No dia 21 de fevereiro de 1951, nasceu Paulo Alves de Lima Filho, professor, editor do Contrapoder e um dos principais intelectuais marxistas brasileiros. Para comemorar seus 73 anos, estamos publicando a entrevista da Revista Fim do Mundo realizada com o nosso querido Paulo em 2022.
Feliz aniversário, camarada!
Entrevistadores IBEC1
Apresentação | Ivan Lucon Jacob
É com grande satisfação que a Revista Fim do Mundo em sua edição nº7 apresenta a entrevista com o professor e coordenador do IBEC Paulo Alves de Lima Filho. Palf, como é carinhosamente chamado por seus amigos e ex-alunos, é a própria História viva.
Palf exilou-se na União Soviética ainda muito jovem, no início de 1969. Lá, obteve sua graduação em Economia pela Universidade Russa da Amizade do Povos Patrice Lumumba em 1974, e pela mesma universidade obteve o título de Mestre em Economia. Após seu retorno ao Brasil doutorou-se em Ciências Sociais pela PUC/SP em 1993, sob a orientação de Maurício Tratemberg. Antes disso teve uma passagem por Moçambique, onde atuou junto ao Ministério da Indústria e Energia daquele país.
Palf atuou como docente em várias universidades brasileiras, entre elas a UNESP e a FATEC, por onde se aposentou recentemente. A educação, aliás, é central em sua vida, por isso foi deliberado seu nome para compor esta edição, como se poderá perceber em muitas passagens desta entrevista.
Também se destaca como ativo pesquisador, tendo publicado inúmeros artigos e o livro “Pensando com Marx: capitalismo da miséria, organização revolucionária, transição comunista e emancipação”, além de ter organizado os livros “Introdução à formação econômica do Brasil” e “Setas contra o capital: sobre pandemônios na pandemia e as revoluções necessárias”, todos pela Editora Lutas Anticapital. Seu objeto de pesquisa e preocupação maior está sempre na questão da emancipação da classe trabalhadora e os meios para a construção de uma nova sociedade livre do jugo do capital.
O professor Paulo Alves de Lima Filho decidiu introduzir a entrevista intitulado-a:
Educação revolucionária e organização revolucionária – minha trajetória
O assunto sobre o qual me pedem escrever não é nada fácil. Tem caráter autobiográfico sem jamais me haver debruçado sistematicamente sobre ele, a não ser vez ou outra, verbalmente, entre amigos. Como toda autobiografia, é um complexo de processos cuja hierarquia não estamos seguros de saber decifrar e bem podemos ficar tentados a privilegiar uns em detrimento de outros ou mesmo simplificar as relações entre seus vários aspectos. Ou seja, tratá-lo sistematicamente é deveras perigoso e não com poucas reservas me lanço a escreve-lo para atender à encomenda. Desde já tenho certeza de que outros, caso julguem necessário, deverão posteriormente trata-lo com mais isenção e abrangência.
Tal como entendi, o tema é o de como minha trajetória me levou a conceber uma ação pedagógica específica, vinculada a uma determinada concepção de organização revolucionária, com vistas à edição do número 7 da Fim do Mundo. Primeiramente me dediquei a pensar como abordar essas questões. Depois, passei a elencar momentos e processos que me conduziram por essa vereda. Já consegui elencar uns onze. Mais uns dias e, quem sabe, me lembrarei de alguns mais.
Começo por dizer que uma coisa é caminhar em estrada sinalizada, muito outra quando é noite, não há marcos e se está sozinho.
Se não me engano, todos os textos que escrevi sobre este assunto, nem poucos ou muitos, em sua maioria ainda não publicados, partem dos caminhos já descobertos. Neste, tentarei farejar o trajeto.
Os temas já considerados importantes são esses, em desordem sequencial. Primeiro, a influência de meus pais; dois, as leituras e formação científica ao longo da vida; três, vida partidária em Atibaia e seus reflexos em casa; quatro, o golpe de estado de 1964; cinco, minha entrada no PCB até o cisma final; seis, meus dez anos de estudos universitários em Moscou; sete, meus anos de trabalho militante em Maputo; oito, o retorno à pátria e o fim da URSS; nove, a experiência de trabalho docente e o trabalho de tese; dez, os camaradas, amigos, colegas e alunos; onze, a existência da URSS, as revoluções chinesa e cubana, a revolução chilena e portuguesa, a guerra da Indochina e a revolução vietnamita – i.e., as revoluções e processos revolucionários da segunda metade do século XX; doze, o clima revolucionário no Brasil do pós-Guerra; a formulação do PUP.
|RFM| Querido professor PALF, começaremos do começo. O que significa para você ter nascido em um núcleo intelectual de professores comunistas? Como foi sua infância neste sentido? Qual a primeira memória que lhe vem à cabeça quando estamos falando de Revolução?
Antes de mais é bom que se diga que o processo da vida nunca é solitário. Nos fazemos homens entre humanos, entre estes e a natureza não- humana. Todo trajeto é coletivo, por mais que inventemos veredas elas surgem porque caminhamos juntos com os mortos, com os contemporâneos vivos e com aqueles mais próximos, em diálogo com eles. A solidão histórica é ilusória. Sempre devemos quase tudo a todos. O que não invalida a solidão do indivíduo.
O convívio com meus pais e familiares mais próximos creio haver sido o veio decisivo por onde escorreu minha vida. Dali cresci para o mundo, brotei decisivamente. Tudo o mais foi decorrência. Até mesmo a percepção do clima revolucionário do Brasil do pós-Guerra, observado por mim desde os anos 50 devo a eles. Fosse eu o filho de um carola lacerdista, teria visto o país sob luz absolutamente contrária, haveria suposto estarmos caminhando para o inferno da degradação. Mas o certo é que se vivia em estado de exaltação que contaminava a vida e nos jogava para um futuro bem pouco incerto. Os brasileiros estavam inteligentíssimos, tinham opinião sobre tudo e caminhavam a passos largos rumo a um evidente destino de grandeza e brilho. Onde quer que olhássemos lá havia um brasileiro pontificando ao lado de seus semelhantes de outras terras. Parte decisiva da elite letrada e revolucionária se acreditava viver a promessa grandiosa do gigante brasileiro, enfim desperto e ávido por comprimir o tempo ao recobrar velozmente as potencialidades da história, perdidas em quatro séculos de escravismo e mesmice colonial e neocolonial. As instâncias reitoras do passado. Igreja, Forças Armadas, latifundiários e senhores de terras em geral e seus funcionários e guias imperiais não mais determinavam as opiniões populares ou comandavam todas as linhas do teatro político. A ordem reitora tudo ia transformando, moldando rápido um outro país, ano a ano. Supunha-se, diante desta evidência incontestável, sermos um foguete lançado ao espaço, incapaz de ser detido pelo atraso dos mandantes tradicionais. A pátria amada ousava pensar com sua própria cabeça. Até sonhava criar uma sua universidade modelar, onde se forjariam e cultivariam as linhas mestras da emancipação nacional definitiva, a universidade de Brasília, concebida por Darcy Ribeiro, ex-dirigente comunista, antropólogo vanguardeiro, gênio lutador, irrequieto e revolucionário, homem do mundo. Então estaríamos definitivamente palmilhando todos os caminhos humanos, dialogando livremente com a humanidade, sem mais tutelas coloniais e neocoloniais, nativas e forâneas. A revolução era uma poderosa força social, centro dinâmico da impulsão libertadora, presente na vida de todos e cada um. Ao destruí-la, os militares atestaram para todo o sempre os seus sentimentos mais ínitimos, sua ideologia e consequente prática. Até mesmo uma nova capital concebida para os próximos tempos futuros fora inventada e construída com mutirão nacional entusiástico e popular, verdadeira bandeira rediviva. Revolucionários arquitetos e urbanistas, paisagistas e cientistas, artistas plásticos e compositores, migrantes analfabetos e miseráveis, juntos ergueram um futuro no presente, proclamaram uma nova era, ousaram olhar mais além e saltar por sobre a miséria capitalista do capitalismo nativo. A revolução era uma onda avassaladora, um tsunami que tudo e a todos arrastava para longe das ameaças perenes da contrarrevolução, que erguia uma diuturna tempestade tenebrosa e a todos prometia engolfar em seu ódio e afogar no sangue expiatório que verteríamos como paga de nossa ousadia libertária. Contrariamente ao sonho, dito e feito, fomos engolidos pela contrarrevolução. Ela foi o que prometia ser em nossas vidas, um inferno de punições e perseguições, prisões e torturas, mortes, desaparecimentos, mutilações e cremações, banimentos, exílio e autoexílio, tempestade de prisões, mortes, suicídios e
doenças mentais, desalento e tristeza. Assim como a revolução, a contrarrevolução penetrou em nossas vidas, em todos os rincões de nosso vasto continente brasílico, tornou-se nossa íntima companheira de jornada noite adentro. Quis ser o atestado de nosso futuro impossível, de nosso sonho revolucionário. Atestado da negação da possibilidade de sermos livres, alegres e esperançosos.
|RFM| Sabemos que sua infância ocorreu no interior de São Paulo, que seu pai era professor da USP e quadro do PCB, e que, além disso, sua adolescência se confundiu com o golpe militar de 1964. Como viver esse processo justamente nesta fase da vida impactou sua formação individual? Como foi sua inserção no Partido Comunista? Qual a formação recebida no Partido?
A jornada atibaiense definiu padrões de relações que, hoje, percebo estáveis ao longo da vida. A vida social centrada em ações e práticas partidárias vinculadas aos temas da educação popular, da leitura, crítica e debates públicos e privados, à luta ideológica contra as forças do atraso neocolonial – em especial a igreja e seus amigos fazendeiros e ricos locais, assim como com a contrarrevolução nacional e internacional organizadas -, à revolução brasileira que vivia na cidade, no país e que se apresentava nos jornais e revistas que chegavam à casa, às relações com o mundo socialista e sua produção científica e cultural (antes de tudo com a URSS, é evidente, mas também com a China, Cuba e demais lutas internacionais), à violência boçal dos militares e suas ameaças depois cumpridas, à solidariedade dos revolucionários e à flutuação das adesões das classes médias aos grandes temas da emancipação nacional e às suas relações de amizade, enfim, a um complexo de relações que apontavam para um futuro de paz, amizade e solidariedade, de expansão do campo da liberdade, do controle do caos capitalista à criação de uma teia de relações pessoais que tinha essas premissas como centro definidor da vida social. Ali testemunhei a eficácia da liberdade de debate e o rigor exigido pela ciência dita exata como exigência igual do bem pensar social, a militância do partido ilegal em um partido legal (o proscrito PCB ali funcionava tranquila e eficazmente como PSB), a longa teia de relações sociais que alimentava a revolução, a importância vital da existência do campo socialista ao impor à história do mundo, transbordada aos limites municipais, um sentido da biruta cujos ventos apontavam para a emancipação da humanidade. A revolução mundial também impregnava todos os rincões da vida social, ao lado de sua companheira nacional e, assim, o destino em todos os planos da existência, mesmo em largo diapasão, estaria traçado. Vivia-se em um mundo de certezas, embora sabendo-se das incertezas do mundo ainda comandado pelas forças do capital, muito mais poderosas. Não um mundo mirífico ou religioso, porém, embora impregnado da certeza implacável das guerras imperialistas e da contrarrevolução, animado de um impulso dinâmico em espiral ascendente de emancipação humana. Comia-se e dormia-se sob o assédio da contrarrevolução e seu golpe de estado, tocado diariamente em sinfonia cacofônica e contra o qual não se soube criar alternativas, como viria a saber no primeiro dia de abril de 1964. O golpe enfim entrou inesperadamente em cena e nada havia de sério para detê-lo. Passamos a viver, a partir de então e também diuturnamente, nosso grande fracasso. Descera uma cortina negra sobre o palco, havíamos sido expulsos de nossas vidas, assim senti e entendi de imediato. Nada, no curto prazo, viria a transformar essa dura realidade de nossa derrocada. O Brasil inteligente e revolucionário recolhera-se, a contrarrevolução se regozijava com a facilidade de sua vitória.
Então aprendi a realidade do ódio e da tristeza, do desânimo e o gosto amargo do desabamento súbito das esperanças de décadas, o medo e a rota das delações, as inesperadas perdas de amizades antigas e o desabrochar de imprevistas amizades, o rastilho de expulsões, demissões, perseguições e exílios. Mas acima de tudo a triste realidade gritante da incapacidade teórica e prática de enfrentar o caos e organizar uma retirada honrosa. Foi um deus nos acuda a debandada dos amigos e camaradas, cada qual inventando uma rota de fuga supostamente eficaz.
Atibaia é de origem seiscentista, berço das famílias até hoje dominantes no estado, burgo colonial que transitou a neocolônia, entrada em ciclo têxtil industrial no século XX, com estação ferroviária, cosmopolita e ferrenhamente conservadora, embora acompanhando os avanços da revolução de 30, antes de tudo na educação. Seu ginásio público era o terceiro melhor do estado, seus filhos diletos entravam na USP sem necessidade de cursinho e já estavam secularmente na alta administração do Estado. O golpe de estado nos expulsou da cidade. Nela ocorreria o primeiro IPM do Estado. Professores e profissionais liberais foram arrolados em lista já feita desde 1962 pelo então diretor do Ginásio. Talvez supusessem que a revolução brasileira começasse exatamente ali, nos contrafortes da Mantiqueira. As denúncias ocorreram logo nos primeiros meses do golpe.
Atormentaram a vida de muita gente, embora tivessem um final pífio, denunciadas como irrelevantes pela própria promotoria, lá pelos idos de 1967. Meu pai estava entre os denunciados.
Entretanto, desde 1961, ele havia sido convenientemente convidado a ser professor da UnB. Licenciado do Estado, passou a realizar sua adiada pós-graduação, assim como ali exercer funções, preparando os futuros cursos de física do CIEM (Centro Integrado de Ensino Médio), órgão da UnB, assim como os introdutórios à universidade em seus primeiros anos, baseados na revolução pedagógica em processo nos EUA nos campos vitais da ciência, na biologia, matemática, química e física, motivada pelo avanço dos soviéticos na corrida espacial. Minha mãe, também, licenciada do estado, ali tornou-se professora de História. Assim foi que em 1965 nos mudamos para Brasília e no final do mesmo ano saíamos de lá, rumo a São Paulo. Os militares, ao promoverem assédio físico e institucional na UnB, com demissões e ameaças de mais demissões, com a ocupação permanente do campus, criaram situação de embargo sobre o futuro imediato e mediato, desestabilizaram a vida acadêmica, impuseram ao corpo docente dúvidas sobre continuar na UnB. Foi assim que uma boa maioria dos professores mais engajados, pediram demissão coletiva e se espalharam pelo Brasil e mundo, voltando às suas universidades e órgãos de origem. Esse foi o maior feito antinacional da ditadura e dos militares em particular. Com ele, a ordem quartelaria poderia ainda sobreviver por muitas e muitas décadas.
|RFM| O AI-5 foi um divisor de águas terrível na história de nosso país e você viveu esse processo em plena juventude. Como você se recorda de perceber tal aprofundamento do golpe?
Em São Paulo, acabei por ser aceito no vestibular ao Colégio de Aplicação da USP, passando a ser aluno a partir do segundo semestre de 1966. Ali cursei o científico até 1968. Em 1969, após a promulgação do AI-5, a evidência do desastre nacional em curso me fez aceitar estudar na URSS, na Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba, financiada pela ONU e pelos sindicatos soviéticos, concebida como ferramenta a serviço da emancipação dos povos neocoloniais. O Colégio de Aplicação da USP tinha alto nível de ensino, com professores concursados, em geral jovens recém- formados ou cursando a pós-graduação. Boa parte dos alunos e professores altamente politizada e em pé de guerra contra a política educacional da ditadura. Um caldeirão borbulhante, a dar vida aos grêmios, centros acadêmicos e a todas as organizações de representação estudantil, banidas mas atuantes em todos os níveis, secundarista e universitário, municipal, estadual e nacional, escola de iniciação militante e porta de entrada às organizações revolucionárias antigas e novíssimas, PCB, PC do B, ALN, AP, VAR, etc. O clima revolucionário era exaltado, num crescendo após o golpe. As classes médias rasgavam suas fantasias tradicionais comodistas e partiam para o enfrentamento direto da ordem, correndo conscientemente o risco mortal por tal opção. Quando me filiei ao PCB, descartando todas as demais opções, ocorreu uma filiação coletiva, dez militantes de uma só vez. Em pouco tempo seríamos muitos mais. O mesmo ocorreria com as demais organizações. Sendo o Aplicação a vanguarda da luta estudantil secundarista, mais militávamos que propriamente estudávamos. Diante disso, optar por estudar no exterior era preservar o sentido formativo, a preparação para os embates mais decisivos que viriam com o tempo. O militantismo era altamente desorganizador do estudo formal e do revolucionário, uma opção praticista radical e sem futuro. Isso estava claro para mim em 68, de modo que viajei à URSS como opção de libertação do mundinho militante e sua azáfama permanente. Além disso, ele diariamente se tornava mais mortalmente perigoso e nossa militância estava no descontrole, aceitando tarefas para as quais não estava preparada. Aprendi muito, mas na justa medida escolhi me proteger de seu prolongamento. Estudar era fundamental, aprender era vital, conhecer novos horizontes, situar-me no mundo da luta teórica e prática, na profissão e na revolução. Difícil deixar tudo para trás sempre foi difícil, antes, durante e depois.
|RFM| Logo em seguida você partiu para o exílio na ex-URSS… o que significou esta ruptura em sua vida? Muitos jovens como você à época optaram pela luta armada, o que foi decisivo para deixar o país?
Na URSS, meus estudos transcorreram em Moscou. Meu objetivo era estudar física teórica, eu havia sido escolhido para fazer esse curso. Porém, logo nos primeiros dias após a chegada, ao tomar conhecimento das condições concretas de estudo no curso de física, dei-me conta de que não estava disposto a submeter-me à necessária disciplina espartana exclusivista. Descobri que o amor à revolução superava aquele dedicado à física. Tal súbita descoberta retirou-me do solo original e colocou-me diante do dilema de optar por outro curso. Transtornado meu plano, foram muitas as peripécias e sofrimento até chegar um ano depois ao curso de economia, jamais pensado anteriormente.
O curso de economia, vejo agora, décadas depois, era bastante interessante. Fora concebido para preparar profissionais multicapacitados nos vários campos da atividade econômica, em primeiro lugar a industrial e a agrícola. Havia formação básica em vários campos: extração mineral, transformação, agroindústria, gestão e planejamento, etc. Não era um curso tradicional, era declaradamente profissionalizante, com estágios anuais em estabelecimentos desses campos, localizados em várias regiões da URSS. A formação propriamente teórica ocupava um espaço secundário, embora houvesse, é claro. A base matemática era muito forte, réplica da formação em engenharia, talvez concebida para aqueles que desejassem prosseguir a formação em planejamento econômico. Muito Lenin, muito manual de economia política – geral e do socialismo – filosofia (a vulgata marxista leninista), história do socialismo. Pouquíssimo Marx e História geral. Somente pude me dedicar ao estudo sistemático do Capital nos três anos de pós- graduação, nos quais consegui formular meu projeto de tese, usado no Brasil, após meu retorno, para meu doutorado. A intensa luta ideológica em processo nos anos sessenta, que desaguaria na perestroika, ocorria abertamente nas salas de aula, em lançamentos de livros, na imprensa, obscurecidas, porém, as suas matrizes teóricas, sob a aparência da disputa entre planejadores e administradores, entre o planejamento econômico e a microeconomia. Lutava-se abertamente, sem jamais o declarar, pela eficiência do capital em termos capitalistas, disfarçados de socialismo verdadeiro, contra o suposto desperdício da economia socializada planejada. Marx jamais foi usado nesse debate e a transição comunista concebida por este era um conceito jamais lembrado. Os termos da transição, contudo, eram inequívocos, formulados pela equipe de Krushev logo após o XX Congresso do PCUS em 1956, que já haviam sido consagrados no XXII Congresso em 1961, concebido o rumo ao comunismo como sendo a superação do padrão de vida dos EUA. Importa dizer que fui me dar conta dessa trama somente quando o periscópio da perestroika aflorou e ela mostrou-se por inteiro, fantasiada de modernização socialista, quando Gorbachiov era, então, incensado como grande reformador comunista.
|RFM| Sabemos de sua importante passagem como enviado do Partido Comunista na Moçambique recém independizada, o que poderíamosdestacar sobre o sistema educacional moçambicano durante a Revolução? Que aprendizados da experiência moçambicana, seu contexto de colônia ainda pulsante, o papel URSS, são determinantes para a sua formação intelectual e humana?
Em 1978 expira o prazo de minha pós-graduação. Não posso retornar ao país pois tive meu passaporte cassado desde 1975, quando terminava minha graduação. Consulto Prestes e sou informado sobre recente acordo de cooperação científico-técnica do PCB com a FRELIMO. De imediato me candidato a trabalhar como cooperante pecebista em Moçambique, mas somente em setembro de 1979 minha família e eu pudemos viajar. Entrementes, ao longo dos anos 70, acompanhando a evolução da contrarrevolução na URSS, a luta interna do PCB se aguça sem trégua. O retrocesso liberal acomete o PC italiano e parte significativa do CC do PCB embarca no eurocomunismo. Não concordo com essa suposta nova teoria que, enfim, supunha superar o trauma soviético. Para esclarecer o que já foi dito e o que virá, necessário dizer que, além de me esforçar por ser o melhor aluno possível e exemplar pai de família e marido (o que não significa que fosse simultaneamente todos esses personagens), não bebia (iniciei minha carreira alcoólica lá pelo trinta e tantos anos). Além dessa vida monacal estudantil e familiar, dedicava-me a adorar conversar sobre política, vida partidária, revolução, livros, comunismo, União Soviética e quetais. Esse tipo de intelectual revolucionário tem uma vida muito especial, seguramente intragável para o comum dos mortais. Vivia nessa redoma, vivo nela ainda. Infelizmente, da mundanidade somente me atrai a vida cultural e, assim mesmo, nem tanto. Adoro ler e escrever e, se tivesse mais tempo, como tenho agora sendo aposentado, gastaria boa parte de meus dias nessa faina. Fumava, não muito, um maço ao dia, com inúmeras paradas, umas mais prolongadas que outras. Até a defesa do doutorado. Após ele, nunca mais.
Dito isso, após a escola negativa da URSS, despenco na escola positiva de Moçambique. Já não era mais um aluno, era um profissional contratado em meu primeiro emprego público, no Ministério da Indústria e Energia, lotado na Direção Nacional da Indústria Metalúrgica e Eletromecânica, em Maputo. Recém-formado, tudo seria aprendizado, tudo era novo e brilhante, entusiasmante, interessante, exaltante. Desde o primeiro (e último) empregado doméstico que, ao se apresentar a mim, joga-se a meus pés como demonstração de respeito, até meus companheiros de trabalho e suas vidas complicadas, sobrevivendo à penúria alimentar e contingências políticas da jovem república. Sobrevivência muito mais complicada para os cooperantes pecebistas, os mais mal pagos de todos os cooperantes, o que obrigava nossos empregados nativos a verdadeiros milagres aquisitivos, ao enfrentar as longas filas de espera. Passo a viver outro tipo de vida, a exigir outras solidariedades e práticas sociais e profissionais. Não há livrarias, nem concertos, nem bares abastecidos. O consumo de padrão ocidental somente se encontrava nas lojas francas, acessíveis somente com moeda estrangeira. Vivíamos mesmo era de carapaus, angú, arroz, uma que outra vez carne bovina e frutas. Ainda bem que minhas filhas se alimentaram bem em sua primeira infância. Em casa, bebia-se chá. Nossa pobreza alimentar foi a tônica dominante. Em compensação morávamos em uma bela casa de dois andares, em rua arborizada e cercada de belas casas, com vizinhos brasileiros e chilenos, em bairro de moçambicanos, mas do lado antigamente habitado pela burguesia. Casas abandonadas pelos antigos moradores, mobiliadas, ao lado do palácio presidencial. Estávamos bem protegidos.
Desde o primeiro dia, passámos a viver, além da revolução moçambicana em processo, o drama da acirrada luta interna do PCB. Em Moscou isso ficava um tanto mitigado, pois, afinal, éramos estudantes e tínhamos urgências acadêmicas inadiáveis e complexas. Em Maputo, vivia-se a crueza da luta e suas reverberações. A maioria esmagadora de nós apoiava a posição de Prestes e sua Carta aos comunistas, de março de 1980. Supúnhamos que o partido se racharia e o Velho construiria conosco um novo partido revolucionário. Ledo engano. Dedicamos muito tempo e energia planejando as lutas futuras, mas, ao final, fomos por ele convidados a entrar no PDT ou PT. A montanha pariu um rato. Na realidade, o velho grupo dirigente não tinha ideia do que seria tal partido e a maioria dos seus apoiadores intelectuais era francamente composta de não marxistas- leninistas e antiestalinistas. Para ele, uma mistura impossível. Os relatos que ouvi sobre as reuniões de unificação foram tétricos. Não havia liga entre as várias tendências aglutinadas. O nosso fim foi merencório. Em Maputo, diga- se, meia dúzia de apoiadores do CC conclamaram a maioria da militância, uns quarenta e tantos camaradas, a realizar uma autocritica como meio de voltar ao convívio partidário. Caso contrário, estaríamos automaticamente expulsos. Situação inédita e perigosa, pois afinal éramos cooperantes partidários. Nos declaramos membros do PCB, não acatamos a decisão das instâncias nacionais, criamos um jornal, continuamos nossa vida militante. Ao retornar, em 1983, não mais soube das peripécias posteriores. Todos os amigos mais próximos, que poderiam me esclarecer sobre isso, foram abatidos pela Covid. Afora o metabolismo partidário em pane, desenvolvi intensas leituras e escrevi sobre a questão da revolução socialista, em busca de explicações teóricas. A vivência de duas revoluções desse tipo me ajudava, uma delas em seus estertores finais. A questão do partido revolucionário foi outro campo de estudos e debates. A indicação de José Chasin (conhecido de meus pais e de quem me tornei próximo, assim como de sua família), sobre o texto de Lenin, de 1902, Carta a um camarada sobre questões de organização, que pela primeira vez era traduzida do russo ao português, publicada no oitavo número da revista Escrita Ensaio (1981), editada pelo grupo chasinista, foi uma verdadeira revelação. Sua concepção diferia radicalmente da oriunda da II Internacional, que permaneceria no partido de Stalin e depois soviético, universalizando-se. Na posição de Lenin, as funções teórica e prática são distintas e separadas e atuam concomitante, independente e dialeticamente, guiadas pelas linhas gerais de um programa comum a todos os militantes. Ali estava o inexistente enquadramento substantivo do centralismo democrático do velho estatuto da socialdemocracia alemã. Os diferentes campos de expressão teórica do partido revolucionário estavam legalizados, assim como a luta entre eles, único modo de dirimir suas contradições. Não havia outro modo de manter a investigação do real no mais alto e necessário nível possível e assim faze-la aprimorar permanentemente o programa partidário, de modo a possibilitar a decisão correta nos momentos mais decisivos da vida da revolução. Qualquer outra concepção aviltaria a teoria e sabotaria a prática, afastando- se da possibilidade de encaminhar corretamente a luta pela revolução necessária. Esta seria a posição de nossa ala na luta por um novo PCB. Infelizmente, esta concepção de Lenin estava muito além dos limites teóricos das concepções dos velhos camaradas dirigentes. O desejo de criar um novo partido revolucionário estava muito além das forças reais de Prestes e seus mais próximos. No que respeita à história das revoluções socialistas, saltava- me à vista, nesse período moçambicano, sua similitude com a experiência dos estados absolutistas. Esse tema transitará à tese de doutorado e se desdobrará nas investigações posteriores, até o atual estágio da descoberta do caráter particular dessas revoluções conservadoras, quando duas revoluções simultâneas ocupam a cena histórica, a de uma classe trabalhadora se emancipando do capitalismo da miséria, forma neocolonial particular às revoluções nos espaços ex-coloniais ou do capitalismo neocolonial nos espaços do atraso conservador europeu, realizando uma transição anticapitalista contra as formas históricas desses capitalismos particulares, e outra, desta mesma classe e outras camadas sociais aliadas a ela, contra o capital, realizando uma transição comunista prematura, muito aquém das condições históricas suficientes para tal processo, antes de tudo o incipiente ou insuficiente desenvolvimento das forças produtivas do trabalho. Fato que nas condições atuais da revolução tecnológica em curso, de matriz microeletrônica, já em sua segunda ou terceira etapa, é deveras menos impeditivo de trânsito rápido do que era nas primeiras décadas do século XX.
|RFM| Você já nos disse algumas vezes que seu exílio foi no Brasil, quando voltou de Moçambique. De toda maneira, aqui você teve uma carreira como professor e hoje está aposentado. Você deu aulas na UNESP, na FATEC, na PUC-SP e em uma série de outras universidades privadas. Nesta trajetória, imagino que você tenha presenciado uma mudança na universidade pública em termos de acesso, professores, grade curricular etc. Foi marcante neste período a política de cotas, que ampliou o acesso de negros e negras à universidade pública. Ainda assim, na sua perspectiva, quais são as conquistas da universidade pública e quais os limites deste modelo de universidade?
6. Meu retorno de Moçambique ao Brasil, após quase quatro anos de trabalho e quatorze após 1969, ocorrerá sem prévio planejamento, o que resultou ser um erro tremendo. Hoje ainda tendo a minimizá-lo, dado certas circunstâncias atenuantes: em primeiro lugar, minha ignorância sobre as exigências do universo prático da reinserção e a consequente imprevidência por não levá-lo em conta, ausência de interlocutor qualificado (um problema várias vezes enfrentado por mim, a ignorância do jovem e a ausência da sempre necessária e vital supervisão de seus passos na vida adulta por alguém qualificado para tal), o esfacelamento da rede de relações partidárias outrora existente, em virtude da crise do PCB, fato talvez ignorado por mim, que afetaria o núcleo de minhas antigas relações que eu supunha firme e forte. Ou seja, a solidariedade, força poderosa que nos movera pelo mundo, havia sido destruída, a contrarrevolução havia implodido o coração da sua matéria. Sem o saber, eu estava reduzido a um reles indivíduo qualquer, perdido no oceano das contingências históricas daquele momento. Era como entrar um uma prisão, despojado de minha humanidade singular, de meu trajeto pela vida. Eu era, de fato, um estrangeiro na própria terra. Meu percurso, até decidir-me a seguir a carreira acadêmica, lá por 85, se não me engano, foi cheio de peripécias. O certo é que nenhum antigo camarada ousou me encaminhar para nenhum emprego, com honrosas exceções que me permitiram trabalhar no Seade e Cetesb, até começar o trabalho acadêmico, do qual me afastaria definitivamente somente em 2017. Fiz novas e duradouras amizades, fora do âmbito ancestral pecebista, novos horizontes, novos veios de entendimento da sociedade brasileira. Mas o que de fato eu desejava era uma atividade revolucionária, a continuidade do estágio moçambicano. Um primo ex-militante pecebista e muito conhecido de minha mãe, retornado do exílio com a anistia, aliás primo em segundo grau dela, era diretor da principal empresa de planejamento do Estado e já havia contratado boa parte dos exilados repatriados, mas o grau de desarticulação da rede ancestral era tão grande que somente anos depois viria a saber dele. Nada mais distante da militância revolucionária do que o trabalho burocrático no estado e nada mais próximo desse desejo que a atividade docente. Decidi-me por ela sem jamais haver cogitado segui-la. Foi a única saída digna possível vislumbrada mais ao meu alcance. Então reorganizei minha vida realinhando-a ao interrompido trajeto da pós- graduação, consegui tornar-me professor de várias faculdades de economia, incluídas a Escola de Sociologia e Política e PUC de São Paulo e posteriormente as Faculdades São Francisco de Bragança Paulista, em trânsito à sua conversão em Universidade São Francisco, operação entre a família Lupion do Paraná e a Ordem Franciscana. Nesta última criei o Departamento de Economia, basicamente contratando professores da PUC- SP, alguns dos quais, posteriormente, vieram a ser meus colegas, a partir de 1988, no Departamento de Economia da UNESP de Araraquara, como é o caso do meu camarada Adilson Marques Gennari, recém aposentado dali, hoje aportado no Recife, seguindo a carreira da sua esposa. Simultâneo a essa proletarização pluridocente, iniciei um curso de doutorado especial na Unicamp, que visava formar quadros para a administração do Estado nos governos da Nova República, onde se supunha vira a suceder uma fieira de presidentes pmdbistas. Cursei um ano desse doutorado, sendo sumariamente afastado de suas fileiras devido ao trabalho de curso da disciplina de história do estado brasileiro, se não me engano (em todas as demais obtive boas notas). Apresentara nesse trabalho o núcleo do projeto de tese, já concebido em Moscou, acrescido de estudos que estivera fazendo ao longo desses primeiros anos brasileiros. Ele destoava e mesmo negava, confesso, o sentido da tese matricial da assim chamada escola unicampista, a tese de doutorado de João Manoel. Minha heresia foi punida com o meu afastamento sumário, sem qualquer aceno de acordo. Logo após, minha nova e grande amiga Cibele Rizek salva-me desse precipício, fazendo-me transitar às asas de Octavio Ianni, então professor do programa da pós das Ciências Sociais da PUC-SP, para onde me transfiro. Aí defendo minha tese em 1996. Passo em concurso de 1987 para a cadeira de História econômica do Brasil do Departamento de Economia da UNESP de Araraquara e em 1988 passo a lecionar, abandonando todos os empregos que tinha nas faculdades e universidades paulistas. Continuo a morar em São Paulo e me transformarei, na definição do professor Maurício Tratemberg, em “professor de carreira”, em referência à carreira do ônibus. Ali serei professor até 2003, ocasião em que me demitirei, após episódios rocambolescos de perseguição política explícita.
A carreira unespiana consta de estágio probatório de um ano e mais quatro avaliações do regime de tempo integral (RJI) realizadas a cada três anos por meio de relatório circunstanciado. Meu último relatório do RJI (relatório de jornada integral), aprovado no departamento, tem extrema dificuldade de ser aprovado pela congregação da faculdade, travar-se-á aí uma verdadeira guerra. Muito embora meu departamento tenha aprovado o meu relatório, o representante do meu departamento na Congregação não o aprova, peleja contra a sua aprovação. Creio que somente após umas três reuniões conseguimos aprova-lo nessa instância. Aprovado, ele subirá para a reitoria, onde funciona a comissão permanente do regime do tempo integral (CPRT), que deveria chancelar a decisão da Faculdade de Ciências e Letras (FCL). Para minha surpresa, a decisão da congregação é cassada, meu relatório desaprovado e meus vencimentos diminuídos ao seu nível básico, uns quinhentos reais. Isto inviabiliza a reprodução de minha vida econômica, reduzida amenos de 1/10 de seu montante e me lança no caos desse imprevisto. Sou obrigado a impetrar um mandado de segurança e passo a tratar com o reitor de então o meu destino profissional. Não fossem meus bravos e abnegados e voluntários escudeiros, Luiz Antonio Amaral, Sergio Gertel, Álvaro Martin Guedes aos quais, na etapa de batalha na reitoria se alia Antônio de Arruda Penteado, velho amigo de meus pais, a guerra não haveria chegado a bom termo. Após mais de seis meses de batalha, que estraçalha minha vida e até meu casamento, recebo um pedido de desculpas do reitor e a restituição de minha condição de professor pleno. Mas a desgraça estava feita. Mais além das indescritíveis conversas com o reitor, felizmente em presença de pelos uma de minhas testemunhas e defesa,
Álvaro ou Penteado, da guerra na congregação da FCL, sobrepôs-se o asco para com o meu departamento. Afinal, fora ele o guerreiro direto contra minha permanência nele. Decido, após uma tentativa de afastamento negada – afinal, eu tinha que arranjar a minha vida – demitir-me da UNESP e assim o fiz sem titubear. Esta história um dia ainda será contada em detalhes, mas antes disso, importa relatar minha experiência docente na UNESP.
|RFM| No meio dessa trajetória você liderou uma ideia de alternativa à educação hegemônica. A ideia de um projeto de universidade popular, o PUP, que reuniu dezenas de estudantes da Unesp no início dos anos 2000. Na ocasião, propunha-se pensar uma universidade voltada aos interesses da emancipação humana, com incursões em regiões devastadas pela sanha da acumulação capitalista, como o Vale do Ribeira, por onde passaram, e não vingaram, todos os ciclos econômicos desde a colônia, deixando rastros de miséria social e destruição ambiental. No entanto, a expressão “universidade popular” já foi usada em experiências anarquistas no início do século XX no Brasil. A Universidade Popular constituiu-se centro de lazer e cultura e pretendia formar trabalhadores no ensino superior, especialmente voltada a um público da área urbana e vinculado à indústria nascente, numa perspectiva autônoma e autogestionária. Existe convergência entre essas duas propostas?
Minha experiência docente na UNESP, contudo, foi extremamente rica. Li e escrevi muito na bela biblioteca central dirigida por Mara Collucci, minha amiga de infância. Fiz muitas amizades e adquiri um bom tanto de conhecidos, algumas grandes amizades, já citados aqui, e mais algumas outras. Ministrei várias disciplinas, não tantas quanto as das primeiras faculdades e universidades privadas. Em grande medida vinculadas à economia política e ao planejamento. Quase nada na área de história econômica do Brasil, para a qual prestei concurso e passei em primeiro lugar. Na corrida pelas acomodações departamentais e devido à minha ignorância das manhas acadêmicas, cedi à proposta de troca da disciplina de entrada. Ao invés da disciplina de concurso, me foi proposto planejamento econômico, objeto de minha dissertação, disciplina recém vaga, enquanto que a concursal passou-se a meu concorrente, sem formação em planejamento. O que me pareceu satisfatório e a todo o departamento foi uma pequena tragédia dentro do enredo trágico maior. Ao invés de sentir-se agradecido, o professor agraciado com a gambiarra da troca que o deixara tranquilo em sua área de formação, bufou, esperneou e escoiceou contra mim durante todos os anos de minha permanência no departamento. Além disso, moveu campanha sistemática de calúnias contra mim junto às turmas de sua docência e, creio, junto aos seus amigos, meus novos colegas. Infelizmente só fiquei sabendo disso muitos anos mais tarde, próximo de meu afastamento voluntário. A alta taxa de conivência da maioria dos professores do departamento, oriundos da Unicamp, bloqueou a informação sobre essa delinquência acadêmica. Esse era, aliás, um dos problemas departamentais constitutivos. Outro, relacionado diretamente a esse, o fato de que ainda não havia pós-graduação no jovem departamento e, evidentemente, o destino dela estava e esteve ligado a essa maioria. Por último, havia diferenças teóricas profundas com essa maioria. Seríamos não mais de seis os professores com alguma formação marxista, ao passo que a maioria unicampista tinha uma formação positivista, liberal-social, mais um ou outro com formação ortodoxa, de direita, uspiana. Uma quadratura impossível. O que de fato valia a pena eram os alunos, com os quais era possível estabelecer ricos níveis de convivência intelectual e social. Em geral oriundos de famílias remediadas de classe média, uns poucos de famílias ricas. Em sua boa porcentagem de descendência italiana, sendo os brasileiros mais antigos, em geral, os representantes das famílias mais pobres. Todos mais ou menos conservadores, embora jovens, ou seja, abertos para a possibilidade da transformação social. Apliquei-me a seguir uma certa tradição pedagógico-emancipacionista dos intelectuais acadêmicos comunistas, tais como Abrão de Moraes, Samuel Pessoa, Darcy Ribeiro, meu próprio pai e tantos mais. Trata-se da descoberta de um certo padrão empírico, evidenciado em sala de aula, válido para disciplinas científicas de matriz social ou da natureza, em níveis mais ou menos abstratos e em qualquer estágio da formação, da graduação ao pós- doutorado. Em geral, em cada sala, teremos pelo menos dois alunos que se destacarão e disputarão entre si o domínio maior do objeto científico, emulando-se ao longo do curso. Serão exatamente esses alunos a serem resgatados da mediocridade acadêmica (em geral, dispostos a tal) e elevados a objetos da máxima dedicação pedagógica possível por parte do professor ou coletivo de professores, de modo a salvá-los para o pensamento emancipado, científico e, consequentemente, transformador, dialético e, consequentemente, à ação prática de igual calibre. Salvá-los para o Brasil emancipado, substantivamente independente. A isso me dediquei com relativo sucesso nos quinze anos de docência na UNESP e, em geral, por onde estive lecionando ao longo destes últimos trinta e tantos anos. Daí nasceram várias denominações grupais desses alunos, NES (Núcleo de Estudos Socialistas), NEC (Núcleo de Estudos Contemporâneos), até chegarmos à atual, IBEC (Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos). Nela estão congregados os meus mais brilhantes alunos, em sua maioria doutores e quase todos professores universitários nas melhores universidades públicas do Estado de São Paulo (e na só), ou então, bons profissionais duplicados em outras profissões, juristas, médicos, etc. Há algum tempo passamos a editar uma revista teórica no portal da UNESP, Fim do Mundo, onde esta entrevista sairá em seu número sete, sob o tema de Educação. Um de nossos mais jovens mestres, antropólogo formado na PUC, criou o Instituto Maíra, de estudos pesquisas na área da antropologia, em particular dos indígenas brasileiros. Mas voltando ao tema da sua formação, esta foi tomando formas cada vez mais coletivas, todos desenvolvendo e debatendo seus futuros temas de pesquisa desde os primeiros anos da graduação, de modo que seus trabalhos de conclusão de curso já eram verdadeiras dissertações, o que muito lhes favoreceu a entrada, desempenho nas pós-graduações e concursos acadêmicos. Foi assim que em dado momento de suas graduações, reunidos mais de trinta alunos no grande mesão da sala de congregação a FCL, em discussão sobre questões de educação, surgiu o tema da situação do Vale do Ribeira, levantado por aluno daquela região. Na discussão sobre o Vale constatou-se sua particularidade colonial e neocolonial, assim como sua singularidade miserável. No coração do mais rico estado brasileiro, existia um espaço socioeconômico em tudo devedor de seu passado colonial, incapaz de escapar ao destino neocolonial miserável. Comovidos com a descoberta, decidiu-se formular um projeto de ação transformadora, centrada em projeto educacional diferenciado que denominamos Projeto Universidade Popular (PUP). Tal projeto estava concebido para ser o eixo da transformação do Vale no sentido de emancipá-lo através da ação coletiva de equipes de alunos e professores do sistema de ensino universitário público, UNESP à frente. Durante praticamente um ano, ao longo de 1999, debateu-se o PUP e formaram-se muitas e diferentes equipes temáticas, agregando alunos de outros departamentos da FCL e outros campi da UNESP. Nesse ínterim tratou-se de contatar todos os municípios do Alto e Baixo Vale, combinando com seus respectivos prefeitos as datas de visita, condições de transporte, alojamento, alimentação e contatos com a comunidade. Quando nos despencamos para o vale, em ônibus cedido por uma de nossas faculdades, tudo estava impecavelmente planejado, tudo acertado para a mais eficaz ação de nossos alunos e suas equipes. Contamos com o apoio da reitoria e diretores de faculdades, além do entusiasmo dos alunos pesquisadores-transformadores. O PUP, nossa bandeira de entrada no Vale, foi um imenso e inesperado sucesso de ação prática com preparação teórica prévia e elevação intelectual permanente. Todos os que nela participaram ficaram eternamente tocados e porque não dizer, transformados pela experiência da descoberta do Brasil real, dos brasileiros reais a viver suas seculares vidas miseráveis, tão necessitados de apoio, estímulo e saber, quanto abandonados à sua ingrata sorte, à sua solidão histórica. Com isso, descobrimos uma forma de escapar à mediocridade da formação acadêmica, à impotência dos intelectuais em tempos de contrarrevolução e quietismo dos explorados. Não uma forma qualquer, porém altamente revolucionária e eficaz sob vários aspectos socioeconômicos e culturais, assim como dos estritamente didático- pedagógicos. Uma forma encontrada através do trabalho intelectual coletivo emancipatório, de modo que esta descoberta é capaz de gerar outras muitas réplicas e novas iniciativas assemelhadas, dando sentido contratendencial à vida acadêmica e política de alunos, professores e porque não, da própria universidade. Mas era o último ano de administração do MDB, o ano 2000 e as décadas posteriores estiveram sob a batuta do PSDB. O PUP nunca mais foi apoiado e a experiência exitosa foi esquecida, como era de se esperar.
|RFM| Considerações Finais
O projeto de ação coletiva emancipatória do IBEC foi execrado, seu êxito foi temido, seu esquecimento e não pouco das pressões sofridas por alunos e professores, após o ano 2000 se devem às potencialidades do PUP. A bem da verdade, nenhum grupo ou organização política da ordem, nem mesmo aqueles com os quais andamos trabalhando posteriormente lhes deram maior importância ou o abraçaram. A esquerda da ordem está longe de projetos emancipatórios, ela teme tais projetos, pois desvinculadas de verdadeira emancipação seja das classes proletárias, seja da própria nação. Ela gira na órbita das camadas médias urbanas, na manutenção e garantia de ascenção de seus quadros, na capitalização de suas organizações, na produção e reprodução de seu poder institucional dentro da ordem.
A nova ordem mundial dita neoliberal tem por meta varrer, tanto nas órbitas neocoloniais quanto nos centros imperiais, as formas históricas do capitalismo e substituí-las por espaços nacionais decadentes e predados pelas forças que se prestarão à demolição das nações, às novas milícias anticapitalistas do capital financeiro. Operação suicida, digamos mesmo fadada ao fracasso, pois sua eficaz realização significaria uma regressão civilizatória tão espetacular que dificilmente se encontrarão povos realmente desejosos de submeter-se a essa contrarrevolução sem fronteiras e ao retorno da miséria universal. Embora saibamos das vastas possibilidades da violência extremada – a guerra infinita dos EUA já o demonstrou e a II guerra mundial é inequívoca – difícil crer em tal grau de submissão nacional aos desígnios desse novo poderosíssimo capital financeiro. A guerra defensiva da Rússia na Ucrânia, contra a operação de cerco e abate movida pela OTAN à Federação Russa em que a Ucrânia serviria como uma espécie de Paquistão para a Índia, bem evidencia os primórdios da IV guerra mundial e os limites da submissão ao mundo unipolar liderado pelos EUA. Na realidade, pior que um novo Paquistão, a Ucrânia estava concebida para ser um nova Alemanha nazista, só que desta vez a Rússia decidiu cortar o mal pela raiz. À nova era das hordas milicianas se agregarão os novos exércitos de dissuasão e guerra a quente do imperialismo. A humanidade será novamente posta à prova de modo dramático e imprevisível. O imperialismo fará de tudo para tentar reverter a possibilidade de ruptura da ordem unipolar, tal como já em processo com a destruição do forte apache ucraniano. A arremetida feroz está agora prevista e já direcionada contra a China.
Em um mundo em que o esfarelamento nacional e das classes proletárias está concebido como política imperialista estratégica, é evidente que fazer avançar o controle do capital sobre a produção e reprodução do saber se trata de momento vital. Jamais a alienação do trabalho docente avançou tão célere e eficazmente, como através das aulas virtuais propiciadas pela pandemia da Covid 19. O professor, passou a ser um reles operador da máquina, subtraído à presença direta dos alunos, algo que ainda não havia sido subvertido pelo capital. Isto se põe na dimensão comparativa de subtrair o livro ao contato, à leitura direta, colocando-se entre ele e o leitor uma instância intermediária controladora, reguladora, o que de fato ocorre, pois o professor deveria ser o indutor de uma certa leitura. A alienação do professor do processo docente presencial aliena também o livro, ou seja, a produção teórica ou artística do autor. É um golpe tremendo, o professor passa a ser transformado em operário fabril de uma fase histórica que precede a atual revolução tecnológica de base microeletrônica já em sua segunda ou terceira fase. Seria quase como a decretação de sua desnecessidade.
|RFM| Assim sendo, após todas essas experiências, como o tema educação foi assimilado teoricamente como sendo estratégico para a transição prática do modo de produção capitalista para o comunista? Dentre os vários descaminhos e desventuras do socialismo no século XX, como o determinante tema educação pode também explicar o divórcio dos revolucionários profissionais com o comunismo?
O tema da educação tem pelo menos duas dimensões vitais. É um processo que imprime nas gerações futuras o trajeto da humanidade, ao mesmo tempo que forja a possibilidade de a humanidade apossar-se das novas forças produtivas e transitar a novos horizontes emancipatórios. Desse modo é forjador de homens emancipados que são postos a operar como forjadores de uma humanidade emancipada por meio da ação dos trabalhadores capazes de operar, produzir e reproduzir as novas forças produtivas de matriz microeletrônica que pela primeira vez na história do capital são um empecilho ao livre desenvolvimento dessas novas forças. A educação revolucionária, emancipacionista, deve ser modo vital de conquista de uma humanidade capaz de libertar-se das forças que a alienam do cultivo e exercício de suas reais necessidades, antes de tudo do capital e do estado. Daí que a transição comunista só poderá ocorrer sob esse preceito, contra o capital e o estado. Enquanto o capital e o estado forem as relações sociais a comandar a produção e reprodução das sociedades politicamente revolucionadas, sem quaisquer práxis de sua superação substantiva, a assim chamada revolução socialista será uma forma histórica evidente de não transição contra o capital e o estado, de que não estamos em fase alguma de transição comunista, mas, sim, de continuação do controle do capital e do estado. Este até poderá ser uma forma contrária e mais evoluída de sociedade do capital do que as formas históricas dos capitalismos da miséria, ou seja, de um anticapitalismo neocolonial. Este, entretanto, não desagua no comunismo nem se projeta nesse sentido histórico. |FiM|
São Paulo, junho de 2022.
Entrevista publicada orginalmente em https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/RFM/article/view/13401