A gênese colonial da mineração e sua perpetuação no capitalismo contemporâneo

Por Talita Gantus de Oliveira1

A relação entre a gênese da mineração e a história econômica da América Latina repete ciclicamente uma política do absurdo. Os séculos XIX, XX e XXI estiveram repletos de ciclos de boom da mineração, cujos efeitos finais permitiram o surgimento e manutenção de uma classe econômica rentista e a irremediável deterioração do meio natural, nos territórios explorados, do qual inúmeras famílias retiram seu sustento. Entendemos, então, que a espoliação nos territórios não é uma consequência da indústria de exploração mineral, mas sim uma causa intrínseca.

Houve vários ciclos de exploração mineral em solo latino-americano, desde 1492: da prata, do ouro, do ferro e, mais recentemente, do lítio, o novo “ouro branco” que carrega novamente a insígnia de que “desta vez, sim, a mineração nos permitirá avançar rumo ao desenvolvimento”. Segundo Eduardo Galeano, apenas no período entre 1503 e 1660 entraram na Espanha 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata. Com o avanço das técnicas, em 2020 o Brasil exportou 29 toneladas de ouro e cerca de 90 toneladas em 2018. Parte desse ouro foi extraída em garimpos ilegais. Aliás, muito se fala dos garimpos ilegais – que, claro, são um grande problema a ser resolvido por meio de uma fiscalização robusta –, mas precisamos destrinchar um pouco mais essa história.

A maior parte do ouro explorado legalmente pertence às gigantes transnacionais. Das toneladas produzidas pelo Brasil todo ano, mais de 75% provêm de grandes mineradoras [atenção: não do garimpo]. Dentre elas, a empresa sul-africana AngloGold Ashanti lidera o mercado nacional. Mas, a quem pertence as ações dessa gigante da mineração? 

Em sua grande maioria, são corporações internacionais que fazem gestão rentista de ativos no mundo. Como afirma a professora e economista Leda Paulani, “o rentismo envolvido na exploração econômica dos recursos contidos no subsolo é dos mais sinistros, pois aqui se trata de transformar em valor excedente recursos esgotáveis, desequilibrando a Natureza e comprometendo as possibilidades futuras de produção material”.

Vivemos sob a égide da subordinação às disposições do poder corporativo global. Com o aumento da demanda por ativos financeiros mais seguros, em um momento de crise econômica provocada pela pandemia da Covid-19, o preço do ouro disparou nos mercados internacionais nos quatro primeiros meses de 2020. Seria esse um estímulo ao garimpo ilegal? O garimpo ilegal seria a causa dos impactos da mineração ou seria uma consequência de um modelo de exploração mineral capitalista e financeirizado?

Como lamenta Aráoz, em seu livro Mineração, genealogia do desastre, vivemos no século XXI e seguimos presos – material e ideologicamente, econômica e politicamente, cultural e geograficamente – aos dispositivos e mecanismos de uma formação social colonial. Períodos passageiros de crescimento do PIB encobrem um processo de empobrecimento contínuo da população. Vejam, desde o século XV temos notado a volatilidade desses ciclos de superacumulação de capital proveniente da mineração (o boom das commodities), cujos lucros se concentravam, antes, na metrópole e, agora, nos territórios capitalistas centrais, ditos desenvolvidos; e notamos também a permanência da miséria e impactos (socioambientais, psicossociais, sociopolíticos – tratados como externalidades negativas do processo), antes, na colônia, agora, nos países capitalistas periféricos. Veio a prata, o ouro, o ferro, o petróleo, o lítio… Houve desenvolvimento?

Como locus geopolítico de apropriação diferencial do mundo, o centro cria as instituições, as leis, as regras, os códigos de conduta, as orientações do mercado financeiro e as formas políticas. O colonial periférico, desde sempre, é tratado como espaço subordinado de fornecimento de matéria-prima e mão de obra barata, cenário de terra arrasada e corpos anônimos, desumanizados. Desprovidos da subjetividade que é negada ao colonizado, como disse Frantz Fanon.

Mas, não seria essa pobreza (majoritariamente racializada) uma herança colonial?

Na América Latina, populações indígenas e quilombolas são forçadas a deixar seus territórios tradicionais por causa do extrativismo mineral. O projeto binacional Pascua Lama, de exploração de ouro, prata, cobre e outros minerais, da empresa Barrick Gold (Chile/Argentina), foi acusado de cometer diversas violações aos direitos humanos, contaminações ambientais e deslocamentos forçados. No Peru, manifestações que pediam a revogação da licença exploratória da empresa Bear na mina de Santa Ana, em razão dos impactos socioambientais, gerou um conflito que resultou em 30 feridos e 6 pessoas mortas da comunidade Aymará. Em uma pesquisa desenvolvida pela Fiocruz, foi verificada a existência de 110 conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil, causados pelas atividades de mineração, garimpo e siderurgia.

Neste mapa você pode conferir a localização dos territórios que vivenciam conflitos socioambientais ao redor do mundo. Há diversas disputas por recursos hídricos e por reservas minerais. No caso da Vale, 14 das 15 disputas em que a empresa está envolvida ocorrem na América Latina, especialmente no Brasil, mas há casos também na Colômbia, no Peru e no Chile. O mapa cita ainda um conflito entre a mineradora e agricultores em Moçambique.

Em tempo, é preciso atentar ao seguinte: a comunidade geológica tem consciência de que um minério precisa de condições ambientais específicas para se formar e que esse processo dura milhões de anos. Enquanto isso, em décadas, estamos levando depósitos minerais não-renováveis à exaustão. Não para suprir uma demanda intrínseca e necessária aos seres humanos, ou a diferentes modos de bem viver, mas para alimentar o mercado de eletrônicos, por exemplo, construído sob uma lógica de obsolescência programada e de fomento ao consumo, muito condicionado ao status socioeconômico e à publicidade. Segundo a ONU, o nível de produção de lixo eletrônico global deverá alcançar 120 milhões de toneladas ao ano em 2050 se permanecerem as tendências atuais de produção e consumo. 

Todavia, não há um interesse na redução do atual ritmo de extração mineral em um modo de produção econômico que se baseia na busca pelo lucro máximo. Somado a isso, impera a financeirização das commodities, processo no qual o modo de acumulação da riqueza se baseia no poder excessivo do setor financeiro (grandes bancos privados, organismos financeiros internacionais, bancos centrais, etc.). Os bens naturais são padronizados de acordo com normas dos mercados internacionais e transformados em mercadorias comercializáveis nesses mercados. Alguns autores chamam esse processo de comoditização da natureza, que gera ativos e transações no mercado financeiro. A financeirização, enquanto processo sociológico, representa a formação de estratos de classe ligados aos ganhos desse sistema.

O Departamento de Relações com Investidores da mineradora Vale informa que 47,74% de suas ações pertencem a investidores estrangeiros, que operam por meio da Bolsa de Nova York e da Bovespa, totalizando US$ 31,86 bilhões em ações. Dessa forma, bens naturais retirados em escala local são transacionados por agentes internacionais em mercados externos, gerando não apenas sua comercialização, mas também diversas operações financeiras (numéricas e virtuais). É uma possibilidade de lucro infinito sobre recursos que são finitos.

Se esse tipo de mineração praticada é necessário para mantermos este modelo de sociedade, não há saída: precisamos seguir em marcha, na luta, para construirmos um novo modelo de sociedade.

Referências

  1. Talita é Geóloga, pesquisadora e professora. Compõe a coordenação do coletivo Anticapitalistas/PSOL.

Anticapitalistas

Coletivo interno do PSOL

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