“Futebol moderno, herança colonial” ou por que a Itália não foi pra Copa?

por Henrique Roberto Figueiredo1

Neste domingo começou a Copa do Mundo no Qatar, com o jogo entre a seleção anfitriã e o Equador. Ao longo dos dias veremos jogos da Inglaterra, da França e da Espanha, mas não da Itália. Por que a Itália não foi pra Copa? Parece que o futebol importado decretou a morte da Azzurra! Essa situação acompanha o movimento geral do futebol no mundo. Estamos apenas no início da terceira década do século XXI e pudemos ver a transição da centralidade mundial do futebol italiano para o futebol espanhol. Observamos agora a decadência do futebol espanhol e a ascensão das ligas inglesas. Veremos abaixo uma possível explicação para esse fenômeno: a relação do futebol com a dinâmica política e econômica que divide o mundo há pelo menos 400 anos.

As ligas nacionais na Europa

O último time italiano a ganhar uma Liga dos Campeões foi a Internazionale, na temporada 2009/10, contra o Bayern de Munique. Nas temporadas 2014/15 e 2016/17 a Juventus foi vice-campeã, perdendo para dois times espanhóis, o Barcelona, de 3×1, e o Real Madrid, de 4×1. Desde o Milan de 2007 e a Azzurra de 2006, as ligas nacionais da Itália e o futebol italiano já não são os mesmos. Mas qual a razão de o futebol italiano ter perdido a força? Uma das razões é o fato de que na Itália não existe limite para jogadores estrangeiros nos times da série A – cada time deve apenas ter 8 atletas formados no país, inscritos nos campeonatos, 4 dos quais formados no próprio clube. A maior parte do time titular do Milan de 2007 era composta de estrangeiros. Em 2020, a Itália foi campeã da Eurocopa sobre a Inglaterra. Seu melhor jogador era Jorginho, um brasileiro naturalizado italiano. 

A Espanha, campeã da Copa de 2010, tinha como base os jogadores do Barcelona. O clube àquela época era elogiado pelo preparo de suas categorias de base e pela manutenção de jogadores até o profissional. O Real Madrid também contribuiu com alguns nomes, mas, desde os “Galáticos”, o time merengue aposta na contratação de grandes nomes, muitas vezes estrangeiros. Desses dois times constam as três contratações mais caras de jogadores do Brasil. Mas o sintoma dessa dinâmica foi a concorrência entre Barcelona e Real Madrid para quem tinha o “melhor do mundo” em cada temporada. Os jogadores que disputaram, entretanto, não são de Barcelona ou de Madrid, nem da Espanha, mas sim de áreas coloniais. Um é argentino e o outro da Ilha da Madeira, colônias dos impérios espanhol e português. De 2007 em diante, vimos uma transição da centralidade do futebol na Itália para o futebol na Espanha. Atualmente, mesmo sob hegemonia do Real Madrid no torneio continental, vivemos o auge do futebol na Inglaterra.

A “terra da Rainha” não está tão diferente assim. Embora os times ingleses de pouca tradição europeia, como o Chelsea e o Manchester City, cheguem fortes nas disputas pelo torneio continental, isso se dá em função do dinheiro investido nos clubes, que se tornaram empresas controladas por capitalistas totalmente desvinculados dos torcedores e de sua história. A despeito de a Inglaterra ter a liga nacional mais valiosa do mundo, composta de times-empresas cheios da grana, que reduzem as possibilidades dos times pequenos, sua seleção não ganha uma copa desde 1966. Atualmente, boa parte dos jogadores titulares dos “inventores do futebol” é oriunda das colônias ultramarinas do Império Britânico, da Jamaica, como é o caso Sterling, além de jogadores como Bukayo Saka, cuja origem é nigeriana.

O que falar da França? As ligas nacionais da França são quase desimportantes para o conjunto das ligas na Europa Ocidental, mas isso não significa menos importações de jogadores africanos, latino-americanos e árabes para os principais times, como o Olympique de Marselha, o Lyon e o Paris Saint-Germain. Os principais jogadores, os craques dos clubes, se não são estrangeiros, são filhos de estrangeiros. No Marselha, temos o atacante chileno Alexis Sánchez e, no Lyon, temos o volante brasileiro Thiago Mendes, vindo da base do Goiás, embora seja maranhense. A seleção francesa é composta de muitos jogadores nascidos na França filhos de imigrantes de suas ex-colônias, como a Argélia, ou de ex-colônias da francófona Bélgica, como o Congo. Os grandes clubes-empresas da França já internacionalizaram seus capitais e suas escalações – Neymar e Messi no PSG, Lopes e Gusto no Lyon, para citar alguns.

Como se pode ver, a realidade dos clubes-empresas na Europa é cada vez mais de composição de jogadores-mercadorias de outros continentes, não à toa, dos continentes historicamente saqueados e colonizados. Os jogadores-mercadorias, verdadeiras matérias-primas, são lapidados ao chegarem à Europa. Mas, antes disso, já se estruturaram, nas ligas nacionais latino-americanas e africanas, verdadeiras plantações industriais de moleques bons de bola em função do mercado externo. O axioma é: as seleções nacionais dos países subdesenvolvidos são compostas com jogadores nacionais que jogam em ligas de países desenvolvidos; as seleções de países desenvolvidos são compostas de jogadores nacionais e jogadores naturalizados de origem de países subdesenvolvidos.

As ligas nacionais na América Latina

O primeiro jogador brasileiro vendido para o exterior foi Paulo Innocenti, em 1923. O filho de imigrantes italianos foi jogar no Virtus da cidade de Bologna; de lá pra cá, o número de jogadores brasileiros exportados para a Europa ampliou exponencialmente. O futebol mudou muito, a velocidade do jogo aumentou, a grama abaixou, chuteiras e bolas tiveram a qualidade modificada com o avanço da tecnologia industrial, já não se fazem mais pontas como na Holanda na década de 1980, querem decretar o fim do drible, colocaram cadeiras nos estádios para torcedores saltitantes, chegaram o padrão FIFA e o VAR.

A grande flexibilização, que transformou o futebol brasileiro em exportador de jogadores-mercadorias, foi encabeçada pela Lei Pelé, de 1998. Se algum benefício foi conseguido, o fato é que ele foi adquirido com a transformação dos clubes em empresas e com a transferência do “passe” dos jogadores para a mão de empresários privados. As transações mais caras do futebol brasileiro atualmente são dos jogadores Neymar, Rodrygo e Vinícius Jr., respectivamente para os clubes espanhóis Barcelona e Real Madrid.

A lei foi promulgada em 1998, mas desde a Seleção de 2002 é que majoritariamente foram convocados jogadores que atuavam fora do Brasil. A seleção atual não excede a regra. O futebol brasileiro também se modificou, conta com grande quantidade de jogadores hispano-americanos, oriundos da Argentina, Peru, Paraguai, Bolívia, Chile e Colômbia. Ao mesmo tempo em que se tornou o maior exportador de jogadores-mercadorias, fortaleceu seu mercado e poder de compra em relação aos vizinhos latino-americanos. A situação futebolística repete a tragédia econômica geral.

Mas, de modo geral, só é dada oportunidade de repatriação de jogadores para a América Latina quando estes estão em fim de carreira. As ligas no subcontinente estão cada vez mais acomodadas e acopladas às táticas e características do futebol europeu, fato que se desenvolve também com a reestruturação dos estádios, transformados em arenas com camarotes e cadeiras a preços absurdos. A próxima grande conquista vislumbrada pelos cartolas é a modificação dos calendários, isto é, querem igualar os calendários latino-americanos ao calendário europeu. Com isto, os capitalistas terão mais facilidade na venda de jogadores-mercadorias nas janelas entre um campeonato e outro.

Cada vez mais o futebol praticado na América Latina se parece com a plantation colonial. Uma verdadeira indústria estruturada sendo modificada para atender às necessidades de um mercado externo. Os jogadores-mercadorias de hoje não são tão diferentes da cana-de-açúcar, do ouro, da soja ou do petróleo.

A divisão internacional do trabalho no Futebol

Os times europeus buscam defensores e corredores na África, atacantes vão encontrar no Brasil, meio-campistas defensivos ou ofensivos extraem da Argentina, Uruguai e Colômbia. Não há time grande e competitivo nas ligas nacionais europeias e que, consequentemente, dispute a Liga dos Campeões que não tenha um jogador extraído da África e da América Latina. A Itália tem pagado pela realidade cada vez mais desnacionalizadora de seus times-empresas, em contradição com a estrutura ainda nacional da Copa do Mundo. O capital e a classe trabalhadora não possuem nação.

Mas, e a Itália? A Itália, na última década, voltou a ocupar seu local de origem – a marginalidade com relação ao centro do capital, sua marginalidade em relação a toda a Europa Ocidental. Não se igualando à Inglaterra ou à França, só pode assistir às movimentações mundiais do sofá de casa, encarando problemas internos como a ascensão da extrema direita. A Azzurra é o retrato da miséria italiana.

A resposta aos problemas apontados não é tão óbvia quanto parece. Fortalecer as ligas nacionais através de “protecionismo” ou mesmo estimular nacionalismos, que em geral tendem à xenofobia e ao racismo, não são soluções viáveis. A universalidade do problema pede também saídas universalizantes. A resolução da divisão internacional do trabalho expressa no futebol passa necessariamente por repensarmos esse esporte absolutamente fetichizado, isto é, retomá-lo como um esporte coletivo e popular. Para fazermos uma alusão didática, o futebol está para o esporte como o iphone está para o celular. Já não o enxergamos mais como um esporte coletivo, ele está destacado fantasmagoricamente dos demais esportes; tal qual o iphone é entendido como iphone e não como um celular como os das demais fabricantes, o futebol é entendido como futebol e não como um dos demais esportes.

Não há outra saída a não ser repensar o futebol fora do sistema de competição entre capitais, que coloca trabalhadores contra trabalhadores. Repensar e praticar o futebol como atividade coletiva e popular de lazer, de integração, como apenas mais um dos vários esportes é tarefa para os socialistas e comunistas do século XXI, como foi tarefa apenas incipientemente respondida pelos socialistas e comunistas do século XX.

Referências

  1. Henrique é militante da União da Juventude Comunista (UJC), professor de História na rede Estadual de São Paulo, educador popular do Cursinho Popular Vito Giannotti e mestrando em História Social na PUC-SP.

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