A coragem da lucidez

Se eu não arder em chamas,
se não ardes em chamas,
se não ardermos em chamas,
como haveremos de conseguir dissipar as trevas?!

Nazim Hikmet, poeta turco (1901-1963)

Quando acordei na sexta-feira, 17 de julho de 2020, não havia visto o que se passara no dia anterior à sessão do Conselho Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina. Nesse dia, pela manhã, se discutiu o destino de milhares de alunos, professores e técnico-administrativos e sabíamos o resultado final: seríamos engolidos pelo “ensino remoto” e não só por ele. Em torno das dez da manhã, meu anjo nipônico, pelo zap, enviou-me a foto da intervenção dos estudantes na frente da reitoria2. Como fiquei alegre…

Dias antes havíamos publicado um manifesto, Contra o “ensino” remoto – manifesto de professores da UFSC3. Entretanto, o chamado à luta foi respondido por uma parcela de professores da UFSC com a defesa dessa contradição em termos, ou seja, de um ensino que não se realiza como tal precisamente por ser “remoto”! Não conseguia me conformar com o fato de que numa instituição como a nossa, tão festejada quando bem avaliada pelas métricas oficiais, suposto lugar de produção de ciência, de pensamento crítico, de consideração humana, a tendência majoritária fosse a da adesão às atividades – jamais ensino – remotas.

Sem debate profundo, sem análise detalhada, sem envolvimento orgânico da comunidade universitária na definição dos rumos da Instituição frente à tragédia da pandemia, o Conselho Universitário seguia estoicamente para a decisão final. Estaria a UFSC deserta? A foto da instalação mostrou que não: havia vida, havia luta na UFSC. Mais tarde vi o vídeo da Frente pela Educação de Qualidade na UFSC-Contra o Ensino Remoto Emergencial (FEQ)4 e o Manifesto Contra o Ensino Remoto5o qual assinei imediatamente e convido o leitor a fazê-lo e, quiçá, participar da FEQ.

Não queria crer – talvez por ingenuidade, talvez por esperança – que naquele Egrégio Conselho os favoráveis ao ensino remoto desconhecessem o que vem se passando no Brasil, e mesmo no mundo. Como diria minha quase-centenária mãe, não é possível que “eles” não saibam que:

– em três meses saímos de 1.700 para 78.000 mortes pela Covid-196;

– estamos no quarto mês de isolamento social precário;

– cresce exponencialmente a contaminação pelo novo coronavírus no país e em Florianópolis7;

 durante a pandemia o desemprego atingiu a casa dos 13 milhões de pessoas e o desemprego por desalento a dos cinco milhões8;

– o Ministério da Saúde segue acéfalo e, portanto, sem uma política concreta de combate ao coronavírus;

– não há qualquer intenção do atual Governo9 em assegurar a vida da população;

– o Ministro da Economia, Paulo Guedes, vem liquidando o país, desmontando e vendendo o patrimônio público à nossa revelia, e a Universidade Pública está na lista;

– o ataque aos trabalhadores no Congresso Nacional – nós incluídos – não se encerrou e recrudescerá;

– o Ministro da Educação, pastor Milton Ribeiro, pretende educar as crianças e a nós “com dor”;

– esta pandemia que arrasa a vida de tantos, para o grande capital é uma “janela de oportunidades” para expandir negócios e lucros em detrimento da vida da população10;

– a formação da imensa maioria dos jovens brasileiros no Ensino Superior se encontra nas mãos de grandes monopólios do ensino;

– a formação do magistério nacional se concentra nesses mesmos monopólios que investem na desintelectualização docente e, por consequência, da classe trabalhadora;

– estamos nos subordinando às plataformas de ensino comandadas por grandes corporações, como Google, Microsoft, Amazon, Facebook, Apple, ao mesmo tempo em que não desenvolvemos nossa própria tecnologia;

– as plataformas expropriam o conhecimento docente, retiram-no de sua totalidade, são encarcerados em bancos de “boas práticas” e negociados à revelia de seus autores, invertendo-se a equação: ‘professores usam plataformas’ para ‘plataformas usam professores’;

– que a luta da Universidade brasileira pela liberdade de cátedra esvai-se e mergulhamos num franco controle do pensamento e da ciência;

– estamos diante do desejo econômico burguês de criação de um mercado mundial de Ensino Superior, não se tratando apenas de falta de conectividade e de aparelhos tecnológicos;

– está em andamento um vasto processo de privatização da educação pública pela via da escola charter, do voucher, da homeschooling, da consultoria, do material didático, dos pacotes tecnológicos de EaD;

– aceitamos o fetiche da tecnologia pelo qual as empresas de TIC e Inteligência Artificial flexibilizam direitos trabalhistas, terceirizam, pejotizam, uberizam e robotizam11 os trabalhadores;

– estão em andamento processos de demissão em massa de docentes no país nas instituições privadas12 e governos estaduais e municipais se valem da pandemia para enxugar seus quadros e fazer economia13;

– o encapsulamento promovido pelas atividades remotas quebra a solidariedade de classe, quebra a sociabilidade do trabalho compartilhado, inviabiliza a organização política dos vários segmentos da universidade – talvez seja esse seu desejo inconfesso;

– as atividades remotas, sob o eufemismo de “ensino remoto” não possibilitam a reflexão, pois apenas a aula presencial expressa o caráter humano da apropriação e construção do conhecimento, com ritmos e tempos próprios14;

– são vitais para a formação humana na Universidade a biblioteca, a participação em órgãos de representação estudantil e colegiados, a vivência em grupos de pesquisa, os debates e as discussões em corredores, restaurantes, cantinas e festas;

– os objetivos e os processos educativos que ocorrem nas aulas, nos seminários, nas pesquisas, na escrita, na leitura não são variações de “formas” de apropriação ativa e crítica de conhecimento;

– as atividades remotas desviam as funções sociais da educação e obscurecem as tarefas públicas que deveriam assegurar as condições de ensino, o combate ao coronavírus e o privilégio da vida;

– a punção dos recursos públicos pela esfera privada acontecerá sob nossos olhos, agora esfumaçados pelo “avanço tecnológico”, pela “digitalização da educação”;

– cumprir a carga horária letiva não pode se sustentar sobre o bordão “haja o que houver”;

– não existe uma saída única – o “ensino” remoto – e a ela estamos vaticinados;

– o ensino presencial é insubstituível no processo de formação humana e que, por isso mesmo, é possível articular coletivamente soluções que não suponham medidas subordinadas a critérios formais de certificação.

Manifesto contra o ensino remoto expôs, sem pejo, que veio à luz porque todos os fatos acima mencionados não compuseram as preocupações e diretrizes aprovadas pelo Conselho Universitário da UFSC. Lamentável! E o que dizia o Manifesto? Que devíamos discutir amplamente o problema; que devíamos inquirir o contingenciamento do orçamento da Educação Pública; que devíamos olhar para o sucateamento das Universidades Públicas; que não devíamos compactuar com o que diz a mídia, à guisa de porta voz de interesses empresariais; que o formulário produzido pela reitoria deixou de fora quase 37% dos 36 mil estudantes; que a administração superior não se ocupa das pessoas com deficiência, nem com a saúde mental dos estudantes, nem com sua assistência; que a Universidade deixa a desejar no combate ao coronavírus e na ajuda à população, embora projetos de pesquisa estejam em andamento e projetos de auxílio à comunidade externa estejam acontecendo.

Essas indicações, vi em seguida, também estavam na Carta dos Técnicos Administrativos em Educação (TAEs) da UFSC15, apresentada na referida sessão do Conselho. Nela se pode ler que

a UFSC não está parada. […] Tanto os TAEs como os professores estão realizando suas tarefas a partir de suas casas, sem a estrutura adequada, com seus próprios equipamentos, tendo gastos adicionais e ainda enfrentando profundo estresse por ter de dividir o trabalho com a vida cotidiana. Infelizmente a administração da universidade não tem tido a capacidade de explicar à sociedade sobre isso e a cada dia mais vai se entregando aos argumentos dos que atacam a UFSC. […] Produzir um “novo normal” nesta situação é grave. É normalizar a morte de milhares de pessoas que inclusive morrem por conta da irresponsabilidade governamental.

Aos corajosos por sua lucidez se juntaram alunos da Pós-Graduação em Educação da UFSC que aprovaram uma Nota da Assembleia Geral do PPGE sobre ensino remoto, políticas de permanência para pós-graduandas/cotistas e democracia universitária16. O que há de indesejável ou de questionável nessa pauta abraçada pelos lúcidos? Que perigo a ela subjaz? Por que não a estamos discutindo? Por que estamos nos esquecendo que “se estivermos vivos e saudáveis reiniciaremos o semestre quando for possível”? Que “as taxas de lucro podem esperar, agora a ética e a solidariedade humanitária têm que ser o princípio defendido, sem deixar nenhum estudante para trás”?

É preciso reconhecer que corremos perigo. Sim, estamos correndo riscos de vida, físico, mental e intelectual, por aderirmos a essa “janela de oportunidades”. Nenhum dos argumentos humanitários, caridosos ou de compaixão brandidos pelos aderentes pode esconder o que estamos vivendo de fato. O movimento do capital local e internacional para repor suas condições de produção e reprodução, de acúmulo de mais valia pela abertura de novos nichos de mercado põe em risco o caráter público da Universidade, hoje muito combalido. Não lhe basta dominar a maioria das matrículas no Ensino Superior; é preciso destruir a Universidade pública, dilapidá-la, enfraquecê-la para assim torná-la residual. Nos anos de 1990 denunciávamos a “Universidade Operacional”17 e lamentávamos sua trajetória de alma mater causa mortis18.

Não imaginávamos, Maria Célia e eu, o quão perto chegaríamos de nos tornarmos causa mortis. As últimas preocupações das frações dominantes da burguesia e seus acólitos universitários, na atual conjuntura, são “assegurar aprendizagem”, “mitigar desigualdades”, “oferecer oportunidades”, “garantir o futuro” (para os que restarem?). O conjunto desses argumentos é apenas a face visível do drama e nele muitos encontraram a racionalização necessária para sua adesão desprovida de pensamento e solidariedade humana… Passou a boiada por aqui também… não sem antes deixar granadas pelo caminho, granadas que muitos recolheram e guardaram como tesouros…

Não nos enganemos, essa conta nos será cobrada em tempo oportuno. E teremos que explicar por que nos ajoelhamos tão facilmente aos desígnios do grande capital; por que reproduzimos nossa subalternização no âmbito das consciências que formamos; por que escolhemos a submissão e não arder em chamas.

2 FRENTE PELA EDUCAÇÃO DE QUALIDADE NA UFSC – CONTRA O ENSINO REMOTO EMERGENCIAL. Foto. Disponível em: <https://www.facebook.com/107576131033022/photos/a.107580984365870/111470960643539/?type=3&theater>. Acesso em: 18 jul. 2020.

3 ÁVILA, Astrid B. et al. Contra o “ensino” remoto – manifesto de professores da UFSC.Disponível em:<https://www.apufsc.org.br/2020/06/29/contra-o-ensino-remoto-manifesto-de-professores-da-ufsc/>.Acesso em: 19 jul. 2020.

4 FRENTE PELA EDUCAÇÃO DE QUALIDADE NA UFSC – CONTRA O ENSINO REMOTO EMERGENCIAL. Não tem exceção, ensino remoto não é solução! Disponível em: <https://www.instagram.com/p/CCv5UcJnbFR/>. Acesso em: 18 jul. 2020.

5 FRENTE PELA EDUCAÇÃO DE QUALIDADE NA UFSC – CONTRA O ENSINO REMOTO EMERGENCIAL. Manifesto contra o ensino remoto. Disponível em:<https://www.facebook.com/107576131033022/photos/a.107580984365870/107582084365760>. Acesso em: 18 jul. 2020.

6 CALIL, Gilberto. Números da Pandemia. Disponível em: https://www.facebook.com/gilberto.calil. Acesso em: 18 jul. 2020.

7 Associação Nacional dos Professores Universitários de História et al. Carta em defesa da Universidade pública, gratuita e de qualidade para todos e todas, mesmo em tempo de pandemia. Campinas, SP. Disponível em: <https://www.change.org/o/professores_em_defesa_da_educa%C3%A7%C3%A3o_p%C3%BAblica>. Acesso em: 18 jul. 2020.

8 HERMANSON, Marcos. “Trabalho precário, intermitente, é a antessala do desemprego”, diz Ricardo Antunes. Brasil de Fato. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2019/04/29/trabalho-precario-intermitente-e-a-antessala-do-desemprego-diz-ricardo-antunes>. Acesso em: 19 jul. 2020.

9 LEHER, Roberto. Universidades públicas, aulas remotas e os desafios da ameaça neofascista no Brasil. Notas para ações táticas emergenciais. Carta Maior. Disponível em: <https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Educacao/Universidades-publicas-aulas-remotas-e-os-desafios-da-ameaca-neofascista-no-Brasil/54/47699>. Acesso em: 17 jul. 2020.

10 SETTI, Rennan. Jorge Paulo Lemann: ‘O que eu gosto mais é que toda crise é cheia de oportunidades’. O Globo. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/jorge-paulo-lemann-que-eu-gosto-mais-que-toda-crise-cheia-de-oportunidades-24375730>. Acesso em: 19 jul. 2020.

11 PALHARES, Isabela. Depois de colocar robôs para ensino, Laureate demite 120 professores. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano 100, n. 33.280, 15 maio. 2020. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/05/depois-de-colocar-robos-para-ensino-laureate-demite-120-professores.shtml>. Acesso em: 18 jul. 2020.

12 BRANCO, Rodrigo. Prefeitura de Búzios anuncia demissão de 400 professores contratados. Folha dos Lagos. Publicado em 03 abr. 2020. Disponível em <https://www.folhadoslagos.com/geral/prefeitura-de-buzios-anuncia-demissao-de-400-professores-contratados/12884/>. Acesso em: 18 jul. 2020.

13 ALBUQUERQUE, Flavia. Universidade alega que diante da pandemia teve de se readequar. Agência Brasil. São Paulo. Disponível em <https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2020-06/sinprosp-entra-com-acao-contra-uninove-por-demissao-de-professores>. Acesso em: 18 jul. 2020; SINPRO. Laureate volta a demitir em massa. SINPROSP. SinproSP entra com ação contra Uninove por demissão de professores. SinproSP quer reintegração. Disponível em <http://www.sinprosp.org.br/noticias/3912>. Acesso em: 18 jul. 2020.

14 ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS DE HISTÓRIA ET AL. Carta em defesa da Universidade pública, gratuita e de qualidade para todos e todas, mesmo em tempo de pandemia. Campinas, SP. Disponível em: <https://www.change.org/o/professores_em_defesa_da_educa%C3%A7%C3%A3o_p%C3%BAblica>. Acesso em: 18 jul. 2020.

15 CAMPOS, Martim.  Confira a carta redigida pelos TAEs lida na sessão do CUn. UàE. Disponível em:<https://ufscaesquerda.com/noticia-confira-a-carta-redigida-pelos-taes-lida-na-sessao-do-cun/>. Acesso em: 19 jul. 2020.

16 ALEXANDRONI, Amanda. Confira as manifestações do PPGE sobre o Ensino Remoto na UFSC. UàE. Disponível em: <https://ufscaesquerda.com/noticia-confira-as-manifestacoes-do-ppge-sobre-o-ensino-remoto-na-ufsc/>. Acesso em: 19 jul. 2020.

17 CHAUÍ, Marilena. A Universidade Operacional. Avaliação, v. 4 n. 3, 1999. Disponível em: <http://periodicos.uniso.br/ojs/index.php/avaliacao/article/view/1063/1058>. Acesso em: 19 jul. 2020.

18 EVANGELISTA, O.; MORAES, M. C. M. Universidade brasileira: de alma mater a causa mortis. In: III CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 2000, Coimbra. Anais… Coimbra: Universidade de Coimbra, fev. 2000.

Publicado originalmente em: https://ufscaesquerda.com/a-coragem-da-lucidez/

Olinda Evangelista

Professora, pesquisadora de políticas públicas em educação e formação docente, bordadeira.

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