Galo livre

Por Kenarik Boujikian1, Marcus Orione2, Michael Lowy3, Ricardo Antunes4, Ruy Braga5

No denominado Estado de Direito, a prisão é medida extrema e realizada, segundo as regras jurídicas, em especial após ampla defesa do acusado. Prisões cautelares, ou seja, aquelas que ocorrem para hipóteses legais específicas com o aprisionamento prematuro de qualquer cidadão, são juridicamente excepcionais. No entanto, a sua prática tem-se vulgarizado. E mais, isso se intensifica em hipóteses envolvendo jovens negros —o que é potencializado no caso de lideranças de movimentos sociais.

Recentemente, os decretos de prisão —temporária e preventiva— envolvendo o líder do movimento dos Entregadores Antifascistas, Paulo Lima, o Galo, suspeito de incendiar a estátua do Borba Gato, em São Paulo, são uma aula da anatomia dos aspectos excessivos de prisões contra lideranças de movimentos sociais. Deve-se atentar para o fato de como, enquanto contraponto a um ativismo social, estamos assistindo a um inconveniente crescimento de um “ativismo judicial” —proveniente de agentes públicos que não são eleitos, e que promovem a opção de abortar a liberdade daqueles que pretendem se mobilizar em torno de pautas de interesse social e popular. A despeito de ser completamente desnecessário para a imputação penal a Galo, extrai-se que o fato de ele ser uma liderança é uma preocupação das autoridades que determinaram a prisão.

Por outro lado, que a Justiça busque o nome de eventuais envolvidos em ação considerada contrária à legalidade é algo comum. O problema é utilizar a prisão como se fosse um instrumento de tortura para a obtenção de delações —é sabido que a delação premiada é uma faculdade com benefícios penais; no caso, teme-se pelo uso da prisão como condição necessária à sua obtenção. Isso remonta à triste memória de regimes ditatoriais. Eventual utilização de tal mecanismo em qualquer decisão envolvendo o fato seria inadmissível. Não se pode preservar investigação criminal a partir da obrigação do ato delatório.

Por fim, talvez o mais evidente risco às liberdades democráticas esteja em possíveis fundamentações referentes à preservação de suposto interesse público para a concessão da prisão preventiva baseadas na antecipação de atos futuros. Aqui estaríamos diante de situação que nos lembraria o filme “Minority Report”. Utilizando-se da condição de ativista, antecipa-se a eventual prática de crimes, o que transformaria Galo em um perigo para a sociedade por adiantamento. Como se, pelo fato de ter uma motivação política manifesta pela intenção de discutir a posição ocupada por certas personagens que maculam fortemente nosso processo histórico, isso o colocasse sempre em situação de promover novas investidas contra outros monumentos.

Enfim, em caso de tal hipótese, estaríamos diante de uma verdadeira condenação prematura, com base em cogitações de atos futuros, suportada na interpretação enviesada das convicções políticas do indiciado.

Prisões ilegais, com base fundamentalmente em motivações políticas, em qualquer momento histórico (mas principalmente neste em que há um recrudescimento de posturas autocráticas no país), nos levam a temer pela sorte não apenas de Galo, mas de qualquer pessoa, já que, de certo modo, somos movidos por motivações políticas que estão incrustadas em nossas personalidades e em nossas ações. Nessa linha de raciocínio, seríamos, então, inevitavelmente, potenciais criminosos?

Referências

  1. Desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça de São Paulo
  2. ​Professor da Faculdade de Direito da USP
  3. Diretor emérito de pesquisas do “Centre National de la Recherche Scientifique” (CNRS)
  4. Professor de Sociologia da Unicamp
  5. Professor do Departamento de Sociologia da USP

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