Há apenas dois dias, decidi que o texto de estreia dessa coluna trataria sobre o Brasil em chamas. Mas esse não é um texto apenas sobre o Brasil. No momento em que escrevo, o INPE estima haver risco crítico (o mais elevado) de incêndio em mais de 60% do território nacional. A Amazônia, o cerrado e o Pantanal estão sofrendo com o fogo neste momento. Particularmente grave, os incêndios no Pantanal já consumiram, até aqui, quase 20 mil km2 e essa área queimada pode chegar a algo próximo de 30 mil km2 caso o mesmo ritmo se mantenha até o fim do período seco. O número de focos de incêndio observados apenas neste ano, com o mês de setembro ainda em curso, já equivale à destruição pelo fogo ocorrida nos seis anos anteriores somados.
Paralelamente, o governo federal tem se notabilizado por uma política abertamente antiecológica. Além do negacionismo ostensivo das principais figuras que agora ocupam o poder, como Bolsonaro e Mourão, as medidas efetivamente tomadas até aqui se voltam à desarticulação de toda e qualquer capacidade institucional e operacional de proteção a esses biomas ao alcance de uma canetada. A política é não apenas antiecológica, mas também já encontrou os meios de se afirmar e se realizar sem precisar da benção da precária democracia representativa instalada no congresso. Salles, só para oferecer o exemplo mais evidente e prosaico, executou apenas 0,4% dos recursos disponíveis até agosto para atividades finalísticas de sua pasta, como por exemplo medidas de prevenção e combate a incêndios [1]. Diga-se de passagem, 0,4% de um orçamento já deprimido. Imaginem que, entre 2019 e 2020, após um ano marcado pelo fogo, com um aumento de 30% nas queimadas na Amazônia, a verba para brigadistas foi cortada em 58%. [2]
Tudo isso, e uma série de outros casos que poderíamos enfileirar sem dificuldades, tem levado a uma cobertura, na mídia independente e na tradicional, em que predomina um tom bem definido: a responsabilidade pela destruição em curso desses biomas brasileiros é claramente do atual governo federal. Por um lado, a postura negacionista dá a senha para que fazendeiros, grileiros e que tais atuem à margem da lei com relativa garantia de impunidade. Por outro, o desmonte operado por Salles suaviza restrições, ampliando o espaço das práticas destrutivas consideradas legais.
Eu não discordo desse tipo de avaliação. Quero, no entanto, fazer um acréscimo que, em meu juízo, é decisivo. A explicação para o que vem acontecendo não se esgota na política ecocida do governo Bolsonaro. A origem da maior parte dos incêndios da Amazônia está em áreas desmatadas, é verdade. E o desmatamento tem sido incentivado, ora direta, ora indiretamente. Mas esses incêndios não estariam saindo de controle como estão ou atingindo as proporções que estão se mudanças ecossistêmicas profundas não estivessem em curso. Os incêndios no Pantanal neste ano tem, quase certamente, origem criminosa. Mas eles não chegariam ao ponto de incinerar 12% do bioma se mudanças ecossistêmicas profundas não estivessem em curso. Meu ponto aqui é sensível, então é importante que fique claro de saída. A responsabilidade devida da política atual precisa ser apontada e vigorosamente denunciada. Inclusive, este mesmo Contrapoder.net publicou há poucos dias uma coluna de Mauricio Matos apontando exatamente nesse sentido [3]. Por outro lado, quando nossa denúncia fica circunscrita à responsabilização de Bolsonaro e companhia, fica em aberto a possibilidade de supor que parando Bolsonaro, paramos a destruição. Eu diria, ao contrário, que parando Bolsonaro, paramos um processo de aceleração da destruição. A metáfora que costumo usar é a do navio que está naufragando. Bolsonaro está pondo fogo nos botes e boias salva-vidas. Pará-lo é uma tarefa da mais elevada urgência, pois disso dependem nossas chances de sobreviver ao naufrágio. Mas vejam, o navio continua afundando! É preciso contemplar explicitamente essa questão.
Me refiro, nessa alegoria, à crise climática. Há algum tempo, as transformações pelas quais o planeta vem passando (e as transformações previstas) vinham sendo denominadas de mudanças climáticas. Recentemente, o termo crise ou emergência climática vem sendo privilegiado para indicar mais precisamente o fato de que essas transformações se aceleraram e ameaçam crescentemente os ecossistemas, as sociedades humanas e a vida no planeta.
E o fogo é um dos impactos mais claramente associados a essa aceleração. O melhor da ciência climática que temos disponível explica com facilidade os riscos aumentados de incêndio. Por um lado, à medida que aquecemos a atmosfera, intensifica-se a evaporação, o que tende a ressecar solo e vegetação. Por outro, a atmosfera mais quente consegue reter mais umidade, o que, além de reforçar o efeito anterior, provoca modificações nos regimes de chuvas, podendo torná-las mais irregulares e, no limite, raras ou destrutivamente intensas. Não é casual que o Pantanal esteja passando pela sua mais grave seca na história recente. Não é casual que a Amazônia venha sofrendo recorrentemente com períodos secos atípicos. Se é verdade que biomas úmidos estão menos propensos ao fogo e que o desmatamento e os incêndios criminosos desempenham um papel crucial de catalisador, também é verdade que existe uma tendência de fundo que torna esses biomas cada vez mais vulneráveis. Tendência que nós precisamos enfrentar, com ou sem Bolsonaro.
Uma evidência forte de que nossos incêndios não são eventos isolados é que as chamas atípicas estão espalhadas pelo planeta. Da mesma forma que as daqui, elas também vêm exibindo padrões novos e devastadores de magnitude, abrangência, intensidade, precocidade e duração.
Quase ninguém ficará chocado ao ouvir notícias dos incêndios na costa oeste americana porque essa notícia, assim formulada, é corriqueira. Talvez as imagens que circularam nas últimas semanas – de cidades nos estados da Califórnia, Oregon e Washington, com o céu tingido de um laranja avermelhado denso, com sua desconcertante semelhança com filmes distópicos apocalípticos – levantem algumas sobrancelhas. Porém, não muito mais que isso, porque o senso comum é inclinado a perceber esses eventos como casos isolados. As análises que explicam tudo em termos da política do momento (ou da política recente) apenas reforçam, queiram ou não, esse senso comum incapaz de perceber que nosso mundo desmorona. Nosso mundo desmorona!
Na segunda semana de setembro, 6 dos 10 maiores incêndios da história da Califórnia estavam ativos simultaneamente! Antes que os piores meses da temporada de incêndios tivesse chegado, o estado já havia batido o recorde histórico para um ano: 8090km2. Cifra que pulou para 12545km2 apenas dois dias depois. É menos do que a área destruída no Pantanal, mas o padrão é o mesmo: a temporada de fogo começou muito mais cedo, atropelou os recordes anteriores de extensão e destruição, ainda não está perto de acabar e pode se prolongar por mais tempo que o normal.
Mesmos as áreas mais densamente urbanas, comumente entendidas como zonas seguras, não estão a salvo. Conforme a revista britânica The Economist apurou, os mapas de risco e zoneamento na Califórnia costumam considerar essas áreas como “inqueimáveis”. [4] No entanto, com o novo padrão de severidade dos incêndios, já há estudos que apontam a possibilidade de que edifícios nessas áreas “inqueimáveis” também queimem.
Mais dramático ainda, o Ártico também vem sendo um palco de fogo e recordes. Os incêndios do ano passado foram os maiores até então registrados. Queimaram por meses. Já os incêndios desse ano superaram o recorde anterior em 35%! Duas temporadas atordoantes em sequência. Elas começaram mais cedo, duraram mais tempo e avançaram mais ao norte do que qualquer outra anterior. E a área devastada foi de 140 mil km2, ao menos dez vezes maior do que a da tragédia californiana. Deixe essa informação assentar. Na Sibéria, a temporada de fogo deste ano consumiu uma área superior à do território inglês (com seus 130 mil km2).
Todos esses eventos são determinados por inúmeras causas, e seria um equívoco explica-los apenas em termos de mudanças climáticas. O fogo é uma ocorrência comum em vários biomas, mesmo sem intervenção humana. Isso é fato. O fogo também pode ser (e é) provocado por práticas criminosas e políticas permissivas. Isso também é fato.
Mas não devemos deixar que a correta identificação desses fatores crie miragens de importância, nos impedindo de ver que a mãe de todos os desafios já se insinua no tempo presente. A transformação do sistema climático do planeta já é, ela também, uma causa estrutural e cada vez mais predominante. Uma causa sobre a qual nós temos, na melhor das hipóteses, escasso controle. Parar Bolsonaro e sua política de aceleração da destruição é urgente. Dito isso, estou convencido que é ainda mais urgente organizar formas de sobreviver a esse mundo em pleno (e ainda inicial) desmoronamento.
3 – https://contrapoder.net/colunas/amazonia-e-pantanal-queimam-o-ar-e-insuportavel/
4 – https://amp.economist.com/leaders/2020/09/12/why-is-california-burning