A atualidade de Florestan Fernandes

Florestan Fernandes contrariou o destino que sua origem modesta lhe reservava para se tornar um dos grandes intérpretes da sociedade brasileira e latino-americana. A despeito das agruras que seu posicionamento crítico lhe causou – a prisão, a perda da cátedra, o exílio, o ostracismo acadêmico –, jamais renegou seu compromisso existencial com as causas da classe trabalhadora e sua luta pela revolução socialista. Intelectual rigoroso, criativo e corajoso, sua reflexão sociológica, com o passar dos anos, afirma-se como um valioso patrimônio da luta contra a barbárie capitalista na periferia da economia mundial.

Dedicado à compreensão dos mecanismos de reprodução da injustiça social, em sua trajetória intelectual, o pensamento crítico fez o caminho completo, levando a sociologia crítica latino-americana ao clímax de sua radicalidade. Libertando-se de toda inibição teórica ou ideológica, Florestan deu contribuições importantes em várias frentes do conhecimento. Suas pesquisas etnológicas ousadas e inovadoras sobre o papel da guerra nos tupinambás, suas investigações pioneiras sobre o negro na sociedade brasileira, suas teses sobre a importância fundamental da educação no desenvolvimento nacional, seus sofisticados ensaios teóricos sobre os desafios da Sociologia na periferia do sistema capitalista mundial constituem referências fundamentais para todos aqueles preocupados em compreender a complexa realidade das sociedades latino-americanas – um mundo que se apresenta como sendo “moderno” e “democrático”, mas que carrega em seu ventre as terríveis contradições do escravismo e do colonialismo.

A reflexão de Florestan sobre as bases sociais e políticas do capitalismo dependente desnuda as estruturas e dinamismos responsáveis pelo circuito fechado de um padrão de desenvolvimento capitalista incapaz de combinar acumulação de capital, democracia e soberania nacional. A extrema desigualdade social que caracteriza a América Latina é associada à reprodução da segregação social e da dependência externa. O desenvolvimento capitalista dependente estabelece uma separação intransponível entre uma pequena minoria de ultraprivilegiados, obcecados em perseguir os estilos de vida e consumo das economias centrais, que vivem da superexploração do trabalho e da pilhagem da natureza, e uma grande massa de condenados do sistema – empregados, subempregados e desempregados, que sofrem todas as agruras do progresso capitalista, mas são marginalizados de seus benefícios materiais. Em sua visão, a raiz da exclusão social reside em última instância na capacidade das classes dominantes latino-americanas de impedir a organização das classes subalternas como sujeitos políticos autônomos.

A divisão da sociedade em dois mundos antagônicos, separados por um abismo econômico, social, político e cultural, imprime à luta de classes uma dinâmica típica de “guerra étnica”. Fechando o espaço de entendimento entre as classes sociais, a burguesia é compelida a assumir uma atitude de extrema intolerância à utilização do conflito como meio legítimo de conquista de direitos sociais. A unificação monolítica das classes dominantes é perpetuada por um padrão de resolução dos conflitos intraburgueses que se baseia na conciliação pela composição dos interesses divergentes. A intolerância contra qualquer manifestação de rebelião materializa-se num padrão de luta de classes cuja essência consiste em evitar a qualquer custo a emergência dos despossuídos como sujeitos políticos autônomos, esterilizando suas iniciativas seja pela cooptação, seja pelo esmagamento de suas organizações sociais e políticas. Os que vivem do próprio trabalho devem ser mantidos em estado de anomia. A neutralização dos efeitos revolucionários do protesto social deixa a história a reboque de um único sujeito: a burguesia dependente.

O tempo tem reforçado a importância da reflexão de Florestan Fernandes sobre os dilemas da luta de classes no Brasil. Sua interpretação sobre o caráter extraordinariamente conservador da revolução burguesa no Brasil, sobre as consequências desastrosas da ditadura militar para o futuro do Brasil e sobre os limites da democracia ritual da Nova República é uma referência fundamental para a compreensão das contradições que determinam a gravíssima crise civilizatória que há décadas ameaça o futuro da sociedade brasileira.

O desfecho ultraconservador da revolução burguesa no Brasil teria sido o elo final que aprisiona a economia e a sociedade no circuito fechado do capitalismo dependente. Na hora decisiva de definição do padrão de solidariedade com as outras classes sociais, entre 1930 e 1964, a burguesia abandonou toda e qualquer veleidade democrática e nacionalista para se afirmar exclusivamente como uma burguesia dos negócios, sem nenhum nexo moral com as classes subalternas. A consolidação de seu padrão de dominação pela linha de menor resistência, compondo os interesses das burguesias “modernas” com os das burguesias “atrasadas”, sem abrir brechas para contemplar os pleitos da classe trabalhadora, sepultou qualquer possibilidade de superação da segregação social e da dependência externa. A cristalização do padrão de dominação ultrarrígido, que funciona como uma contrarrevolução permanente, liquidou definitivamente qualquer veleidade civilizatória que porventura a burguesia tivesse no sentido de estabelecer nexos morais com as classes subalternas. A perpetuação de mecanismos de satelização em relação ao centro capitalista e a reprodução de formas anacrônicas, modernas e ultramodernas de superexploração do trabalho sedimentaram uma racionalidade capitalista sui generis, de acordo com a qual o capitalismo é aceito como forma de acumulação de riqueza, mas rejeitado como forma de convivência de uma comunidade nacional.

A contrarrevolução permanente consubstancializou-se na constituição de um Estado autocrático-burguês – uma democracia de cooptação que restringe o acesso ao poder estatal aos interesses da plutocracia – que nega toda cidadania ao trabalhador. Qualquer que seja a forma específica do regime político – uma ditadura militar aberta ou uma democracia institucional autoritária –, o poder tornou-se hermético às demandas das classes populares. Controlado monoliticamente pelas classes dominantes, o Estado ficou completamente destituído da capacidade de realizar reformas de caráter democratizante e nacionalista, transformando-se irremediavelmente em guardião de privilégios aberrantes e de mecanismos de autoprivilegiamento. O espaço de mudança “dentro da ordem” tornou-se mínimo e as pressões de mudança “contra a ordem” passaram a ser respondidas com reações violentas, características de uma classe dominante que sabe que construiu seu mundo em cima de um barril de pólvora.

Nessas condições, a razão de Estado ficou irremediavelmente comprometida com a reprodução da dupla articulação que sustenta o capitalismo dependente. As estruturas e os dinamismos do capitalismo dependente tornaram-se a forma específica de existência do mundo burguês. Induzido de fora para dentro pelas irradiações do centro capitalista, o desenvolvimento capitalista passou a ser calibrado por uma lógica política que se pauta por dois objetivos básicos: reproduzir a assimetria na correlação de forças que impede a emergência dos pobres como sujeito político; e evitar que as disputas das diferentes frações de capital em torno do ritmo e da intensidade da modernização coloquem em risco a unidade das classes dominantes, ameaçando assim sua supremacia absoluta no poder político. O caráter desigual e combinado do desenvolvimento capitalista assumiu a forma de uma “modernização do arcaico” e de uma “arcaização do moderno”. Ao afastar a possibilidade de consolidação de um sistema econômico nacional e de superação do regime de segregação, que abririam caminhos para uma solução positiva para o problema histórico da integração nacional, o Estado nacional burguês consolida-se como uma subnação.

A interpretação de Florestan Fernandes sobre a transição da ditadura militar para o estado de direito é vital para o entendimento da crise terminal da Nova República. A exaustão do regime militar é atribuída ao acúmulo de contradições provocadas pelo próprio padrão de desenvolvimento internacionalizado e excludente de que era fiador. Bastou a crise internacional ter transformado o famigerado “milagre brasileiro” numa crise de dívida externa que se arrastou por mais de duas décadas, para que o regime militar passasse a ser crescentemente contestado. As pressões pelo fim do regime militar vieram de todos os lados: de baixo para cima, pela resistência dos trabalhadores, sobretudo a liderada pela oposição operária; de fora para dentro, pela necessidade de ajustar o padrão de dominação às exigências da nova rodada de globalização dos negócios; e até mesmo por amplos segmentos da plutocracia brasileira cada vez mais insatisfeitos com a crescente autonomização dos generais na condução do Estado.

Na ausência de uma oposição combativa que encurralasse a ditadura de baixo para cima, a solução para a crise do regime foi encaminhada, na melhor tradição do mandonismo brasileiro, pela via institucional, por intermédio de um processo que Florestan designou de “liberalização outorgada”. A transição lenta, segura e gradual para o Estado de direito, arquitetada por Golbery do Couto e Silva, arrastou-se por mais de uma década, culminando com a eleição da chapa Tancredo Neves e José Sarney por um Colégio Eleitoral desenhado pela própria ditadura e, logo em seguida, com a promulgação da Constituição de 1988, que legitimou e institucionalizou, na forma de uma “democracia ritual”, o padrão de dominação autocrático-burguês consolidado pela ditadura militar.

A transição para o Estado de direito não alterou as bases sociais e políticas que subordinavam integralmente o Estado aos interesses do grande capital nacional e internacional. O refluxo do regime militar não significou o fim da contrarrevolução, mas apenas uma mudança na forma de combinar violência e cooptação como método de bloquear a emergência das classes subalternas na história. A violência institucionalizada permaneceu incólume como forma de regulação do conflito entre o capital e o trabalho. O braço militar cedeu o comando do Estado aos agentes políticos da burguesia, mas foi mantido como elemento estratégico de tutela em última instância da democracia de cooptação. A síntese de Florestan parece até premonitória: “Os militares marcharam do comando ostensivo para a retaguarda do poder, preservando a autonomia de decisão e sua capacidade de veto. O pior […] consistia no fato de que a ordem ilegal montada na ditadura permaneceria intacta e pronta para ser usada, de acordo com as circunstâncias”.1

Passadas mais de três décadas desde sua promulgação, verifica-se que, para a grande maioria da população, principalmente para seus segmentos mais pobres, a Nova República ficou muito aquém das expectativas. A esperança de que a Constituição Cidadã fosse a base institucional para a promoção de mudanças estruturais que criassem o substrato econômico, social, político e cultural de uma sociedade nacional com um mínimo de equidade social, sem o que inexiste qualquer possibilidade de cidadania efetiva, foi frustrada. É o que explica, em última instância, a crise política que se arrasta de maneira dramática desde as memoráveis Jornadas de Junho de 2013. É o que explica a apatia política de amplos segmentos da população. É o que explica a atratividade do discurso que prega a negação da política em ampla parcela dos trabalhadores, sobretudo em seus segmentos mais destituídos.

As cláusulas de defesa da economia nacional não impediram a desindustrialização do parque produtivo, a desnacionalização galopante dos meios de produção, a privatização de setores estratégicos de infraestrutura e a revitalização do agronegócio – o latifúndio moderno – voltado para o mercado internacional. O compromisso explícito com a defesa do meio ambiente não foi obstáculo para que a devastação da natureza avançasse a galope em todas as suas dimensões. Os preceitos de combate à usura e de incentivo ao investimento produtivo não evitaram que o Brasil se tornasse um paraíso do rentismo, submetido aos interesses ultraparticularistas do capital financeiro nacional e internacional. O objetivo de fomentar uma economia autodeterminada contrastou com o avanço avassalador da especialização regressiva, que levou a um sistemático rebaixamento da posição do país na divisão internacional do trabalho.

A conquista de direitos formais não mudou a dura realidade da maioria da população. A concretização das políticas públicas universais esbarrou na penúria de recursos para financiá-la. Os direitos trabalhistas nunca foram efetivamente cumpridos e acabaram, aos poucos, sendo sistematicamente vilipendiados. O sonho de um estado de bem-estar social, a despeito de pequenos avanços aqui e acolá, terminou na mercantilização de praticamente todos as dimensões da vida. A reforma agrária nunca passou de um simulacro para apaziguar os desvalidos da terra. A concentração fundiária atravessou incólume a Nova República. A reforma urbana nunca saiu do papel. O Estatuto da Cidade não impediu que a especulação imobiliária corresse solta. O direito das nações indígenas à autodeterminação não se traduziu em demarcação de terra e respeito ao seu modo de vida. O objetivo de combate à pobreza foi substituído por políticas assistencialistas de administração da barbárie. A segregação social e o patriarcalismo permaneceram incólumes. Em consequência, pouco, ou quase nada, avançou-se no combate ao racismo e machismo estruturais. A discriminação da população LGBT permaneceu. O compromisso com a valorização da cultura nacional contrasta com a ofensiva colonialista avassaladora, que levou ao paroxismo o mimetismo dos padrões de consumo e estilo de vida das economias centrais.

A segurança contra o arbítrio do Estado e do poder econômico não chegou às periferias nem aos grotões do Brasil. A guerra aos pobres não cessou. Sob a hipocrisia do combate às drogas, a polícia militar continuou com carta branca para aterrorizar a juventude pobre, sobretudo a negra, sob a benção de uma justiça classista que sancionou um processo ilegal de encarceramento em massa. Banidos dos aparelhos repressivos que cuidam da ordem social e política, a tortura e o assassinato continuaram como práticas rotineiras dos aparelhos repressivos do Estado contra a população desvalida.

A liberdade partidária, que deveria dar vazão à diversidade do espectro de interesses que compõem a sociedade, foi completamente corrompida por um sistema político-eleitoral que transformou o partido num cartório de oligarquias corruptas e o político profissional em mero despachante de interesses particularistas de grupos econômicos. O direito à informação e à discussão do contraditório – base de um espaço público democrático – foi completamente usurpado pelo monopólio que coloca os grandes meios de comunicação nas mãos de poucas famílias que funcionam como ventríloquos do grande capital. O direito de greve, garantido na formalidade da lei, é negado pela perpetuação de uma estrutura sindical controlada pelo Estado, dirigida por uma burocracia dócil aos interesses patronais, bem como pelo cerco ostensivo da Justiça do Trabalho. Por fim, o direito à manifestação e organização política foi atropelado pela criminalização dos movimentos sociais e pela judicialização da política.

Postas em perspectiva, as advertências de Florestan sobre as consequências nefastas da transição negociada – por cima – da ditadura militar para o estado de direito revelaram-se acertadas. Não houve acerto de contas com os crimes econômicos, sociais, políticos, culturais e ambientais perpetrados pela ditadura. A promessa de fomentar a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e o pluralismo político, estabelecida logo no primeiro artigo da Constituição, não foi cumprida. O acordo político que sacramentou a transição para o estado de direito era uma quadratura do círculo. A busca de um Estado de bem-estar social, da soberania nacional e da democracia participativa chocou-se reiteradamente com a preservação dos mecanismos de autodefesa e autoprivilegiamento dos donos do poder, a blindagem jurídica dos interesses do capital internacional e a manutenção do papel das forças armadas como poder moderador, com a função de tutela em última instância da democracia de cooptação. A derrota de todas as iniciativas que pudessem colocar em risco as estruturas responsáveis pela segregação social e pela dependência externa é a prova dos nove de que a Constituição Cidadã não abria brechas para a ruptura do circuito fechado que condena os trabalhadores a uma vida miserável.

A reflexão de Florestan Fernandes é fundamental para a compreensão dos desafios que devem ser enfrentados para vencer a contrarrevolução permanente. Ele nunca se preocupou em deixar uma receita pronta, mas nos legou alguns princípios básicos sobre como desmantelar a máquina de dominação burguesa na América Latina. A luta pela igualdade substantiva é o antídoto contra o regime de segregação social e o caminho que conduz, em seu desdobramento, ao socialismo. De suas análises sobre o padrão da luta de classes deriva a conclusão de que, para acumular força e solapar os alicerces da dominação burguesa, os trabalhadores – operários, semi-integrados e “condenados do sistema” – não podem transigir na defesa dos direitos fundamentais. Contra a intolerância dos ricos, Florestan Fernandes defende a necessidade de organizar a “intransigência” dos pobres.

Convicto da resistência feroz das classes dominantes e do imperialismo a qualquer tipo de reforma social que possa colocar em risco seus privilégios, Florestan Fernandes não cansou de alertar para a ilusão que significa imaginar que os problemas latino-americanos poderiam encontrar uma solução pacífica por dentro da institucionalidade perversa de uma democracia restrita. Sua advertência para os riscos da acomodação aos parâmetros da ordem no I Congresso do Partido dos Trabalhadores, no início dos anos 1990, serve para todas as organizações que reivindicam o socialismo, mas se acomodam docilmente ao papel de esquerda do status quo: “[…] Os petistas não devem se deixar iludir. Eles precisam se fazer duas perguntas: 1º.) A social-democracia, adulterada para servir às nações capitalistas centrais, é viável na periferia e nela perderia o caráter de uma capitulação ao despotismo do capital? 2º.) O PT manterá a natureza de uma necessidade histórica dos trabalhadores e dos movimentos sociais radicais se preferir a ‘ocupação do poder’ à ótica revolucionária marxista?”.2

O fim trágico da experiência petista no governo e o desdobramento catastrófico da crise terminal da Nova República, que coloca no horizonte a possibilidade de um retorno a formas abertamente ditatoriais de poder, parecem confirmar sua orientação de que os partidos socialistas devem se reorganizar sabendo que não podem confiar cegamente na democracia ritual e precisam estar sempre preparados para enfrentar uma burguesia que não hesita em passar da “guerra civil oculta” para a “guerra civil aberta”. A obra de Florestan Fernandes é um precioso tesouro que deve ser estudado e debatido por todos que lutam contra a barbárie de nosso tempo.

Plínio de Arruda Sampaio Júnior, professor aposentado do Instituto de Economia da UNICAMP e editor da plataforma Contrapoder. Agradeço os comentários e a providencial revisão do texto por minha companheira Maria Hirszman e pela camarada Marlene Petros Angelides.

Referências

  1. Fernandes, F. A Constituição Inacabada. São Paulo, Estação Liberdade, 1989, p.157
  2. Fernandes, Florestan. O PT em movimento: contribuição ao I Congresso do Partido dos Trabalhadores, São Paulo. Cortez, 1991, p. 10.

Plínio de Arruda Sampaio Junior

Professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp. Autor do livro Crônica de uma Crise Anunciada: crítica à economia política de Lula e Dilma.

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