é de 99.981%. Se a gente somar a inflação acumulada, o número resultante parece ficção científica.

Entre 2013 e 2021, foram tirados 11 zeros na moeda nacional. Isto é, 100.000.000.000 bolívares de 2013 são 1 bolívar de 2024.

Se a isto acrescentamos o salário mínimo mensal dos últimos dez anos (presentados em dólares) temos um salário equivalente a: 40,36 em 2014, 18,01 em 2015, 28,70 em 2016, 4,09 em 2017, 5,62 em 2018, 0,10 em 2019, 2,33 em 2020, 27,42 em 2021; 7,43 em 2022, 3,66 em 2023, 3,54 em 2024, num país onde os preços da cesta básica são superiores aos do resto de América Latina, você pode imaginar o drama da vida da classe trabalhadora. Por exemplo, o melhor salário de um docente titular universitário (máxima categoria) escassamente alcança os 130 dólares mensais, dos quais o 80% é pago em bonificações sem incidência nos cálculos de benefícios trabalhistas, enquanto que os professores e professoras de ensino fundamental começam a carreira com um salário base que não supera os 20 dólares mensais. Perante essa situação dantesca, a migração é uma opção de sobrevivência, uma decisão para poder comer e apoiar os familiares.

As remessas tornaram-se uma fonte extraordinária de sobrevivência familiar. Por isso, para apoiar a quem decide migrar, a classe trabalhadora vende suas casas, veículos e pequenas propriedades a preços irrisórios, procurando contribuir economicamente com o início dos projetos migratórios de seus integrantes. A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), em 2021, estimava que para começo desta década os montantes das remessas anuais venezuelanas passaram dos 1,3 bilhões de dólares a 3,5 bilhões, tendência que se manteve. Isto é, estamos falando em 8% do Produto Bruto Interno (PBI) desse momento (não contamos com dados atuais, que devem de ser superiores).

O governo justifica essa situação pelos efeitos das Medidas Coercitivas Unilaterais (MCU) ou bloqueio econômico, como se diz popularmente. No entanto, vemos como o salário resultava insuficiente frente ao transbordamento da inflação muito antes de que se aplicaram essas medidas sancionadas por parte da administração estadunidense e as nações imperialistas europeias. Pior ainda, se vemos que os ingressos ao país se incrementaram nos últimos três anos pela flexibilização das MCU que operaram entre 2022 e 2024, com a guerra de Ucrânia e as necessidades gringas de petróleo, isso não teve um correlato nos salários, pelo contrário, o ataque do governo Maduro contra o salário da classe trabalhadora se intensificou.

Diz-se que o bloqueio diminuiu a capacidade produtora de petróleo de Venezuela, Porém, a verdade é que já em 2014 -antes do bloqueio- a capacidade de produção de petróleo em Venezuela tinha caído a um milhão cem mil barris diários e no que vai de 2024 quase que está em 900.000 barris diários e o próprio presidente Maduro anuncia que o governo tem como meta superar o milhão de barris diários no fim do ano. Quer dizer, se está retornando à produção que Venezuela tinha antes das sanções, mas isso não tributa às condições salariais e de vida da classe trabalhadora, senão que reafirma o modelo rentista de acumulação da velha e da nova burguesia. O bloqueio serve para esconder o modelo de acumulação da nova burguesia e isso é público e notório para a população, por isso o apelo por parte de Maduro a que a situação é consequência das medidas coercitivas sobre Venezuela na economia venezuelana perdeu sua eficácia política e eleitoral.

Isso acontece com o grosso da migração que pertence à classe trabalhadora.

Por outra parte, a derrota das insurreições paramilitares urbanas implementadas pela direita em Venezuela, entre os anos 2014 e 2017, especialmente a do último desses anos, que foi esmagada com o trágico saldo de mais de uma centena de mortos, especialmente jovens opositores, propiciou um sentimento de desesperança e fastio pelo incessante confronto entre os setores econômicos e políticos. Se bem uma parte da explosão migratória de 2017 a 2024 tinha uma componente de opositores ao governo Maduro, o grosso da mesma foi de trabalhadores que procuravam sobreviver economicamente e estavam cansados de existir no meio de um confronto político no qual eles não contavam.

As dificuldades procedimentais (burocráticas) e os custos da certificação e apostilamento de títulos, qualificações e certificações de teses afetou uma parte dos que tiveram que optar entre sobreviver ou esperar um longo processo de legalização de credenciais. Muitos tiveram que viajar sem seus títulos universitários ou sem legaliza-los devidamente de maneira prévia. Outros tantos o fizeram sem passaporte, pelo que tiveram que ingressar de maneira ilegal ons países de trânsito e nos de destino. Em ambos casos, isso forçava-os a se empregar em outras áreas, diferentes daquelas da sua qualificação profissional ou ofício, recebendo salários “ilegais”, sem proteção social nem trabalhista.

Em Brasil, inclusive, aumentou o número de migrantes venezuelanos pertencentes aos povos originários, em condições muito deploráveis, porque alguns deles eram analfabetos em espanhol e português, não tinham documentos de identidade atualizados e careciam de habilidades para se insertar no mundo do trabalho urbano.

Não tendo Venezuela uma cultura da migração, um segmento dos migrantes, especialmente aqueles que careciam de experiência familiar em processos migratórios, aventuraram-se sem ter garantidas as condições mínimas na hora de chegar. Isso empurrou esses migrantes à condições de vida nas ruas, de pobreza crítica e, inclusive, em alguns casos, à mendicidade.

Isso acontecia enquanto o governo venezuelano acusava inicialmente os migrantes de “traidores”. Depois assinalava-os que haviam saído para “lavar pratos” e, no final, oferecia um plano de retorno ao país consistente em voos aéreos de limitado impacto, que colocavam a quem retornava ao país, novamente, perante aquela tragédia inflação-salários de fome-carência de poder de compra-deterioro dos serviços públicos, situação que empurrava a um novo ciclo migratório.

Apesar da tragédia migratória, o sistema educativo venezuelano não termina de incluir em seus temas de estudo a migração, para garantir conhecimento adequado e atualizado para aqueles que saem do país. Isso é um vácuo imperdoável na política pública num governo que diz estar do lado dos pobres.

Finalmente, o giro autoritário do governo Maduro, acentuado a partir de 2017-2018 -e agora muito mais após as eleições de 28 de julho de 2024-, a incapacidade da direita para construir uma opção válida, eclipsavam o horizonte da população, especialmente da juventude, quem preferiam ir em procura da quimera do bem-estar em outro país, alguns conseguiam construí-lo, para outros resultava complicado. A esquerda foi judicializada e reduzida a sua mínima expressão legal, o que a limitava para poder agir de maneira eficiente e disputar a influência de massas.

A oposição de direita, especialmente no período do interinato de Guaidó, usou o tema da migração como um fator de acesso a importantes recursos de ajuda humanitária, os que não tiveram impacto algum nem há evidências de que realmente foram usados para o que lhes foram fornecidos.

Nem para o governo e nem para a oposição de direita a situação material da migração resultou um fator relevante em sua atuação, coincidindo no despreço pelo destino dos mais humildes.

Dossiê Venezuela – Raul Zibechi e Silvia Adoue: O processo iniciado em Venezuela sob direção de Hugo Chávez prometia superar a dependência da exportação de petróleo com todas as mazelas históricas resultantes de tal dependência. Para isso, propunha-se, entre outras medidas, a reforma agrária, que seria base da soberania alimentaria. Porém, um quarto de século depois, a dependência da exportação de petróleo e também de outros minérios parece ter se intensificado. E continuam importando produtos de primeira necessidade. Como explica esses fatos?

Chávez tentou recuperar a produção agrícola e ali se encontrou com um problema prático e teórico. Num país em que o campesinato tinha diminuído a níveis insignificantes, era possível construir ou reconstruir o campesinato como classe social produtiva? Chávez pensava que sim e financiou projetos como os fundos zamoranos, as cooperativas e outros, mas a realidade é que tiveram uma inserção e desenvolvimento orgânico mínimo. A maioria dos beneficiários voltavam para as cidades, por um lado, pelo que implica a mudança cultural de produção agrícola, e, por outro, porque não se conseguiu desmontar os mecanismos de apropriação da renda petroleira pela via das importações, que faziam fracassar a produção nacional pelo tema dos custos de produção, intermediação e venda.

Por outra parte, a nova burguesia, o novo empresariado bolivariano, composto por militares e civis, adotaram rapidamente o modelo de acumulação rentista da velha burguesia, centrado no assalto às divisas obtidas pelo petróleo para a importação, as isenções fiscais e tributárias.

O negócio, para a nova burguesia, como tinha sido para a burguesia clássica venezuelana, era importar, não produzir. Porém, continua existindo um tecido social importante de este esforço. Esse acumulado pode ser fundamental para o relançamento de um projeto não rentista de economia nacional, amigável com o ambiente e distante do extrativismo.

Dossiê Venezuela – Raul Zibechi e Silvia Adoue: Outra promessa, que também atraiu a atenção entusiasta dos povos do continente, foi a de superar as formas tradicionais do exercício do poder pelas vias representativas e passar ao exercício da democracia direta por meio das comunas. Na prática, porém, as decisões políticas continuaram buscando legitimação das eleições. A própria direção chavista montou o Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV), a partir de várias organizações que o apoiavam, para participar de eleições. A constituição chegou a plasmar em sua letra uma “nova geometria do poder” e a última palavra de ordem de Chávez foi “Comuna ou nada!”. Essa “nova geometria” não saiu do papel, as comunas não têm autonomia e a democracia representativa é exercida (ou não) para referendar o que o governo central decide. Isto é, consolidaram-se práticas centralizadas e autoritárias. Como explica essa deriva da política venezuelana?

O projeto de Chávez foi de um novo policlassismo, que tinha o atrativo para os setores radicais de esquerda quer procuravam a destruição da velha burguesia, a quebra do mundo unipolar e a criação de uma nova geometria do poder associada a sua visão policlassista. O projeto de Chávez foi progressivo, mas nadava também em duas águas.

Um setor da velha burguesia acompanhou Chávez em sua candidatura de 1998, quando falava em “capitalismo humano”. No entanto, essa burguesia assustou-se com a nova constituição de 1999, a lei de terras e a recuperação do controle estatal da indústria petroleira, fonte do modelo rentista de acumulação burguesa. A burguesia anti Chávez e a burguesia que o tinha acompanhado reconciliaram-se para dar o golpe de Estado de 2002. E quando Chávez voltou ao poder da mão e nos ombros do povo, se encontra com um problema prático num país que faz da importação de partes, insumos e mercancias de consumo o eixo de sua economia. Então outorgou licenças de importação, autoridade nas instâncias de controle cambiário e industrial a militares e altos funcionários políticos, produzindo, assim, uma reengenharia burguesa, ao mesmo tempo em que dentro do projeto policlassista promoveu os órgãos de poder popular e comunal, a recuperação de terras e tentativas de reconstituir o campesinato como classe social, a toma de fábricas fechadas até chegar à ideia do socialismo do século XXI. Porém, a ideia socialista de Chávez nunca terminou de ser radicalmente anti capitalista, senão de novos equilíbrios entre burgueses e trabalhadores.

No entanto, a percepção que tenho é que Chávez, no período de 2004-2009, aposta com muito mais força à radicalidade do poder popular. Porém, a crise bancária de 2009, em que setores vinculados ao governo resultaram proprietários de bancos e empresas importadoras, elevou as tensões entre as duas linhas do projeto policlassista: o popular e o empresarial. Entre 2010 e 2011, Chávez tentou equilibrar essas dinâmicas, mas a doença o limitou seriamente. No final, morreu e a chegada de Maduro significou a continuidade e ênfase no impulso de uma nova burguesia, a restauração burguesa em termos de devolução de terras, fábricas e até o emblemático centro comercial Sambil que Chávez havia falado que teriam que tirá-lo de Miraflores para que isso acontecesse.

Dossiê Venezuela – Raul Zibechi e Silvia Adoue: Ao longo da história de Venezuela, velhas oligarquias foram substituídas por outras novas. Isso aconteceu depois da guerra pela independência, no século XIX. Dá a impressão de que a velha burguesia rentista do petróleo foi substituída por uma nova burguesia rentista. É essa uma recorrência da história venezuelana?

De fato, a guerra pela independência não foi anticapitalista, senão de reacomodo das relações dos grandes proprietários de terra e empresários da periferia colonizada com o centro capitalista que se transformava como resultado da revolução industrial. É claro que, para conseguir a independência e dar a ela um caráter popular nacional, fizeram-se concessões aos setores populares, mas, por exemplo, a abolição da escravidão apenas foi concretizada em 1854, décadas depois da independência de Espanha.

No entanto, na minha perspectiva, o processo atual tem mais semelhanças com a chamada revolução restauradora que lideraram Cipriano Castro e Juan Vicente Gómez. Castro desconheceu a dívida externa e isso levou a um bloqueio das costas venezuelanas por parte das nações europeias credoras, mas esse incidente abriu as portas à mediação estadunidense e o ciclo ainda não concluído de economia dependente e neocolonial com o norte imperialista. Castro foi traído por seu compadre e companheiro Juan Vicente Gómez, quem o tirou do poder e impediu qualquer iniciativa independente dos EUA, usando a nascente exploração do petróleo para estruturar o modelo de acumulação rentista petroleiro da burguesia, que até hoje se mantém. A velha burguesia  da quarta república tem seu DNA nos proprietários de terras, comerciantes e políticos independentistas, pero fundamentalmente, na estrutura de classe,  burguesia que se configura em torno ao petróleo.

É impossível não associar -com as distâncias e respeitos devidos- a figura de Chávez com a de Cipriano Castro e a de Maduro -de maneira caricaturesca- com a de Gómez. Gómez modelou o Estado venezuelano, o que lhe garantiu a permanência no poder até a morte, e Maduro parece pretender alcançar um acordo inter burguês (velha burguesia -1917-1998- da quarta república com a nova burguesia -2002-2024- do período bolivariano) para garantir sua permanência indefinida no poder. A jogada funcionou para Gómez, mas não está acontecendo com Maduro, especialmente depois da opacidade dos resultados eleitorais de 28 de julho deste ano.

Porém, o erro que costuma cometer a direita e a esquerda não madurista é o de subestimar Maduro. Ele não é um homem culto, mas é hábil pragmático que age com a lógica de um burocrata sindical na forma de alinhar e domesticar as dissidências.

Os governos de Maduro tiveram três etapas diferenciadas, mas complementárias, que fazem parte do projeto comum do madurismo. O primeiro período, entre 2013 e 2017, no qual teve que consolidar sua liderança, execrando os opositores internos no governo e no PSUV, ao mesmo tempo que esmagava a capacidade militar insurrecional da direita. Foi bem sucedido nisso, apesar de que a economia se desmoronava, os EUA sancionavam a economia petroleira do país, as condições materiais da vida e salariais da população caiam a níveis infra-humanos, mas não se produzia qualquer revolta popular, o grande Polo Patriótico (aliados do PSUV) intentava se rebelar e Maduro o judicializava¸ aplicando normativas ad hoc que lhe beneficiavam.

O segundo período (2018-2024, no qual se sentia com força para tentar propiciar um acordo inter burguês com a velha burguesia e suas representações políticas, avançar na reconstituição de um nível de relação com os EUA para que levantassem as sanções gringas e aplicar um programa de recuperação econômica (no estilo do FMI) que colocasse o peso da crise na classe trabalhadora. Avançou de maneira considerável nesse sentido, com as direitas conseguiu votos parlamentários quase que unânimes em temas como Esequibo, se reencontrou com a patronal FEDECAMARAS que então chamava a seus funcionários de “grandes amigos” e levou o salário da classe trabalhadora ao subsolo, inclusive ao custo de levar a julgamento e encarcerar dirigentes operários. O problema foi que não conseguiu fechar a negociação com todos, e setores da velha burguesia vinculados à liderança de María Corina Machado levantaram sua candidatura e, depois, a de Edmundo González Urrutia, que terminou se convertendo num fenômeno eleitoral de massas.

O terceiro (pós eleições de 28 de julho de 2024) no qual, para se sustentar no poder, incrementou sua tendência autoritária, inclusive não permitindo a transparência dos resultados eleitorais e assumindo as consequências de uma perda de legitimidade de origem a partir de janeiro de 2025. No entanto, Maduro continua sendo hoje o homem forte da política venezuelana e, como tal, nada em duas águas: a da negociação com a Casa Branca e seus correlatos nacionais, enquanto afiança a estrutura de controle e poder a nível nacional. Nesse segundo aspecto, Maduro parece sonhar com ser a encarnação de Juan Vicente Gómez, apesar de que o fantasma de chávez (Cipriano Castro) pode terminar abrindo a porta a uma saída que não convém nem a nova nem a velha burguesia.

Dossiê Venezuela – Raul Zibechi e Silvia Adoue: Desde sua perspectiva, como as gentes dos territórios do que hoje chamamos Venezuela podem sair desse atoleiro?

Com democracia e mais democracia, nunca com autoritarismo e nem ditadura. A mais imperfeita das democracias liberais é melhor para a classe trabalhadora que a mais maquilada das ditaduras. O projeto original de Chávez colocava isso, e essa é a força que é preciso resgatar. O sucesso da direita nas últimas eleições foi que abandonou a via violenta para derrotar Maduro e decidiu participar democraticamente.

Não desconheço que há uma esquerda em Venezuela -e em América Latina- que continua repetindo o mantra da ditadura do proletariado quando perde maioria eleitoral e apoio da população. Desconhecer que o projeto revolucionário é de ampla democracia, de democracia socialista, que vai para além da democracia liberal burguesa deve servir não para negar seus benefícios, senão para romper com os limites que ela impõe. Venezuela não aceitará a meio e longo prazo nenhuma proposta construída com uma saída autoritária, o desafio é saber se o fará a curto prazo.

No entanto, pelo menos me interessa, é uma saída para a classe trabalhadora. E nesse sentido a defesa da transparência na democracia eleitoral, mais que defender o triunfo de um ou de outro candidato presidencial, o que procura é a permanência -ou, melhor, a recuperação- das condições de possibilidade para os trabalhadores de se organizarem livremente, exercer a liberdade sindical sem serem perseguidos ou detidos, que possam organizar mobilizações e greves, se organizar em partidos políticos e se expressar sem restrições. Para isso, é necessária democracia e mais democracia, conjurar o autoritarismo e os riscos de ditadura. O problema é que, assim como Maduro parece ir a contramão disso, María Corina Machado, em sua proposta de governo -que assumimos que é a de González Urrutia-, apenas fala em liberdade de mercado, e não menciona nem uma linha de recuperar o regime de liberdades mínimas para a classe trabalhadora.

Democracia e mais democracia, que, em termos do discurso socialista bolivariano, se expressa na demanda de transparência, controle social e respeito à soberania popular expressada no voto e suas decisões de base.

Perante um panorama como esse, tem futuro um projeto revolucionário de esquerda? Claro que sim. Mas esse projeto de reconstrução da esquerda revolucionária deve partir de recuperar o trabalho comunitário, a organização dos trabalhadores, o vínculo com os movimentos sociais e deixar a um lado a ilusão meramente eleitoral. Deve construir modos cotidianos altamente democráticos e horizontais que conjurem a tradição autoritária que nos levou em diferentes momentos históricos a becos sem saída.


Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.

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