ChatGPT na SEDUC-SP: ataque à educação e à docência

Quem, em sã consciência, esperaria do governo Tarcísio alguma ação minimamente decente na educação? Certamente a direita e a extrema-direita, pois concebem que a educação de qualidade deve ser dedicada aos filhos e filhas da elite. Ou, como disse um alto escalão da SEDUC-SP anos atrás: “para quem vai trabalhar na feira… essa educação está boa demais”1 (Venco e Carneiro, 2018).

Há décadas nossos estudos demonstram que a função pública exercida por docentes da educação básica está em risco. Não foi recentemente que os contratos temporários chegaram a ultrapassar os efetivos.  Em 1999 o total de concursados, conforme exposto no Gráfico 1, chegou a ser menos do que a metade em relação aos não efetivos.

Gráfico 1 – Docentes, Ensinos fundamental II e Médio, escolas estaduais paulistas, segundo tipo de vínculo, 1999 (nº abs)

Fonte: SEESP, Coordenadoria de gestão de recursos humanos. Elaboração própria.

A partir de 2005, entretanto, a curva se inverte e uma leitura incauta poderia supor que o governo estaria repondo os postos de trabalho, via concurso público. Ao contrário: reduziu a oferta do ensino noturno e lotou salas de aula e, assim, conseguiu reduzir a proporção dos temporários. Margareth Thatcher ficaria orgulhosa dos governos do PSDB!

Gráfico 2 – Docentes Não-efetivos, Ensinos fundamental II e Médio, escolas estaduais paulistas, segundo tipo de vínculo, 2005-2022 (%)

Fonte: Seduc-SP 2005-2022 (último ano informado pelo órgão público). Elaboração própria.

Ainda que a população estivesse sendo dizimada com a pandemia, a política educacional paulista viu em tal situação a “janela de oportunidade” para impulsionar o ensino híbrido.2

Em 2020, o governo paulista instituiu o Centro de Mídias3 (CMSP), uma plataforma digital que possibilita o acesso de estudantes e docentes a conteúdos programáticos. Em 2022 entrevistamos professores e professoras da Região Metropolitana de Campinas que relataram o sentimento de angústia que dominou as famílias desprovidas de bens materiais necessários para acessar os conteúdos, seja por possuírem celulares antigos e, portanto, impossibilitados de inserir o chip fornecido pelo governo estadual; seja por serem famílias com apenas um celular usado para o trabalho e ou com vários filhos e filhas na escola, o que ocasionava a situação em que quando o pai ou a mãe retornavam à noite havia disputa entre as crianças e jovens para cumprimento dos deveres da escola, ou, ainda, empréstimos na vizinhança com o mesmo fim. As iniciativas feitas pela Seduc-SP, segundo eles, foram insuficientes para o enfrentamento do ensino a distância, e uma quantidade significativa de crianças e jovens ficou apartada do ensino durante a pandemia.

As manchetes veiculadas na grande imprensa, alimentadas pela Seduc-SP, apresentam uma situação distinta da relatada pelos e pelas entrevistadas, aqui ilustrada pelo relato de um deles: “Eu tenho uma turma de 40 alunos, só 13 estão engajados no Centro de mídias […]”. Todavia, segundo matéria da UOL4, “81% dos estudantes da rede acessaram a plataforma ao menos uma vez”. 

A viabilização do CMSP, destaque-se, reunia uma gama de atores privados – atualmente alterados –, a exemplo do Instituto Ayrton Senna, Fundação Roberto Marinho, Parceiros da Educação, Descomplica, Revisa Enem, Explicaê, Joca (jornal), Japan Foundation, Matific (jogos de matemática), STOODI (exercícios Enem), Univesp, Sebrae, Burburinho cultural, Khan5, dentre outros. Fica claro, então, que, como consequência, está se configurando um avanço na privatização da educação6.

A despeito de sua implementação ocorrer no contexto pandêmico, visava “promover um salto de qualidade do ensino em busca de resultados que permitam à rede estadual paulista figurar entre as mais avançadas do mundo até 2030”7. Meta ambiciosa que, ao molde do observado nas declarações dos Planos Estaduais de Educação, promete alçar a educação paulista a patamares elevados, aparentemente, via prestidigitação. 

O conjunto de atores privados contratados para tal ação, associado a resultados ousados a serem alcançados em sete anos, revela uma concepção de educação e, sobretudo, de política educacional, que confere ao setor privado um lugar de excelência na concretização da educação pública (Tanguy, 2016).

Ao longo da pandemia o CMSP ofereceu aulas seguidas por testes verificadores do conteúdo. Os e as discentes deveriam se conectar, assistir e responder as questões. O simples fato de acessar o conteúdo e assinalar respostas lhes conferia um acréscimo na média, independentemente de as respostas estarem certas ou erradas, de terem aprendido ou não. 

Os e as entrevistadas foram unânimes em considerar o sistema empobrecedor, pois as aulas, segundo eles, não eram de boa qualidade e os testes, além de não serem desafiadores, contemplavam a resposta no próprio enunciado… Além disso, revelaram que as aulas veiculadas pela ferramenta eram desvinculadas do currículo em desenvolvimento nas aulas e, ainda, inadequadas ao ano correlato.

Indagados sobre a possibilidade de o Centro de Mídias ser um redutor de docentes no estado de São Paulo, apenas alguns reconheceram que a ampliação de seu uso afetaria a categoria profissional. Os demais indicaram a impossibilidade de isso ocorrer, pois a comunidade em geral, principalmente os estudantes, refutavam o CMSP.

Os depoimentos reforçaram a premência do contato humano com o/a professora, uma vez que apenas presencialmente são identificadas as reações relacionadas à compreensão da aula, realizadas a verificação do exercício e do caderno, a explicação complementar, aspectos impraticáveis em aulas a distância.

Foram abundantes as citações relativas à impossibilidade de construir o conhecimento lato sensu com a turma via mídias, isto é, romper com a ideia de transmissão do conteúdo e edificar outros aspectos, como o espírito crítico, a autonomia, a organização dos estudos. Muitos também consideraram que os e as estudantes sentiram demasiadamente esta ausência durante a pandemia: “é muito diferente essa relação de estar cara a cara com o professor, eles se sentem mais orientados tendo alguém ali fazendo com eles, é diferente” (professora concursada).

O CMSP não se restringiu apenas às aulas, também invadiu um espaço coletivo nas escolas denominado Aulas de Trabalho Pedagógico Coletivo (ATPCs): “antes os ATPCS eram o espaço dos professores da escola, hoje a gente vai pra escola pra escutar eles falando lá várias bobagens, espaço de formação que não é formação […] não é um debate em si” (professora concursada).

Ademais, compreende-se, com base nos relatos coletados, que tal medida, além de descaracterizar o espaço coletivo dos profissionais da educação, afetou diretamente a função exercida pelo professor coordenador, posto as ATPCs serem, agora, padronizadas para todo o estado, organizadas e decididas, em parte, pela equipe do CMSP. 

Mas… o CMSP não era suficiente: vem aí o uso do ChatGPT

O jornal Folha de S. Paulo noticiou em 17 de abril de 2024 que a Seduc-SP irá usar o ChatGPT, ferramenta aberta concretizada pela inteligência artificial, para criar as aulas digitais – exatamente para o segmento em que analisamos a redução de docentes: ensinos fundamental II e médio –, que serão revisadas pelo grupo denominado pela Seduc-SP de “curriculistas”. Uma medida que tenta, visivelmente, desqualificar a categoria docente.

Além desses problemas, vamos destacar ao menos dois outros, dada a vastidão que o tema abrange:

  1. Do ponto de vista da educação propriamente dita: as aulas padronizadas já constituem um problema em si mesmas. Material homogêneo aplicado para turmas, realidades, entendimentos totalmente heterogêneos já foi amplamente apontado como nefasto à educação. Isso implica o apagamento da autonomia docente, fere a liberdade de cátedra e impele os professores, via ampliação do controle, a abandonar a aproximação com a turma, com vistas em acompanhar a apreensão dos conteúdos. O princípio da docência baseado na construção do conhecimento, do respeito ao ritmo da turma… se perde. Ah… já estava perdido antes disso? E por que há de se jogar uma pá de cal na recuperação, ainda que difícil, da educação de qualidade nas escolas públicas paulistas?
  2. Do ponto de vista da profissão docente: há uma nítida intencionalidade em suprimir docentes em prol do uso de novas tecnologias. Ressalte-se: a tecnologia não é o mal, mas sim o uso que dela se faz. Vimos, com base nos dados da Seduc-SP, que a quantidade de docentes está sendo reduzida. Os e as concursadas permanecem até desistirem ou se aposentarem, e as vagas oferecidas nos concursos realizados são ínfimas frente à verdadeira necessidade de docentes efetivos, que permaneçam na escola durante todo o ano letivo. Acabar com a função pública, sabe-se, é o sonho dourado do Estado Gerencialista. E as ferramentas estão sendo utilizadas na tentativa de neutralizar a construção do pensamento reflexivo.

É fato: os ataques à democracia personificam-se de maneiras diretas e indiretas. Na educação paulista, é uma manifestação indireta, pois a intenção é destruir qualquer tentativa de construção do pensamento crítico, reflexivo, que certamente encontrará resistência das categorias profissionais e, obviamente, das massas, que se aperceberão dos equívocos para reduzir a educação paulista a, se muito, formar ou pretender formar empreendedores de si mesmos.

Usando a mesma lógica, que tal um ChatGPT para secretário e governador do estado de São Paulo?

Referências

  1. Com base em entrevista realizada por Walkiria Rigolon. Disponível em <https://revistahorizontes.usf.edu.br/horizontes/article/view/660/276> Acesso em 17.abr.2024.
  2. Sobre isso, ver “Crise sanitária e legado educacional: a cilada do ensino híbrido. Disponível em <https://universidadeaesquerda.com.br/coluna/crise-sanitaria-e-legado-educacional-a-cilada-do-ensino-hibrido/> Acesso em 17.abr.2024.
  3. Decreto nº 64.982, de 15 de maio de 2020.
  4. Disponível em <https://educacao.uol.com.br/noticias/2021/04/21/sp-em-um-ano-81-dos-alunos-da-rede-estadual-acessaram-centro-de-midia.htm?cmpid=copiaecola> Acesso em 12.jul.2022
  5. Dados disponibilizados no sítio da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo até 02.jul.2022, suprimidos em razão da lei eleitoral.
  6. Sobre isso, ver o mapeamento dos atores privados na educação pública brasileira realizado pelo GREPPE. Disponível em <https://www.greppe.fe.unicamp.br/pt-br/mapeamento_da_insercao_do_setor_privado_nas_redes_estaduais_de_educacao> Acesso em 12.jul.2022.
  7. Disponível em https://www.educacao.sp.gov.br/wp-content/uploads/2021/05/TR-06_2021-Centro-de-M%c3%addias-do-Estado-de-S%c3%a3o-Paulo-Proposta-de-Modelo-de-Governan%c3%a7a-dos-MiniEst%c3%badios.pdf> Acesso em 12.jul.2022.

Selma Venco

Professora no DEPASE, Faculdade de Educação da Unicamp; Pesquisadora do Centre de Recherches Sociologiques et Politiques de Paris (CRESPPA) e Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional (GREPPE); Pesquisa A Nova Gestão Pública e as relações de trabalho praticadas no setor público educacional paulista.

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