Entrevista com Omar Vázquez Heredia

Na terceira parte do dossiê As derivas da Venezuela: deterioração do processo bolivariano, Raúl Zibechi e Silvia Adoue entrevistaram Omar Vázquez Heredia, Doutor em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires.

Você pode acessar o dossiê completo aqui:


Dossiê Venezuela – Raul Zibechi e Silvia Adoue: As condições de vida do povo venezuelano vêm se deteriorando ano após ano. Isso tem levado um crescente número de trabalhadores a empreender o caminho da migração. No exterior, vemos venezuelanos, muitos deles com qualificação, aceitar empregos mal pagos e situações e situações legais incertas e com risco. De sua perspectiva, que levou tantos venezuelanos a desistir de permanecer em seu território?

A imensa maioria dos sete milhões de venezuelanas e venezuelanos que migraram são trabalhadoras e trabalhadores, então, a principal causa dessa migração se deve ao empobrecimento de suas condições de vida, como consequência da destruição do salário e o deterioro do acesso a serviços públicos básicos. No caso do salário, foi destruído em dois sentidos: como equivalente monetário de um conjunto de mercancias que paga o empregador ao empregado por sua única mercancia, a força de trabalho, e também como conceito central nas relações trabalhistas. Hoje, em Venezuela, o salário e a pensão mínima são de 130 bolívares mensais, que no câmbio oficial corresponde a 3,53 dólares. Tal salário mínimo é a referência salarial da maioria da classe trabalhadora.

Por sua vez, os empresários e o Estado, para reduzir as renúncias ao emprego dos trabalhadores, que, em boa medida, depois migravam, começaram a pagar bonificações, sem incidência no cálculo de férias, utilidades e prestações sociais. Os empresários desde 2018 começaram a pagar bonificações, e o Estado começou a pagar assim para o conjunto dos seus empregados em 2023. No setor privado, os montantes das bonificações são variáveis, mas parece que a média seria de 225 dólares mensais[1]. No Estado, o chamado ingresso mínimo mensal é de 130 dólares ao incluir as bonificações de guerra de 90 dólares e de alimentação de 40 dólares[2]. Desse modo, e já faz vários anos, os empresários e o Estado economizaram um conjunto de recursos no que denominam passivos trabalhistas. Por outra parte, os cortes no fornecimento de eletricidade e água são frequentes na imensa maioria dos estados do país.

Além do mais, a maioria do país rejeita o governo ditatorial e antipopular de Nicolás Maduro, como se demonstrou no passado 28 de julho, quando 70% do eleitorado votou pelo principal candidato da oposição, Edmundo González. Nesse marco, quando se reduzem as esperanças de uma mudança governamental, as trabalhadoras e trabalhadores venezuelanos retomam seus planos de migração.

[1] https://www.bancaynegocios.com/datos-ovf-remuneracion-promedio-del-sector-privado-en-primer-trimestre-se-ubico-en-225-dolares/

[2] Gaceta Oficial Extraordinaria N° 6.746. Decreto presidencial N° 4.805


Dossiê Venezuela – Raul Zibechi e Silvia Adoue: O processo iniciado em Venezuela sob direção de Hugo Chávez prometia superar a dependência da exportação de petróleo com todas as mazelas históricas resultantes de tal dependência. Para isso, propunha-se, entre outras medidas, a reforma agrária, que seria base da soberania alimentaria. Porém, um quarto de século depois, a dependência da exportação de petróleo e também de outros minérios parece ter se intensificado. E continuam importando produtos de primeira necessidade. Como explica esses fatos?

O governo Chávez atenuou a dependência do petróleo e incrementou as importações em detrimento da produção nacional na indústria e na agricultura, porque estabeleceu uma sobrevalorização de um tipo de câmbio oficial fixo. Assim, como em toda a história da Venezuela petroleira, o Estado continuou subsidiando as importações privadas e governamentais através do ingresso do petróleo, que sustentou a mencionada sobrevalorização do tipo de câmbio oficial. Tal aumento tendencial das importações entre 2003 e 2012 permitiu a imbricação circunstancial do processo de acumulação e poupança externa da burguesia importadora e do consumo das classes subalternas.

Em 1998, um ano antes do começo do governo Chávez, o montante das importações foi de 17,879 bilhões de dólares[1]; em troca, em 2012, o montante de importações chegou a 71,083 bilhões de dólares. Um crescimento de 297,57% do total de importações. Esse incremento da oferta de mercancias importadas coadjuvou ao subsídio dos bens salariais que derivou numa diminuição da pobreza geral, que passou de 43,91% em 1998 a 21,20% em 2012[2]. Paralelamente, houve um incremento da fuga de capital da elite econômica que passou de ter 20,948 bilhões de dólares depositados no exterior em 1998 a 149,547 bilhões de dólares em 2012.

Então, ao tornar Chávez o capitalismo venezuelano mais dependente das importações, quando Maduro, desde 2013, começou a contração de seu montante para dispor de recursos que destinou ao pagamento da dívida externa e passivos da PDVSA[3], provocou um incremento da inflação e escassez de mercancias. Os altos índices de inflação e escassez implicaram num empobrecimento do salário real da classe trabalhadora. Nesse marco, os ideólogos de Maduro promoveram a falsa matriz comunicacional na que explicavam a inflação e a escassez a partir de uma chamada guerra econômica contra o governo.

Em realidade, Maduro, através do controle da administração das divisas reduziu o montante assignado às importações, que passou de 61,591 bilhões de dólares em 2013 a 12,942 bilhões de dólares em 2017. Ao mesmo tempo, entre 2014 e 2016, o governo pagou 44,071 bilhões de dólares em passivos de PDVSA. Além do mais, entre 2013 e 2017, o governo pagou 81,131 bilhões de dólares pelo serviço da dívida externa.

[1] Todos os dados são parte das estatísticas da página WEB do Banco Central de Venezuela.

[2] Apenas os dados de pobreza são de uma fonte diferente: a página WEB do Instituto Nacional de Estatística.

[3] Empresa estatal de petróleo de Venezuela (N. da T.).


Dossiê Venezuela – Raul Zibechi e Silvia Adoue: Outra promessa, que também atraiu a atenção entusiasta dos povos do continente, foi a de superar as formas tradicionais do exercício do poder pelas vias representativas e passar ao exercício da democracia direta por meio das comunas. Na prática, porém, as decisões políticas continuaram buscando legitimação das eleições. A própria direção chavista montou o Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV), a partir de várias organizações que o apoiavam, para participar de eleições. A constituição chegou a plasmar em sua letra uma “nova geometria do poder” e a última palavra de ordem de Chávez foi “Comuna ou nada!”. Essa “nova geometria” não saiu do papel, as comunas não têm autonomia e a democracia representativa é exercida (ou não) para referendar o que o governo central decide. Isto é, consolidaram-se práticas centralizadas e autoritárias. Como explica essa deriva da política venezuelana?

Desde 2006, os conselhos comunais e a agregação de vários em comunas foram organizações constituídas em essência desde o aparato do Estado, a partir de leis, o trabalho de funcionários públicos e o financiamento estatal. Por exemplo, a lei especial de conselhos comunais de 2006 e a lei orgânica de comunas de 2009. A criação de promotores comunitários nas instituições do Estado para organizar conselhos comunais e depois comunas, e a constituição em 2009 do atual Ministério do Poder Popular para as Comunas e Movimentos Sociais (MPPCMS). Por último, desde 2006 o financiamento inicial de 30 milhões de bolívares para qualquer conselho comunal registrado no antigo Ministério de Participação Popular e Desenvolvimento Social (MPPDS).

Nesse sentido, simpatizantes chavistas e em alguma medida opositores, com o acompanhamento dos chamados promotores comunitários, organizavam em suas comunidades residenciais, urbanas e rurais, os conselhos comunais e comunas para receber financiamentos do Estado, que dependiam de estar registrados primeiro no MPPDS e depois no MPPCMS. Assim, essas organizações comunitárias se converteram num modo orgânico de distribuição pelo Estado do ingresso petroleiro. Isso na imensa maioria dos conselhos comunais e nas comunas constituídas nas cidades, onde mora 95% da população venezuelana. Em consequência, quando desabou o ingresso petroleiro distribuído pelo Estado apenas seguiram existindo alguns conselhos comunais e comunas rurais, que não dependiam totalmente do financiamento estatal.

Por esse motivo, consideramos que os conselhos comunais e as comunas no momento hegemônico do governo Chávez apenas foram a principal forma orgânica pela qual o aparato estatal, em sentido estrito, se relacionou com a sociedade civil em meio do Estado ampliado venezuelano, no sentido gramsciano. Se no denominado Puntofijismo[1] a principal forma orgânica de canalização das classes subalternas pelo Estado ampliado venezuelano foram os partidos tradicionais, Ação Democrática (AD) e Comitê de Organização de Política Eleitoral Independente (COPEI), o governo Chávez os substituiu pelas mencionadas organizações comunitárias.

[1] Acordo entre os principais partidos tradicionais, em 1958, em que AD e COPEI se comprometiam a respeitar os resultados eleitorais, e garantiam assim a alternância no governo. (N. da T.)


Dossiê Venezuela – Raul Zibechi e Silvia Adoue: Na primeira década do milênio, escutávamos que, na Venezuela, os trabalhadores poderiam ocupar seus espaços de produção e fazê-lo funcionar sob seu controle, com critérios não capitalistas. “Quero ver…”, dissemos, com muita curiosidade e lembrando as experiências de Chile na década de 1970. Nada mais ouvimos a respeito depois. Mais bem, ouvimos da repressão às lutas reivindicativas das e dos trabalhadores. Como se passou de uma coisa para a outra?

As chamadas experiências de controle operário e cogestão que surgiram depois da greve petroleira de dezembro de 2002 e janeiro de 2003 foram geralmente exageradas pelos militantes nessa época. Além do mais, implicaram numa demanda ao governo Chávez para que as paoie. Num desses intentos de controle operário como Sanitarios Maracay houve inclusive repressão estatal em 2007[1]. Esses militantes, de toda maneira, celebraram muito a reestatização de Sidor, que também implicou uma demanda dos trabalhadores que levou o governo Chávez a assumí-la, mas depois de reprimir marchas de operários sidoristas[2].

Então, houve, sim, episódios de repressão pontual à classe trabalhadora na época de Chávez, que expressavam a lógica chavista de controle militar e policial da mobilização autônoma. Apesar de que nesses anos a maioria da classe trabalhadora estava subordinada ao governo, como consequência do aumento do salário real, as concessões simbólicas e a liderança carismática de Chávez. Porém, quando Maduro perde o apoio da classe trabalhadora, produto de seus ajustes econômicos inflacionário (2013-2017) e macroeconômico (2018-2024), provocou um incremento progressivo da mobilização trabalhista massiva e autônoma. Isso se observa, por exemplo, nas greves nacionais do setor de saúde em 2018 e do magistério em 2019. Nesse contexto, a repressão militar e policial do governo Maduro contra a classe trabalhadora foi generalizada.

[1] https://www.aporrea.org/actualidad/n93805.html. Consultado el 17-09-2024

[2] https://www.aporrea.org/actualidad/n110785.html. Consultado el 17-09-2024


Dossiê Venezuela – Raul Zibechi e Silvia Adoue: Desde sua perspectiva, como as gentes dos territórios do que hoje chamamos Venezuela podem sair desse atoleiro?

Depois das eleições e fraude de 28 de julho, estamos numa conjuntura caracterizada por um refluxo da mobilização política e social, então é difícil observar uma alternativa à consolidação da ditadura antipopular e oligárquica de Maduro. Porém, estou persuadido de que apenas a mobilização autônoma pode permitir uma recuperação das liberdades e direitos democráticos na Venezuela. Sei que o terrorismo de Estado de Maduro e a desconfiança na mobilização autônoma de Maria Corina Machado dificultam a reativação dos protestos e manifestações ao menos até 10 de janeiro, quando Maduro assuma o novo período governamental, e a imensa maioria das venezuelanas e venezuelanos em Venezuela formos decidir se pomos m risco nossas vidas e liberdade nas ruas ou nos exiliamos no estrangeiro ou em nosso interior.


Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.

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