As incertezas causadas pelo coronavírus atingiram todas as camadas da sociedade. Os artistas e a produção cultural foram um dos setores mais atingidos na pandemia. Para falar sobre isso e sobre a Lei Aldir Blanc, entrevistamos Inti Queiroz*.
Contrapoder: Depois de muita luta foi aprovado o auxílio emergencial para os trabalhadores da cultura. Qual a importância dessa aprovação?
Inti Queiroz: A cultura foi o primeiro setor a parar suas atividades por conta da pandemia. Não houve nem a possibilidade de um período de adaptação. Na primeira quinzena de março já estávamos todos parados e com contratos desfeitos. Não havia possibilidade de conseguir renda no primeiro semestre do ano. Esse projeto de lei foi inevitável. Foi aprovado por consenso no Congresso após um longo processo de tramitação, com milhares de pessoas de todo Brasil envolvidas. Foram dezenas de reuniões, lives, novos grupos no whatsapp, webnars, telefonemas e emails para deputados e senadores. Além do projeto em si, que se sancionado integramente por Bolsonaro nos próximos dias poderá apoiar milhares de trabalhadores da cultura e espaços e pequenas empresas do setor, há outros fatores que o tornam ainda mais relevante. A mobilização acerca dele possibilitou a reorganização do setor. Agora secretários, conselheiros, agentes e dirigentes de cultura de todo o Brasil estão ainda mais em diálogo na rede. Isso já acontecia, mas nos reorganizamos. Além disso, outro ponto de extrema importância é que a distribuição dos recursos para os estados e municípios poderá finalmente iniciar parte muito importante do Sistema Nacional de Cultura, os repasses fundo a fundo. Algo que vínhamos lutando para acontecer há pelo menos dez anos. Com isso, faremos pela primeira vez o teste de enviar a partir do Fundo Nacional de Cultura recursos a fundos estaduais e municipais de cultura. Há inclusive a previsão da criação de um observatório autônomo feito por nós da cultura, para verificar se de fato esses recursos estão sendo distribuídos e se estão chegando nos trabalhadores da cultura como devem.
Contrapoder: No que consiste a Lei Emergencial de Cultura, que ficou conhecida como Lei Aldir Blanc?
Inti Queiroz: A Lei Aldir Blanc é fruto da junção de outros 5 projetos de lei federais e busca apoiar trabalhadores da cultura, espaços e empresas de cultura em tempos de pandemia. Para isso, a lei conta com diversas ferramentas para a distribuição de mais de 3 bilhões de reais, recursos provenientes do Fundo Nacional de Cultura e do orçamento federal 2020. Esse recurso já estava destinado para a cultura e parte dele estava parado há pelo menos uns 2 anos no FNC. Entre os benefícios estão uma renda básica de R$ 600,00 para aqueles que não conseguiram a renda básica geral dos trabalhadores e também uma ajuda de 3 a 10 mil reais para pequenos espaços e empresas de cultura de todo país.
Contrapoder: O governo Bolsonaro tem desmantelado a política cultural no país. Como o setor vem sentindo essa política de ataque? Esse projeto ajuda, de alguma forma, a conter esse desmonte?
Inti Queiroz: Bolsonaro sempre foi um inimigo da cultura. Antigo. Quando era deputado federal, foi o único no plenário a dar voto contra a PEC do Sistema Nacional de Cultura em 2012. Também votou contra o projeto de lei Cultura Viva em 2014. Ambos não foram aprovados por consenso no Congresso, por conta desse único voto contrário. Já sabíamos quem ele era bem antes da maioria do país. É difícil conter o desmonte pois ele foi gigantesco nesses últimos 3 anos, desde o golpe. Com Temer muitas coisas também foram desmontadas. Porém com Bolsonaro não existe possibilidade alguma de construção e estamos navegando a deriva. Foram dezenas de casos de censura que até são difíceis de enumerar. Os secretários Alvim e Regina Duarte, e seus comportamentos explicitamente fascistas também foram situações que esperamos que nunca mais sejam repetidos. Não temos um secretário de cultura agora. Não sabemos o que virá por aí até porque todos os ministérios estão sendo distribuídos ou para amigos, ou para militares ou para o centrão (surreal dizer isso, mas se bobear alguém do centrão seria um pouco menos nocivo para cultura nesse momento). Mas como disse antes sobre a importância da lei, ela ajuda a reorganizar o setor e também testa o mecanismo do repasse fundo a fundo pela primeira vez. Isso é um trunfo e tanto para que possamos ter alguma vitória nas políticas culturais futuramente.
Contrapoder: A produção artística sempre é uma importante arma contra regimes autoritários, portanto sua pauperização é estratégica para o governo. As nomeações do governo para a área refletem uma intenção de utilizar o setor para seu projeto autoritário?
Inti Queiroz: Sim, sem dúvida. Porém, mesmo que eles tentem desmontar e aparelhar o setor, em tempos de internet principalmente, fica mais difícil. O setor cultural se organizou muito bem nos últimos anos e aprendeu a resistir aos ataques que não foram poucos. A produção cultural foi muito mais afetada pelo Coronavírus do que pelos governos autoritários. Na verdade, por mais que haja uma censura, com a internet, não tem como eles nos calarem e muito menos nos aparelhar num projeto autoritário. A produção cultural não para e está cada vez mais engajada contra eles.
Contrapoder: Como podemos combater a ideia bolsonarista de que a arte e a cultura brasileira foram reduzidas a veículos de propaganda ideológica?
Inti Queiroz: Não existe enunciado sem base ideológica. Sem uma marcação de posição e de visão de mundo. Milhares de teóricos da linguagem e do discurso tratam disso. Falo disso no meu doutorado inclusive. Não existe enunciado neutro. Até quem se diz neutro, está marcando uma posição. Acho que temos que trazer essa reflexão sempre. Nem o silencio é neutro. Não dizemos que quem cala consente? É por ai…
Contrapoder: O setor cultural, ao depender de público e de aglomerações, será o último a poder voltar a trabalhar. Vincular a duração do auxilio da cultura ao dos demais trabalhadores, ignorando a forma especifica como a pandemia impacta sobre o setor, resolve o problema dessa categoria?
Inti Queiroz: Não resolve, mas ajuda. Porém, nesse período de pandemia muitos artistas estão trabalhando nas redes. Estão fazendo lives diárias que estamos todos assistindo, curtindo, nos distraindo e sofrendo menos. Porém essa lives não são monetizadas. Poucos são os artistas que conseguem patrocínio. Por isso que inclusive em São Paulo temos dois projetos de leis que buscam o apoio para além dos três meses da Lei Aldir Blanc, mas garantindo por um prazo enquanto não for possível aglomerar pessoas em teatros por exemplo. Os projetos de leis 253 (estadual); 227 (municipal) deixam isso mais aberto, além de preverem um valor maior de apoio (um salário mínimo por mês). Eles são nossas prioridades de luta aqui em SP.
Contrapoder: O nome já diz que o auxilio é emergencial. Para resolver substancialmente a precarização de anos, que chegou no seu ápice na pandemia, que medidas deveriam ser tomadas?
Inti Queiroz: Primeira coisa que precisamos é implantar de verdade nosso Sistema Nacional de Cultura que é emenda constitucional desde o fim de 2012 e que não avançou no federal como deveria. Para nossa sorte, o sistema continuou avançando em algumas cidades que aos poucos continuam implantando seus sistemas municipais com Conselhos, planos e fundos de cultura. O SNC ainda está aguardando a aprovação da lei de regulamentação no Congresso, há dois projetos de lei em tramitação, mas já está garantido na Constituição no artigo 216. Tem todas as ferramentas que precisamos para construir as políticas culturais que queremos e precisamos e da forma certa e democrática. Isso é política de estado concreta e estruturada. Tem sido pauta principal nos movimentos de cultura de todo Brasil há pelo menos uns 10 anos pois justamente cria ferramentas de fiscalização, construção de políticas locais, acompanhamento orçamentário e gestão pública a longo prazo. O resto virá como resultado disso. Mas como um presidente autoritário que odeia a cultura é praticamente impossível isso avançar como deveria. Temos inclusive receio da destruição que seria eles tocarem no sistema. O ideal é que o grupo de Bolsonaro caia o quanto antes. Nada de bom avança com eles no poder.
Contrapoder: Para além do auxílio, que aguarda a sanção do presidente, como a classe artística poderia se auto-organizar para garantir seus direitos?
Inti Queiroz: Já somos bem organizados faz tempo. Há dezenas de movimentos ativos em todo país. Alguns existentes há mais 15, 20 anos. Só na cidade de SP por exemplo são uns 20 movimentos e entidades bem atuantes. Mas no Brasil inteiro isso acontece. E como os trabalhadores da cultura vivem em circulação pelo Brasil de seus projetos, acabamos sempre fortalecendo essas redes a nível nacional. Todo mundo conhece todo mundo. Principalmente nas linguagens específicas, mas não só. E também há os Conselhos, Cooperativas e Sindicatos que atuam junto. Acho inclusive que a cultura é um dos setores mais organizados e unidos. Quando o Temer fechou o MinC em 2016, logo após o golpe, ocupamos todos os 27 espaços do MinC no Brasil inteiro em 4 dias. E ocupamos em muita gente em cada espaço. No terceiro dia de ocupação da Funarte no Rio, por exemplo, tinham mais de cinco mil pessoas assistindo a shows do Caetano e do Erasmo dentro e fora do prédio. Em São Paulo, nossa ocupação durou 82 dias e ainda saímos com um acordo de Gestão Compartilhada assinado pela direção. Isso foi uma articulação quase que natural. Não teve liderança nem nada. Bastou a rede que existe há tempos se falar, se organizar e mobilizar. Nessas pautas maiores raramente há divergências dentre os diversos agentes. Raramente perdemos tempo brigando dentro do setor. Sabemos qual é o foco da luta e vamos todos juntos. Isso só para dizer alguns casos de mobilizações que trouxeram resultados. Foram muitos. A aprovação em consenso da Lei Aldir Blanc foi uma delas. Trabalho de milhares de mãos e mentes empenhadas num só resultado a favor da cultura. O que falta é mais gente aderir aos diversos movimentos e coletivos de cultura que existem em todo Brasil. O que falta é mais gente junto. Já somos milhares, mas sempre é bom mais gente junto.
Contrapoder: Qual a importância do apoio popular ao direito à arte?
Inti Queiroz: Um país não é nada sem a valorização de sua cultura. Perde sua identidade e sua história. Principalmente num país onde a indústria cultural de massas toma todos os espaços mais relevantes e acabam escondendo muitos e muitas que fazem o melhor de nossa arte. Mas cultura não é só arte. A cultura brasileira vai da nossa culinária até o futebol de várzea. Passando por todas as linguagens artísticas, mas também pelas culturas ancestrais das comunidades indígenas e quilombolas. O Brasil só será efetivamente “descoberto” quando dermos mais voz a essas manifestações que estão espalhadas em todos os cantos e sabores de nossa diversidade.
* Inti Queiroz – Produtora cultural, linguista e filóloga. Doutora, mestre, bacharel e licenciada em Letras (linguística/português) todos pela FFLCH USP. Pesquisa a gestão das políticas públicas de cultura e o financiamento da cultura no Brasil e em São Paulo. Possui DRT como Diretora de produção de espetáculos há 14 anos. Atua há mais 20 anos na produção de projetos culturais nas mais variadas linguagens e também na pesquisa, gestão e consultoria. Desde 2017 é professora do Curso de Gestão Cultural da PUC SP, mas também já ministrou cursos livres e de pós-graduação sobre o tema na UNICAMP, FESP, USP, MAM, SESC, etc. Ativista da cultura há muitos anos, atuando na linha de frente de movimentos como Frente Estadual de Cultura de SP, Frente Única da Cultura, Movimento SP Cidade da Música, Rede Música Brasil entre outros.