Bolsonaro aposta no caos, apresenta suas armas e continua na cadeira, sem máscara!

As duas crises e a política.

A combinação entre crise econômica e a pandemia do coronavírus alteraram drasticamente uma conjuntura política até então favorável ao projeto cesarista de Bolsonaro, solapando rapidamente o que ainda lhe restava de legitimidade junto a diversos setores da sociedade brasileira. Apesar das fortes quedas de 2015 (-3,5%) e de 2016 (-3,3) a economia brasileira apresentou índices de crescimento pífios nos anos seguintes, vitimada por uma combinação perversa de reformas neoliberais que aprofundaram o rentismo e a concentração de renda, forte vulnerabilidade externa, baixo nível de investimentos e por uma taxa de desemprego elevada e renitente. O anúncio de uma taxa de crescimento de apenas 1,1% em 2019 – (a menor desde 2016),[1] a alta do dólar, a fuga de capitais e a queima de reservas mostraram o real caráter da política econômica de Guedes e a vacuidade de suas promessas. A “guerra do petróleo” entre Opep e Rússia e o “crash” das bolsas pelo mundo afora completaram o quadro, eclodindo a crise mundial há muito gestada e anunciada. A postura negacionista de Bolsonaro e a inércia do governo diante da chegada do coronavírus ao país revelaram à luz do dia para muitos sua insensibilidade social, incompetência e irresponsabilidade administrativa e seu projeto político regressivo.

A “ficha caiu” principalmente para frações das classes médias que votaram no candidato da extrema-direita em 2018 por conta de sua perspectiva antipetista e que ainda alimentavam uma postura de tolerância e passividade diante de uma administração marcada por uma perspectiva fascista, extremamente elitista e antipopular e ainda por cima caracterizada pela inépcia, quando não pela má fé, pelo clientelismo e pelos vínculos com a criminalidade. As vozes clamando pelo impeachment se amplificaram, engrossando o coro dos que defendem a destituição do governo desde o início. Aliados de primeira hora de Bolsonaro, como Janaína Paschoal, Caiado, Dória, Witzel e setores da grande mídia anunciaram abertamente sua ruptura com ele e mesmo frações do grande capital que aderiram ao bolsonarismo, como o agronegócio, o comércio varejista e o setor de serviços, não deixaram de manifestar seu descontentamento, levantando a necessidade de uma correção de rumo.

O “Fora Bolsonaro” passou a alimentar uma campanha de denúncia bastante significativa nas redes sociais, somada a “panelaços” diários, que começaram no dia 17 de março e se prorrogam desde então à medida que Bolsonaro dobra a aposta na radicalização de suas posições políticas e no negacionismo.[2] Para muitos, a destituição de Bolsonaro é mais do que uma medida de extrema importância política para salvar o país de um governo desastroso e inimigo da democracia e dos trabalhadores: é um imperativo sanitário contra a pandemia do covid-19. Esta situação coloca a destituição de Bolsonaro como uma possibilidade, particularmente num cenário de perda crescente de legitimidade e de agravamento da crise social e epidemiológica com a propagação exponencial da contaminação e a depressão econômica, ambas em curso e se agravando aceleradamente por conta das próprias medidas tomadas pelo governo.

No entanto, ao contrário do que muitos imaginaram, Bolsonaro, diante das reações negativas, não só não reviu suas posições, como desencadeou uma ofensiva em defesa delas, procurando esvaziar as iniciativas já tomadas contra a pandemia e mobilizar sua base social nas ruas e nas redes sociais em torno do lema “O Brasil não pode parar”. Além disso, buscou propagar o discurso de que as medidas sanitárias tomadas até aqui visam derrubá-lo, acirrando ainda mais o conflito político e tentando escalar a crise.[3] Na verdade, Bolsonaro não se afastou sequer um milímetro de sua perspectiva golpista e aproveita a crise para criar as condições de caos social e econômico que lhe permitiriam fechar o regime em nome da ordem e da contenção do caos. Porém, só insiste nesta rota aparentemente “insana” por que conhece as armas que possui e sabe do papel que cumpre na atual etapa da dominação burguesa e do papel que poderá exercer numa hipotética solução autoritária para a crise. Neste sentido, apesar do crescente clamor social, até o momento a queda de Bolsonaro foi descartada com relativa facilidade, permitindo sua permanência no governo e a viabilização de uma “solução intermediária” entre o impeachment e o golpe fascista, fundamentalmente baseada na tutela militar sobre o governo e num pacto entre os militares e o campo de centro-direita que criou um “governo oficioso” liderado pelo ministro da Casa Civil, general Braga Neto, eufemisticamente chamado de “presidente operacional”.[4] Diante da perda de legitimidade e do “estorvo” que representa para o combate efetivo às duas crises, a preservação de Bolsonaro, que mantém o golpe fascista como ameaça potencial, deve ser entendida a partir das condições que o levaram ao poder, do papel representado por ele na atual etapa da dominação burguesa no país e das “armas” que detém em suas mãos e s quais reapresenta cotidianamente.

Arranjo e circunstância.

A primeira e principal condição favorável à manutenção de Bolsonaro não é propriamente resultado de sua ação específica, mas característica da etapa política vigente desde 2016. Afinal, ele é o principal beneficiário e a expressão mais acabada do golpe de 2016 desferido pelas classes dominantes e a maioria dos seus representantes políticos, ou seja, assumiu o poder graças à substituição da democracia de cooptação vigente desde o fim da Ditadura Militar e a Constituição de 1988 por uma democracia restrita[5] e em processo constante de endurecimento, a qual expressa a versão mais radicalizada do programa político e econômico burguês: ataque aos direitos sociais e aprofundamento da exploração dos trabalhadores, restrição de seu espaço político, neoliberalismo extremado e dependência. A passagem de uma para outra não alterou o caráter autocrático-burguês do Estado brasileiro, nem aboliu o regime democrático- liberal com suas respectivas características (divisão entre os poderes, liberdade e pluralidade partidária, rotina eleitoral, etc.), mas aprofundou os elementos autoritários e fascistas contidos na institucionalidade autocrática. Isto se deu basicamente com a substituição do transformismo e da integração passiva à ordem como mecanismos fundamentais no controle do conflito político e social e no tratamento das organizações do mundo do trabalho, e cuja expressão máxima ocorreu com os governos do PT, pela repressão e criminalização das lutas sociais e entidades populares e a recusa de suas demandas econômicas e sociais com o reforço do despotismo burguês sobre o trabalho eliminando os controles políticos sobre a movimentação do capital, limitando ainda mais os institutos da democracia liberal à disputa interburguesa. Em ambos os casos os trabalhadores não são reconhecidos como sujeitos políticos com liberdade de ação, autonomia organizativa e legitimidade em suas demandas, daí o caráter autocrático do Estado, porém, na democracia restrita suas condições de luta são muito piores.

A democracia restrita vigente desde o golpe também favoreceu Bolsonaro enormemente no plano da correlação de forças ao longo de seu primeiro ano de mandato, pois além do avanço da repressão judicial e policial sobre os trabalhadores e suas organizações, tornou o sistema de representação política ainda mais impermeável às demandas sociais e à pressão popular. Como pôde ser constatado na relativa impotência dos sucessivos atos e manifestações chamados pela oposição de esquerda e pelos movimentos sociais desde 2016 contra o golpe, contra as reformas neoliberais e medidas autocráticas e contra a própria eleição de Bolsonaro. Por conta disto Bolsonaro deteve um espaço de manobra considerável, que ele explorou ao máximo, sempre testando os limites da legalidade, ao praticar crimes e proteger criminosos, ao confrontar a institucionalidade do regime democrático-liberal, ao fascistizar o aparelho de Estado e tentar criar as condições para um golpe. E ele ainda explora esse espaço atacando a própria racionalidade, ao negar a gravidade da pandemia e ao defender o isolamento vertical e a volta à normalidade econômica. Isso tudo ao mesmo tempo em que reafirma seu compromisso com os interesses comuns das classes dominantes por defender abertamente uma solução burguesa “dura” para as duas crises (econômica e epidemiológica) e confrontar os interesses dos trabalhadores e da sociedade como um todo, apesar de contradições aqui e acolá com determinadas frações. Neste sentido Bolsonaro é a alternativa burguesa hard para o tratamento das duas crises e para uma situação de ainda maior acirramento da luta de classes, em que a possibilidade de convulsão social é real, tornando o endurecimento do regime uma alternativa para a continuidade da dominação burguesa.

É esta “utilidade” de Bolsonaro para o bloco no poder e seu compromisso orgânico com o golpe e sua pauta política e econômica que explica a leniência, que beira a cumplicidade, do centro-direita com seus crimes, ameaças e mentiras desde o início do governo. Tanto o Congresso, quanto o STF e os partidos de centro-direita evitaram o confronto, buscaram apaziguar cada situação de conflito e instabilidade criada por Bolsonaro, empurraram com a barriga processos e investigações, e encaminharam seu programa político e econômico moderando seus aspectos mais antipopulares e truculentos.  Os militares vivem situação semelhante enquanto força política que hipoteticamente poderia se livrar de Bolsonaro, pois seu apoio ao golpe de 2016 e à sua própria eleição em 2018 dificultou uma tomada de posição neste sentido, além de gerar divisões inter-militares na medida em o presidente ia radicalizando suas posições, apesar das aparências em contrário. Na verdade, ao longo do tempo a estratégia dos militares de apoiá-lo para tutelá-lo foi sendo confrontada com sucesso pelo próprio tutelado, tornando os militares que entraram no governo com esta intenção cada vez mais reféns de suas iniciativas e dos ataques do clã Bolsonaro, de Olavo de Carvalho e demais “olavistas”. O caminho da legitimação eleitoral, escolhido pelos militares para voltar ao protagonismo político e assim determinar os rumos do governo para além das questões de segurança nacional (como não faziam desde o final da transição), mostrou-se mais complicado do que imaginado por que o “eleito” mostrou-se cioso de sua força e autonomia muito mais do que o previsto. Ou seja, a tutela militar vigente desde o final da Ditadura Militar em graus variados de intensidade, bastante reforçada no governo Temer e que, conforme imaginado pelos militares, seria ainda mais proeminente no governo Bolsonaro, sofreu um processo de esvaziamento relativo por conta das pretensões cesaristas do “capitão”.

Diante disso as demonstrações de autonomia das F.A. (enquanto instituição perante um governo visto publicamente como sendo gerido por elas e identificado com sua perspectiva político-ideológica) tornaram-se ainda mais prementes, como demonstram diversos episódios e mensagens “cifradas” nos últimos meses.[6] Porém, os que buscaram preservar a autonomia institucional das Forças Armadas, principalmente entre os comandantes da ativa, tiveram crescentes dificuldades para tanto, haja vista a enorme influência do bolsonarismo nos escalões militares médios e inferiores, a própria presença militar no Ministério e em diversas funções tradicionalmente ocupadas por civis e as vantagens corporativas e políticas conquistadas com o governo. Os comandantes da ativa que buscaram guardar certo distanciamento diante do governo o fizeram por razões institucionais (preservar sua autonomia burocrática diante dos governos eleitos) e políticas (contradições com os vínculos do bolsonarismo com o crime organizado, riscos políticos do fechamento total do regime em termos de submissão dos militares ao cesarismo bolsonarista, dificuldade de controle repressivo do conflito social, inclusive com a “concorrência” de policiais e grupos para-militares, como milicianos, traficantes e empresas de segurança privada, no exercício da “manutenção da lei e da ordem”, capturando, na prática, atribuições constitucionais das F.A). Mas não por seu compromisso democrático! No seu conjunto os militares são afeitos à perspectiva autocrática, neoliberal, subordinada aos EUA, anticomunista, culturalmente conservadora e moralista defendida por Bolsonaro. Também não podemos esquecer que nos últimos anos os militares deram numerosas demonstrações de que não se converteram aos valores democráticos e republicanos após o final da Ditadura Militar, contrariando os que acreditavam no seu apoliticismo, legalismo e profissionalismo: seu veto à Comissão Nacional da Verdade e à proposta de punição dos torturadores e assassinos; seu aval ao golpe de 2016; o apoio ao governo golpista de Temer; a interdição da participação de Lula no processo eleitoral em 2018; o apoio à candidatura e ao governo Bolsonaro. São estas posturas demasiado evidentes para não deixar dúvida quanto à posição dos militares como um todo. Também é preciso considerar que o governo tem atendido diversas demandas militares em termos de benefícios corporativos (“reforma da previdência” que virou aumento salarial!), ocupação de órgãos técnicos e efetivação de projetos estratégicos (controle e ocupação da Amazônia, aumento dos gastos militares, etc.).

Por outro lado, a oposição de esquerda (PT, PSB, PDT, PSOL e PC do B), que deveria defender e agir politicamente pela derrubada de Bolsonaro (por conta do caráter fascista, neoliberal, entreguista e antipopular deste e até mesmo por uma questão de sobrevivência política), não demonstrou ter força para fazê-lo. Em primeiro lugar, porque seus setores majoritários adotaram uma versão moderada do neoliberalismo, quando estiveram no governo federal, e mesmo hoje adotam medidas semelhantes às defendidas por Bolsonaro e pelo centro-direita nos governos estaduais que ocupam (reforma da previdência, cortes na educação e na saúde, ataque aos servidores públicos). Em segundo lugar, porque grande parte desses mesmos setores continuaram adotando uma perspectiva de conciliação de classes que os impediu de fazer a crítica do golpe na sua totalidade, buscando se acomodar à democracia restrita hoje vigente. Em terceiro lugar, porque em função desta orientação os setores de centro-esquerda, majoritários na oposição de esquerda, privilegiam a ação institucional, ao invés da organização e da mobilização populares. Numa situação em que o sistema de representação política desde o golpe de 2016 adquiriu grande impermeabilidade à pressão popular esta é uma tática de efeitos concretos muito limitados. É preciso ainda destacar que a reforma trabalhista se abateu duramente sobre o movimento sindical, não apenas limitando sua representatividade ao favorecer o avanço do trabalho informal, mas afetando a própria sobrevivência financeira dos sindicatos. Essa situação de enfraquecimento dos sindicatos, combinada à escalada repressiva contra o mundo do trabalho e à crise econômica ajuda a explicar a tendência sucessiva de queda no número de greves desde 2017. Finalmente, o conjunto da esquerda, incluída a esquerda socialista (PSOL, PCB, PSTU e PCR), teve reduzida ainda mais sua capacidade contestatória porque não foi capaz de ampliar sua representatividade entre os trabalhadores, principalmente os trabalhadores rurais, e porque não possui um projeto estratégico unificado capaz de apresentar uma alternativa global ao neoliberalismo, particularmente de perfil anticapitalista, que vá além de remendos circunstanciais aqui e acolá e de fôlego curto, como mostrou a experiência de governo do PT. Portanto, apesar das crises econômica e epidemiológica e de sua tendência de agravamento acelerado, este cenário de relativa imobilidade política e institucional, própria de determinadas situações de crise de hegemonia, favorece a manutenção de Bolsonaro.

As armas de Bolsonaro.

No entanto, para além deste cenário que permite a sua sobrevivência no governo mesmo diante da crescente perda de legitimidade, Bolsonaro possui ainda um conjunto de “ativos” políticos que explicam os índices de popularidade que ainda detém (em torno de 25% da população) e que lhe permitem dobrar a aposta no caos social, em defesa de sua pauta política e econômica e da criação das condições para um golpe fascista. Primeiramente, Bolsonaro conta com forte base de apoio entre as forças repressivas e de segurança, bolsonarizadas ao longo dos anos por meio da defesa de seus interesses corporativos, do seu proselitismo em defesa do autocratismo e de uma solução fascista para o problema da segurança pública. Para além das milícias e das empresas de segurança Bolsonaro conta com forte apoio político nas polícias estaduais e escalões médios e inferiores das Forças Armadas. As polícias estaduais têm mostrado grande autonomia diante dos governos estaduais, colocando-os “contra a parede” em diversas situações, como em algumas das greves ocorridas nos últimos anos, com motins, enfrentamentos armados contra tropas leais e mesmo atos de terror contra a população. O motim dos policiais militares no Ceará neste ano, o assassinato de Alexandre da Nóbrega e as declarações, de um deputado ex-policial, de que não necessariamente a PM vai obedecer todas as medidas de intensificação do isolamento horizontal tomadas pelo governo Dória, são exemplos da conexão de setores das polícias com o bolsonarismo, muitas vezes sob a mediação de mandatos parlamentares e entidades representativas. Nas eleições de 2018 e surfando na onda do bolsonarismo, foram eleitos para a Câmara, o Senado e as Assembléias Estaduais nada menos que 73 candidatos oriundos das forças repressivas (incluindo militares da reserva das F.A.), quatro vezes mais do que em 2014.[7] As polícias estaduais (militares, civis e bombeiros) organizam-se corporativamente em aproximadamente 250 entidades representativas (sindicatos e associações) de caráter nacional ou estadual. Não se incluem neste número as que existem em diversos municípios, o que configura uma inserção considerável na sociedade civil. É fato que nem todas estas entidades tem um perfil de extrema-direita, algumas delas são filiadas à CUT e há grupos de “policiais antifascistas” em diversos estados, mas a tradicional perspectiva fascistizante no tratamento da segurança pública, presente na formação militar e alimentada pela impunidade dos crimes militares, favoreceu o avanço eleitoral e político do bolsonarismo nesses setores. Como presidente Bolsonaro não se cansa de declarar apoio à truculência policial, legitimando seu modus operandi, e aos seus interesses corporativos. Numa situação de derrubada de Bolsonaro é de se esperar a resistência de diversos segmentos das policias estaduais e seu apoio a um contragolpe bolsonarista.

Nas Forças Armadas o bolsonarismo é bastante forte principalmente entre os escalões intermediários e inferiores por conta de suas origens como representante político dos interesses militares e de uma campanha de bolsonarização dos quartéis ocorrida nos últimos anos e promovida pelos próprios comandantes militares, tendo em vista a postura abertamente intervencionista assumida pelas F. A. no processo político após o golpe de 2016. Em caso da queda de Bolsonaro com apoio militar os comandantes militares teriam dificuldades para manter a unidade, a hierarquia e a disciplina internas, a não ser que os próprios militares assumissem o comando do processo e instituíssem o cesarismo militar. Em caso de um golpe bolsonarista fortemente apoiado pela base militar, estas dificuldades seriam maiores, obrigando à adesão os comandantes resistentes.

Ainda é possível constatar a presença de bolsonaristas em diversas instâncias do aparelho de Estado, não só nos órgãos de governo, como Ministério Público, Judiciário, Polícia Federal e variados cargos de gestão. Isso revela um processo de fascistização do aparelho de Estado com a “bolsonarização” da burocracia não eleita, seja por adesão de agentes públicos à perspectiva política de Bolsonaro, ainda durante a campanha eleitoral, seja por que desde a posse este procurou se fortalecer politicamente nomeando adeptos e adesistas para os mais variados cargos nos ramos policial, judiciário e burocrático. A fascistização do aparelho de Estado, que continua, permite o uso e abuso do aparato estatal contra adversários e pobres, criminalizando a ação política e as lutas desses e endurecendo o controle social. Nos próximos dois anos o bolsonarismo tende a avançar nas altas esferas do poder judiciário, pois vão se aposentar dois ministros do STF (Celso de Mello e Marco Aurélio Melo, que têm demonstrado independência em relação a Bolsonaro) e dois ministros do STJ, abrindo vagas para novos indicados. Dos sete ministros do TSE, que comandará as eleições de 2022 (se ocorrerem), três são oriundos do STF, inclusive o presidente e o vice, dois do STJ e dois são advogados indicados pelo próprio presidente da República.[8]

Para além da identidade com o projeto burguês que levantamos anteriormente, que garante sua manutenção no governo a despeito de dissensões aqui e acolá, entre as classes e frações do bloco no poder há diversos setores bolsonarizados que prestam apoio orgânico, como no agronegócio, entre os grandes proprietários rurais, entre os industriais, no grande capital varejista e no setor de serviços. Bolsonaro tem apoio ativo em setores majoritários do agronegócio e entre os grandes proprietários rurais por conta da aposta na reprimarização econômica, no avanço da fronteira agrícola sobre a Amazônia e no combate aos movimentos de luta pela reforma agrária e pelos direitos indígenas e quilombolas. Apesar de interesses conflitantes entre si, estes setores se unificam em torno desta pauta comum e compõem uma força social bastante capilarizada, com grande poder material, uma ampla rede de aparelhos de hegemonia (sindicatos e associações patronais, como a UDR, setores da mídia, etc.) e capacidade de hegemonizar variados setores populares (pequenos e médios proprietários rurais, classes médias vinculadas ao circuito econômico do agronegócio, trabalhadores rurais). Apesar das trapalhadas diplomáticas criadas pelo governo e pelo clã presidencial com alguns dos principais importadores dos produtos primários brasileiros, como China e países árabes, que tem gerado críticas dos representantes políticos e midiáticos do agronegócio, estes setores podem ser mobilizados econômica e militarmente, com seus agentes privados de segurança, para um golpe fascista.

O mesmo pode ser dito do grande capital comercial e de serviços, setores predominantemente bolsonaristas do bloco no poder. O Instituto Brasil 200, forte apoiador de Bolsonaro desde a campanha eleitoral, é composto majoritariamente por empresários desses setores econômicos. Ultimamente algumas de suas lideranças têm direcionado críticas ao governo, por causa da recessão econômica e da alta do dólar, que deprime o mercado consumidor e encarece os produtos importados que distribuem, mas apoia abertamente a ação governista de eliminação dos direitos sociais e trabalhistas porque depende diretamente da flexibilização das relações de trabalho para ampliar ainda mais seus lucros e reagir às oscilações do mercado. Também surgiram críticas à tática do confronto permanente e à incapacidade explícita do governo de pacificar o país para enfrentar a crise econômica e a pandemia,[9] mas estas não se dirigem às medidas econômicas apresentadas ou à perspectiva de priorizar a volta à normalidade econômica em detrimento da quarentena. Aliás, os “sacerdotes da morte” que vieram a público anunciar que a morte de milhares de doentes é um mal menor diante da paralisação econômica causada pela quarentena pertencem a estes segmentos econômicos (Durski, Justus, Hang, Becker etc.). Na hipótese de um golpe fascista dado em nome da adoção de medidas duras para conter a crise e o caos social e combater a rebeldia popular, esse segmento seguiria apoiando Bolsonaro com apoio político e ideológico e vultosos recursos econômicos.

No plano ainda das frações burguesas Bolsonaro conta com o apoio de setores do capital industrial particularmente atingidos pelo processo de desindustrialização e perda de densidade tecnológica vivenciado pelo país nas últimas décadas. Em franco processo de declínio em termos de peso econômico, competitividade e influência política, tais setores têm apoiado vivamente a eliminação total do que designam como “custo Brasil”, ou seja, direitos trabalhistas, encargos sociais, tributos e regulação estatal, como uma espécie de compensação. Em outras palavras, recorrem à super-exploração do trabalho ainda maior e à isenção fiscal como tábua de salvação para sua sobrevivência econômica. Daí o apoio à pauta neoliberal extremada do governo Bolsonaro apesar de sua sub-representação política na nova administração (a indústria sequer tem um Ministério para chamar de seu!), o que leva diversas lideranças industriais e as entidades que comandam a apoiá-lo politicamente. O caso mais visível é o de Paulo Skaff, presidente da FIESP/CIESP e principal articulador do Diálogo pelo Brasil, entidade que reúne empresários de diversos setores e que conseguiu emplacar a criação de um “conselho consultivo” no novo governo. Esta posição reverbera favoravelmente no médio e no pequeno capital industrial, apesar de conviver com a oposição de setores do grande capital.

É preciso considerar ainda o apoio à Bolsonaro por parte de setores econômicos que exploram negócios à margem da lei ou em situação de plena criminalidade, como as milícias, o tráfico de drogas, os estelionatários da fé, além de desmatadores, garimpeiros etc. Estes setores têm sido diretamente beneficiados pelo governo, não apenas com as “vistas grossas” dos órgãos fiscalizadores das suas ações, como Receita Federal, Polícia Federal, IBAMA e INCRA, mas também com medidas legais. Num quadro de golpe bolsonarista tais setores serão mobilizados por meio de grupos paramilitares e ações repressivas e, no caso das igrejas evangélicas bolsonarizadas, para a construção do consenso junto às camadas mais pobres da população.

Os setores sociais intermediários, principalmente médios e pequenos proprietários e classe média alta, que apoiam Bolsonaro são cada vez mais restritos, porém, à medida que o presidente perde legitimidade têm-se tornado politicamente mais agressivos e ideologicamente mais convictos. Parte desses setores tem interesse direto na interrupção da quarentena, pois são capitalistas de pequeno e médio porte, cujos lucros se deprimem com a interrupção do trabalho e da circulação de bens e serviços. Daí sua participação expressiva nos atos em defesa de Bolsonaro e nas recentes “carreatas”. Com razoável poder econômico, os setores bolsonarizados da classe média, constituídos por profissionais liberais, assalariados de “colarinho branco” bem renumerados (além dos setores da burocracia de Estado já mencionados) etc., possuem capacidade de conquistar apoio popular por meio do “efeito demonstração”, em caso de apoio nas ruas e da disseminação da contra-informação sobre a pandemia e a crise econômica. Esses setores reverberam as fake news produzidas diretamente no Palácio do Planalto desqualificando a gravidade da pandemia e justificando a volta à normalidade econômica, o que sensibiliza os trabalhadores informais, autônomos e desempregados, os quais sofrem diretamente com a interrupção de suas atividades e não têm o amparo estatal.

Bolsonaro conta também com o apoio de parte da grande mídia, diretamente beneficiada pelas verbas publicitárias do governo, e de uma rede de sites, blogs, páginas e perfis em redes sociais que não apenas reverbera as fake news emanadas do próprio Palácio do Planalto, sob comando da própria família do presidente, mas também produz conteúdo ideológico afinado com a perspectiva fascista do bolsonarismo. Esta rede é financiada pelas forças sociais e políticas descritas acima e dialoga com um universo social muito maior que dos bolsonaristas. Graças ao apoio deste conjunto de forças sociais e políticas é possível afirmar que, ao lado de Lula, Bolsonaro se transformou na principal liderança política do país. Apesar de ainda não ter conseguido constituir um partido próprio, o que destoa do modelo fascista clássico e de outras lideranças fascistas da atualidade, Bolsonaro instrumentalizou o aparelho de Estado para reforçar o apoio político e eleitoral que detinha antes da posse, constituindo um movimento de massas capaz de lhe dar sustentação, mesmo sendo numericamente minoritário em relação ao conjunto das forças antibolsonaristas. Por outro lado, a constituição do “Aliança pelo Brasil” lhe daria uma “arma” a mais, na medida em que poderia organizar sua base e a massa que ainda o apóia, com vistas a uma intervenção mais articulada no próprio sistema de representação política e no processo eleitoral, instância da sociedade política em que o bolsonarismo apresenta dificuldades. De todo modo, numa situação de crise de hegemonia, em que há uma fratura relativa entre classes sociais e representação política e em que nenhuma das forças do sistema de representação política consegue se impor sobre as outras, a instrumentalização do aparelho de Estado lhe dá uma vantagem considerável. Vantagem que lhe permite “dobrar a aposta”, mesmo numa situação de perda crescente de legitimidade, e buscar avançar no seu projeto fascista.

Bolsonaro aposta no caos.

Na atual crise Bolsonaro reafirma os compromissos que originalmente assumiu com os interesses gerais do capital resistindo em abandonar o ajuste fiscal e reiterando a aprovação de novas reformas neoliberais, integralmente em contraposição à uma política econômica anticíclica, que privilegiasse a retomada dos investimentos públicos, o socorro financeiro às micros, pequenas e médias empresas e o pagamento de uma renda mínima aos milhões de desempregados e trabalhadores precarizados mediante a disponibilização de recursos públicos para tanto. Ao contrário, Bolsonaro não só reafirma seu programa neoliberal extremado como desqualifica as medidas de isolamento horizontal, a chamada “quarentena”, propugnadas pelas autoridades sanitárias e adotadas na maioria dos países, alguns bastante tardiamente, e ainda tenta ganhar apoio popular e mobilizar sua base social contra a mesma a partir do cálculo genocida de que os trabalhadores têm que escolher entre o emprego e a renda ou a saúde, colocando a manutenção da atividade econômica como imperativo em relação à pandemia.[10] Na verdade, quando defende o isolamento vertical ou a contaminação generalizada da população como forma de imunização contra o vírus (afinal, “o Brasil não pode parar”), Bolsonaro defende a lógica burguesa em seu núcleo duro.

Isso porque o isolamento horizontal ou horizontal, a quarentena, com a consequente paralisação da maior parte das atividades econômicas, significa a interrupção parcial do processo de extração da mais-valia, afetando diretamente a valorização do capital ao mesmo tempo que desencadeia uma brutal desvalorização do capital que se manifesta relativamente superacumulado em face do aprofundamento da recessão e da paralisia econômica. É por conta desta lógica que ele e alguns empresários mais lascivos consideram a morte de 5 a 7 mil pessoas, que não terão condições físicas, econômicas e sanitárias de resistir ao vírus (idosos, doentes crônicos, moradores de rua, pobres), um desdobramento inevitável diante do imperativo de “salvar a economia”.[11] Aqui, a ratio neoliberal se encontra com o fascismo e a eugenia, pois as mais prováveis vítimas fatais da pandemia são justamente aqueles tidos como mero custo previdenciário e assistencial para o Estado e as empresas, podendo ser descartadas normalmente.

Por isso as medidas adotadas até aqui têm como norte a transferência dos custos econômicos da crise para os trabalhadores, isentando o governo e o capital. As primeiras medidas propostas para combater a crise se limitaram repetir o mantra da necessidade de aprovação de mais reformas neoliberais e de mais privatizações.[12] Em seguida o governo anunciou um pacote de medidas que pretensamente teriam um papel anticíclico, pois estimulariam o consumo popular, mas na verdade nada mais propunham do que manobrar o orçamento público com a liberação antecipada de benefícios já previstos e o adiamento do pagamento de determinados tributos e encargos. Os recursos disponíveis para crédito às pequenas empresas ficaram bem aquém das necessidades do momento, mas não a promessa de auxílio às grandes empresas, inclusive o agronegócio e os bancos.  Na sequência o governo acatou proposta da Confederação Nacional da Indústria e editou a medida provisória que dá autonomia para que os patrões demitam, suspendam os contratos de trabalho, reduzam jornadas e não paguem os salários conforme sua conveniência, em “negociações” individuais com cada trabalhador, sem a intermediação dos sindicatos. Com isso o governo suspende concretamente o que ainda resta da CLT. O chamado “bode na sala”, artigo que permitia a suspensão do contrato de trabalho pelas empresas sem o pagamento dos salários por quatro meses, foi retirado da proposta, para ser reintroduzido com um prazo menor: dois meses. Os demais trabalhadores formais poderão ter seus salários reduzidos em 20%, 50% ou até 70%, sendo apenas parte deste montante coberto pelo seguro-desemprego.[13] Com menos de um mês de vigência da nova lei, nada menos que um milhão de trabalhadores formais tiveram o contrato de trabalho suspenso ou o salário reduzido e o governo prevê que a medida atinja mais de 24 milhões de trabalhadores.[14] Pesquisa do Sebrae sobre o impacto da pandemia nas pequenas empresas estima em 9,3 milhões o número de trabalhadores demitidos a partir da segunda metade de março.[15] Tais medidas atingem diretamente o que resta da CLT e, por isso mesmo, há quem defenda sua permanência para depois da crise.

Porém, enquanto joga no desemprego trabalhadores formais que ainda gozam de alguns direitos trabalhistas, o governo organiza sua substituição por outros, com menos direitos ainda. No momento tramitam no Congresso a regulamentação da medida provisória que cria a carteira de trabalho “verde e amarela”, que retira a maioria dos direitos trabalhistas que ainda restam para os trabalhadores jovens (até 29 anos) e “maduros” (maiores que 55), e o projeto de lei que suspende aumentos salariais e progressões na carreira de servidores públicos, até o final do ano ou enquanto durar o estado de calamidade pública.[16] Ou seja, apesar das divergências quanto às medidas de controle da pandemia, o governo e o centro-direita se unificam e oportunisticamente aproveitam a desmobilização gerada pela quarentena e a situação emergencial para continuar aprovar a pauta neoliberal extremada do golpe. Sem trégua, sem dó!

Diante do imperativo da quarentena como principal iniciativa para conter a escalada do contágio pelo coronavírus o governo se comprometeu a pagar uma espécie de salário social para os trabalhadores autônomos e informais, porém limitado ao valor de um quinto do salário mínimo (200 reais), demonstrando seu completo desprezo pela situação dos mais vulneráveis socialmente. No Congresso este valor foi triplicado, mas ainda assim continuou bastante limitado, pois pouco maior que a metade do salário mínimo (600 reais). Para termos um parâmetro de quão baixo é este valor, bastante aquém das necessidades básicas de uma família trabalhadora, é preciso lembrar que o salário mínimo proposto pelo Dieese, para março de 2020, é de aproximadamente 4.300 reais!

Outra medida que evidencia claramente a perspectiva rentista do governo é a criação de uma espécie de linha de crédito para as empresas que faturam entre 360 mil e 10 milhões de reais por ano pagarem o salário de seus trabalhadores formais que recebem até dois salários mínimos por dois meses, sendo que o montante emprestado terá um prazo de carência para pagamento e poderá ser parcelado por até 36 meses. Ora, depois da reforma trabalhista o número de trabalhadores formais nas empresas deste porte se reduziu consideravelmente, predominando amplamente o trabalho informal; o que significa dizer que em caso de inatividade a maioria de seus trabalhadores será dispensada ou ficará sem receber salário. Além disso, o governo prevê que a quarentena deverá durar, no máximo, dois meses, pois os empréstimos não cobrem a folha salarial além deste tempo. As micro e pequenas empresas ficaram de fora deste benefício porque não possuem este faturamento anual. Na verdade, o governo as excluiu porque teme a inadimplência. Na França, por exemplo, o governo banca, não empresta, o montante equivalente a 85% dos salários, por um período de 12 meses, cabendo às empresas pagarem os 15% restantes. No total, o governo prevê gastar com auxílio emergencial e cobertura salarial algo em torno de 150 bilhões de reais, aproximadamente 2% do PIB, enquanto em diversos países esse montante é várias vezes maior, como até mesmo nos EUA de Trump e Bannon.

Enquanto isto o governo se põe a salvar da crise o agronegócio e os bancos (pequenos, médios e grandes). Para o agronegócio foram disponibilizados, via bancos públicos, 30 bilhões de reais em créditos e para o setor da construção civil 43 bilhões.[17] O governo beneficiou os bancos afrouxando as regras e obrigações que devem cumprir para demonstrar capacidade de arcar com seus encargos financeiros ao reduzir a alíquota do depósito compulsório de 25% para 17%, favorecendo a captação de recursos com base na aquisição de novos papéis podres e permitindo que os bancos exijam mais garantias para conceder novos empréstimos. O chamado o “orçamento de Guerra” autoriza o Banco Central a comprar os títulos podres, e aqueles apodrecidos pela crise, em posse dos bancos a preços definidos pelo próprio cassino financeiro e em mercados secundários que permitem falcatruas sem fim. Ou seja, o governo está salvando os bancos da crise de superacumulação gerada pela especulação financeira…com mais especulação financeira. Até agora já disponibilizou 1,2 trilhão de reais para essas operações (quase 20% do PIB) e a tendência é que a bola de neve cresça ainda mais. A promiscuidade desta manobra é tão evidente que por meio de outra medida provisória o governo tratou de imunizar os diretores e operadores do Banco Central responsáveis pela compra destes papéis podres em relação à lei da improbidade administrativa.[18] Um super “pool”, reunindo investidores institucionais e quatro dos cinco maiores bancos do país (Itaú, Bradesco, Santander e BB) está sendo organizado pelo BNDES para socorrer as empresas com dificuldades financeiras, principalmente dos setores elétrico, automobilístico, varejista não-alimentício e de companhias aéreas, mas podendo ser ampliado para outros ramos. O socorro virá na forma de novos empréstimos, alongamento de dívidas e emissão de títulos conversíveis em ações,[19] potencializando ainda mais o processo de centralização de capitais liderado pelo setor financeiro.

A disparidade em relação aos recursos destinados os trabalhadores é abissal, nada menos que dez vezes mais! Essa é a intervenção estatal que o capital e seus intelectuais e escribas recém-convertidos ao “keynesianismo” gostam: privatização do lucro e socialização dos prejuízos por meio do socorro estatal ao capital e assistencialismo por meio da transferência de renda aos trabalhadores, corte ainda maior de direitos trabalhistas e arrocho salarial. Na verdade, ao salvar o sistema financeiro o governo não está salvando apenas os bancos, mas todos os segmentos do capital que buscam no rentismo uma forma de valorização e mesmo setores da classe média que também se beneficiam do rentismo e que fornecem a base social mais militante do bolsonarismo. Não é à toa que nesta hora não se vêem, entre os porta-vozes do capital, posições contrárias à continuidade da aprovação das reformas neoliberais e a esse tipo de “auxilio econômico” por parte do governo, nem mesmo entre os que apoiam o centro-direita na questão do aumento do benefício e da necessidade de isolamento horizontal. Portanto, mesmo que determinadas frações do bloco no poder percebam a gravidade da crise, temam os efeitos econômicos negativos do prolongamento da pandemia, receiem os riscos políticos de uma aventura fascista e, no momento, demandem medidas anticíclicas e emergenciais mais ambiciosas, o minimalismo da política econômica do governo Bolsonaro expressa sem rodeios a perspectiva do capital de jogar a conta da crise sobre as costas dos trabalhadores o máximo possível. Agora e depois da pandemia!

Além da defesa dos interesses mais mesquinhos e particularistas do grande capital, Bolsonaro desencadeou uma ofensiva política e propagandística contra a necessidade da quarentena e do isolamento horizontal em nome da retomada da “normalidade” econômica e com base no lema “O Brasil não pode parar”. Para tanto atribuiu à pandemia a responsabilidade pela crise econômica (no que, aliás, é acompanhado pelos analistas e lideranças burguesas), minimiza a gravidade da situação epidemiológica e do risco de contágio e joga os micros, pequenos e médios empresários e trabalhadores informais, severamente afetados pela inatividade econômica e pela ausência de direitos, contra as autoridades sanitárias, os governadores (que tomaram severas medidas de isolamento horizontal mandando fechar lojas e serviços não essenciais) e mobiliza sua base social por meio das redes sociais e de “carreatas” pelo país afora. Nesta hora não faltaram empresários lascivos vindo à público reverberar a necropolitica de Bolsonaro para dizer que a morte de 5 a 7 mil pessoas pelo coronavírus era um custo humano justificável para evitar a crise econômica, expressando sem rebuços sua consciência fascista. Desde o dia 27 de março, o “dia da vergonha”, carreatas se espalharam pelo país, mobilizando o patronato e a classe média bolsonarista em desfiles de carros elegantes e com os vidros devidamente fechados para evitar o contágio, em defesa da volta imediata dos trabalhadores ao trabalho e hostilizando as autoridades que adotaram o isolamento horizontal como Dória e Witzel (o primeiro foi chamado de “comunista” numa manifestação bolsonarista em São Paulo, enquanto os bolsonaristas cariocas berram “Fora Witzel” de dentro de seus carros!).[20] Por conta destas pressões, governadores de estado já autorizam a suspensão gradual da quarentena, e vários outros flexibilizaram o conceito de “atividades essenciais” autorizando o funcionamento de indústrias, da construção civil e de lojas, apesar do crescimento acentuado do número de contaminados e de mortos no país.[21] Assim, Bolsonaro aposta no caos por que vê nele a oportunidade e a justificativa para retomar a trajetória para um auto-golpe, interrompida com a eclosão das duas crises.

Entre a mordida e o sopro.

Esta postura criminosa por parte de Bolsonaro desencadeou reações generalizadas a partir de meados de março, abrangendo desde lideranças do centro-direita, o STF e a grande mídia a ele vinculada, até aliados de primeira hora, como Ronaldo Caiado, e o comando do Exército[22], passando, obviamente, pelos partidos de esquerda e movimentos sociais. Diante da gravidade da pandemia do corona vírus, que se espalha com grande rapidez no país ameaçando colapsar não só o sistema de saúde, mas a própria economia, provocando uma depressão de grandes proporções,[23] determinados setores do bloco no poder passaram  a defender abertamente as políticas de isolamento horizontal e a adoção de políticas econômicas de inspiração keynesiana voltadas para o auxílio econômico aos mais vulneráveis e o estímulo da economia às custas, momentaneamente, do ajuste fiscal, antagonizando o presidente e a equipe econômica. Diversos setores do empresariado passaram a calcular que o custo econômico e ideológico do prolongamento da pandemia, com uma mortandade em massa, ceifando vidas de trabalhadores, consumidores e endividados e revelando a olho nu, e com mortos pelas ruas, os efeitos nefastos do longo processo de precarização dos sistemas de saúde e seguridade social, era maior do que o aumento brutal dos gastos do Estado. Medidas que podem ser revertidas, quando a tempestade passar, por doses cavalares de ajuste fiscal e ainda maior arrocho salarial e que vão jogar a conta nas costas dos trabalhadores novamente. Na maioria dos países esta foi a opção burguesa do momento, inclusive onde a extrema direita governa, como na Inglaterra e nos EUA.

Por isto, setores da grande mídia (principalmente a Globo), economistas “tucanos”, lideranças empresariais, políticos do centro-direita, etc., passaram a pressionar o governo para que apoiasse o isolamento horizontal e adotasse sem tardar medidas heterodoxas, ao mesmo tempo em que acusavam Bolsonaro de inépcia, “desequilíbrio mental”, irresponsabilidade, contribuindo para desacreditá-lo e isolá-lo politicamente.[24] Não faltou quem propusesse a demissão de Guedes para facilitar a adoção destas medidas pelo governo. No entanto, como vimos, o “keynesianismo de ocasião” dos neoliberais de sempre não implica na recusa da transferência ilimitada de recursos públicos à ciranda financeira, nem a interrupção da eliminação de diretos trabalhistas. Sem trégua, sem dó!

Por outro lado, se o conjunto do capital se unifica no tocante ao socorro estatal às empresas há divergências quanto à adoção do isolamento horizontal por razões econômicas e por razões político-ideológicas. Em primeiro lugar é preciso ressaltar que em termos gerais o isolamento horizontal amplifica a crise do capital pela simples razão de que ao paralisar grande parte das atividades econômicas prejudica a produção e extração do valor e curtocircuita a relação entre produção, distribuição e circulação.  Portanto, o isolamento horizontal amplifica a tendência de crise já em curso desde antes da pandemia, o que explica a resistência do capital e dos governos em diversos países às medidas de isolamento horizontal mesmo quando a OMS indicava o contrário e a expansão do contágio e das mortes se aceleravam.  Isto indica também que a depender do capital as pressões para a flexibilização ou mesmo interrupção da quarentena tendem a aumentar assim que as curvas ascendentes de contaminação e mortes se “achatarem”, correndo-se o risco de reativar a escalada pandêmica.

Por isto, os setores essenciais, que continuam funcionando normalmente são favoráveis à quarentena, em primeiro lugar por razões materiais imediatas. Alguns deles têm aumentado seu faturamento com o aumento do consumo, como o setor de produção e distribuição de alimentos e bebidas, produtos de higiene, limpeza e, saúde (supermercados, frigoríficos, determinados ramos industriais, produtores rurais), de serviços de internet e telefonia e de serviços bancários. Outros serviços, porém, não essenciais, que conseguem funcionar de maneira remota também apoiam a quarentena, como escolas particulares, principalmente no ensino à distância. Porém, pelos mesmos motivos os setores econômicos que tiveram que interromper suas atividades defendem o isolamento vertical e pressionam pelo fim da quarentena, particularmente o comércio varejista, diversos ramos do setor serviços e o setor industrial. Os dois primeiros porque dependem em grande medida das vendas presenciais, imediatamente prejudicadas pelo fechamento das lojas, e o setor industrial porque a quarentena aborta um modestíssimo processo de recuperação em curso desde 2018, aumentando sua capacidade ociosa.

No entanto, para além da questão econômica as divergências quanto à quarentena também são perpassadas pelas opções político-ideológicas dentro dos respectivos setores econômicos. Como já levantamos anteriormente, as frações burguesas bolsonaristas defendem o fim do isolamento horizontal de maneira acintosa; particularmente aquelas que têm tido maiores perdas econômicas, mas também há defesa do isolamento vertical em parte de setores que estão funcionando na quarentena, como o agronegócio/proprietários rurais e a construção civil. No interior destas frações é possível perceber divergências entre entidades representativas, lideranças e regiões. A perspectiva político-ideológica destas frações é favorável ao fechamento do regime, com o fascismo bolsonarista ou mesmo uma ditadura militar clássica, e ao reforço da dominação burguesa por meio dos mecanismos repressivos e de controle social.

Por outro lado, as frações que defendem a quarentena por razões político-ideológicas o fazem por entender que o agravamento da pandemia pode agravar a crise econômica ainda mais do que a paralisação temporária das atividades e que uma “tempestade perfeita” combinando colapso dos sistemas de saúde e defesa sanitária, mortandade elevada e indigência econômica pode levar a uma situação de convulsão social incontrolável. Não à toa estes setores são mais receptivos ao assistencialismo estatal emergencial para os trabalhadores e tem adotado ações assistencialistas com a doação de recursos, cestas básicas, equipamentos médicos e de proteção individual como medidas de alivio social e criação de consenso. Estas posições são lideradas pelas frações hegemônicas do bloco no poder, capital externo (indústria automobilística, telecomunicações, financeiro) e capital bancário nacional e internacional.[25] Frações que possuem uma visão mais nuançada da situação mundial e vislumbram a manutenção da atual democracia restrita, com um espaço político limitado para o mundo do trabalho, sem contudo, o afrouxamento dos mecanismos repressivos já em vigor nem o abandono definitivo do neoliberalismo. Portanto, são divergências no interior do campo golpista, que não pretendem abrir mão do que foi “conquistado” nos últimos anos na correlação de forças com os trabalhadores e que, por isto, no momento se opõem ao impeachment ou à renúncia de Bolsonaro, seja porque o apoiam, seja porque temem os riscos políticos de uma ruptura institucional desta envergadura, permitindo que Bolsonaro continue sentado na cadeira da presidência.

Por sua vez, os partidos de esquerda tampouco conseguem romper com esta dinâmica política. Em nota conjunta partidos e lideranças de esquerda propuseram a taxação das grandes fortunas, lucros e dividendos, um empréstimo compulsório a ser pago pelos bancos privados, a revisão das renúncias fiscais, que o tesouro arque com todas as despesas com saúde e seguro social e a ampliação do auxílio econômico para indígenas, quilombolas e sem-teto, entre outras propostas. Porém, não conseguiram ir além da mera constatação de que a continuidade de Bolsonaro no governo é um perigo, sintetizada no lema “Basta de Bolsonaro”, e de um pedido de renúncia! A apresentação de queixa-crime contra Bolsonaro no STF é abertamente assumida como um caminho para tirá-lo da presidência sem a necessidade de um processo de impeachment. Porém, como a coisa foi olimpicamente rejeitada PGR de Aras, revelando o peso político dos setores bolsonarizados no interior do aparelho de Estado, a manobra deu em nada. Enquanto frentes de massa como “Povo sem Medo” e “Brasil Popular” defendem o “Fora Bolsonaro” e seu impeachment, a direção do PT, maior partido da oposição de esquerda, decidiu não aderir a esta bandeira de luta, preferindo se limitar a exigir do governo o cumprimento do isolamento horizontal e das medidas de auxilio econômico,[26] numa demonstração cristalina de rendição à nova “chantagem do mal menor” (ruim com o centro-direita [e com o general Braga Neto], pior com Bolsonaro)![27]

Com o aprofundamento da crise econômica devido à paralisação relativa das atividades e o avanço exponencial da contaminação, a recalcitrância de Bolsonaro tornou-se cada vez mais instabilizadora. Porém, como o impeachment é visto pelo conjunto do bloco no poder e por seus representantes políticos como uma aventura com alto grau de risco político, pelas razões que apontamos anteriormente, e a renúncia implicaria na rendição “voluntaria” de Bolsonaro aos militares e ao centro-direita, a solução encontrada foi “colocar-lhe o guizo” em volta do pescoço por meio de uma tutela militar direta, que restaura “em parte” a intenção original dos militares porque “suave” e com data de validade. Sem qualquer troca de cadeiras, mudança institucional ou veto à ação política de Bolsonaro o general Braga Neto, chefe da Casa Civil, passou a compartilhar a direção do governo, articulando os ministérios e a tomada de decisões. A unidade dos militares do governo e da ativa foi decisiva para esta saída e contou com o apoio ativo do Congresso, do STF, de governadores e da maior parte da grande mídia.[28] Foi motivada por um cálculo político realista dos militares segundo o qual era melhor compartilhar de forma mais efetiva a direção política de um governo que só se tornou realidade graças ao seu apoio decisivo durante o processo eleitoral e no qual tem uma participação central (mesmo que isto implique em desgaste político e no risco de tornar o cesarismo militar uma necessidade incontornável), do que “perdê-lo” para o impeachment ou ter que apoiar um golpe fascista.

Tenta-se criar então um “governo oficioso” relativamente blindado em relação aos arroubos bolsonarianos, mas responsável por conduzir o combate à pandemia e à crise econômica. Isto porque, como Bolsonaro não pôde ser simplesmente descartado criou-se por hora uma situação esdrúxula onde ele se comporta como se ainda detivesse o comando único do governo: ameaça demitir ministros que não cumpram suas determinações; negaceia no encaminhamento das medidas de auxílio econômico aos trabalhadores já aprovadas; prega o fim do isolamento horizontal e conclama as pessoas para que voltem ao trabalho com base no surrado discurso negacionista e na tese de que a salvação da economia bem vale alguns milhares de mortos. Por fim, age como um agente desagregador contra seu próprio governo, comunicando-se com sua base como se fosse um líder da oposição e mobilizando-a contra a quarentena e o auxílio emergencial. Criou-se assim uma situação de instabilidade ainda mais grave, que pode solapar a própria “tutela militar”, tida por muitos como solução redentora para a crise política, e mantém a alternativa golpista no horizonte, tanto no sentido do fascismo bolsonarista, quanto no sentido do cesarismo militar.

Enquanto isto, o encaminhamento efetivo das medidas emergenciais para os trabalhadores padece com a “catimba” governamental (demora em liberar o dinheiro, dificuldades burocráticas para a solicitação do recurso, etc.) e os que não podem trabalhar de casa voltam para as ruas, abandonando a quarentena e retomando a vida normal. Em diversos estados ocorre um processo acelerado de flexibilização do isolamento horizontal pela própria população e/ou por iniciativa das autoridades. Enquanto o próprio ministério da Saúde, que emergiu na crise como seu principal defensor, propõe o “distanciamento social seletivo”, eufemismo para o isolamento vertical, para cidades e regiões onde os casos de contaminação por corona vírus não ocupam mais de 50% dos serviços de saúde. Apesar desta rendição parcial à vontade do “capitão”, Mandetta foi demitido, com apoio dos militares que o protegiam, e trocado por outro privatista como ele, porém, mais dócil![29]

“Tempestade perfeita”, possibilidades e alternativas.

Neste cenário de descompromisso com a saúde pública tanto por parte do Estado, quanto por parte do mercado, os casos de contaminação e óbitos se aceleram num ritmo superior ao da maioria dos países, mesmo considerando o alto índice de subnotificação. Enquanto isso, o número de testes aplicados no país é um dos menores do mundo e o sistema de saúde entra em colapso, com falta de leitos, equipamentos de proteção individual e a transformação dos profissionais de saúde no grupo de risco mais atingido pela doença. Anuncia-se uma tragédia social de proporções bíblicas e de longa duração, que já atinge os mais pobres com uma virulência inaudita,[30] com conseqüências sociais e políticas imprevisíveis, negando na prática a tese liberal de que para a doença todos são iguais! Esta “tempestade perfeita” cria as condições para uma convulsão social que abre caminho para uma saída burguesa autoritária, mas por outro lado também abre possibilidade de retomada da iniciativa pela oposição de esquerda, particularmente a esquerda socialista, e de reação organizada dos trabalhadores.

As soluções apontadas pelo capital são conhecidas, significam mais neoliberalismo, democracia restrita ou fechamento do regime caso necessário. Medidas como o controle de aglomerações populares por meio do rastreamento dos sinais de celular foram acertadas entre o governo federal e as operadoras de telefonia e já são adotadas em alguns estados e o lockdown (bloqueio total de movimentação) é vislumbrado como medida de combate à pandemia em caso de agravamento, mas pode ser aplicado de maneira seletiva nos bairros populares das grandes, como uma medida de controle político, conforme o descontentamento com o morticínio nas periferias se transforme em rebeldia social.[31] A manutenção de Bolsonaro no governo pode se tornar insustentável nas próximas semanas por conta não só da instabilidade que cria, mas do crescimento de sua impopularidade e da necessidade de um “bode expiatório” para salvar as aparências, mediante o avanço da pandemia no país. Num cenário provável de crescimento exponencial do número de infectados e de mortos, o comportamento genocida de Bolsonaro o torna o “culpado preferencial” para o desastre. Por outro lado, pode ser que a escalada pandêmica gere nada mais do que agonia e medo paralisantes, em que as pessoas tratem apenas de se proteger como podem e correr atrás da sobrevivência, impedindo a transformação do descontentamento em rebeldia social e em ação politica efetiva. Assim, Bolsonaro pode continuar onde está, fazendo o que faz, enquanto o “governo oficioso” conduz a situação “por cima”, com o apoio do centro-direita, “aperfeiçoando” a democracia restrita em “fogo brando” com a eliminação de mais direitos e a imposição de novos instrumentos de controle. De todo modo, com Bolsonaro ou sem Bolsonaro, para o capital a pauta política e econômica do golpe de 2016 tem que continuar.

Isto significa que para os trabalhadores estão colocados variantes do mesmo projeto de barbarização da vida social e de autoritarismo. As soluções apontadas pelos trabalhadores, por sua vez, devem ser capazes de barrar este projeto e transformar insatisfação difusa, desobediência civil e rebeldia espontânea em auto-organização, ação política e perspectiva anticapitalista. Em torno de uma pauta não apenas antifascista e antineoliberal, mas que apresente os valores e a perspectiva socialista. Uma pauta de priorização radical da vida em relação ao mercado, ao lucro e ao ajuste fiscal; de solidariedade com os doentes, com os mais vulneráveis econômica, social e fisicamente à ameaça de contaminação e com os profissionais de saúde, que estão na linha de frente da guerra contra o covid-19, mas trabalham em condições de enorme precariedade; de taxação das grandes fortunas, lucros e dividendos; de recomposição e ampliação dos direitos sociais e trabalhistas; de reversão da pauta econômica e política do golpe, com a deposição do governo Bolsonaro, a convocação de novas eleições, e a anulação das reformas neoliberais e das medidas autoritárias tomadas desde o golpe.

Num cenário de crise das organizações de esquerda, e de impermeabilidade do sistema de representação política em relação às demandas populares, é fundamental redimensionar a ação política de partidos, sindicatos e demais entidades do mundo do trabalho, particularmente da esquerda socialista. É fundamental buscar interlocução com os setores precarizados da classe trabalhadora, combinar a inserção institucional com as lutas de massa, articular frentes de luta em defesa de uma democracia ampliada e da perspectiva socialista. No entanto, para além dessas tarefas para o período e que demandarão um esforço abrangente e continuado, no atual momento a auto-organização dos trabalhadores se constitui como uma necessidade premente, como um instrumento importante para enfrentar estes desafios e apresentar uma perspectiva socialista de superação deste quadro dramático. A auto-organização dos trabalhadores implica na sua completa independência e autonomia em relação ao Estado burguês e ao capital. O que significa dizer que os próprios trabalhadores devem decidir o que, como e onde desenvolver suas iniciativas a partir de suas próprias necessidades e interesses, seja por meio das organizações já existentes (sindicatos, partidos, associações de moradores, comissões por local de trabalho, moradia e estudo etc.), seja através de novas formas de organização. Isto não quer dizer que não se deva exigir do Estado e do capital direitos, benefícios e recursos, mas seu atendimento não pode implicar em qualquer tipo de subordinação política, econômica e ideológica.

Neste sentido, há um enorme leque de iniciativas para enfrentar este quadro amplo de desafios, mas a porta de entrada para acessar os trabalhadores com uma perspectiva alternativa ao individualismo, à mesquinharia burguesa e ao descaso estatal é a defesa radical da vida e da solidariedade.[32] Em nome deste valor próprio da perspectiva socialista, que nega toda forma de hierarquia baseada em distinção social, política, religiosa, étnica, de gênero e outras, é possível organizar coletivamente tarefas do dia a dia para os que não podem romper o isolamento horizontal de modo algum, como doentes e idosos, para os que vivem em condições de extrema vulnerabilidade social por razões econômicas, preconceito etc., ou para os que estão enfrentando a pandemia submetidos a jornadas de trabalho prolongadas e estafantes, como os profissionais de saúde. Tarefas como a ida a estabelecimentos comerciais para realizar compras, a coleta e distribuição de alimentos, remédios e produtos de higiene e limpeza ou mesmo providências de caráter sanitário. Também organizar os trabalhadores para arrancar do Estado e do capital proteção social, recursos materiais, acesso à saúde e condições dignas para enfrentar a pandemia. No momento atual a questão da solidariedade assume uma dimensão ético-política fundamental na disputa pela hegemonia, pois permite contrapor claramente a perspectiva socialista àquela que impera na sociedade burguesa em conformidade com a lógica do capital, e particularmente no Brasil sob Bolsonaro, que propõe o genocídio organizado a partir de cima pelo próprio Estado em nome da normalidade econômica e do imperativo do lucro.


[1] – ALVARENGA, Darlan; SILVEIRA, Daniel. PIB do Brasil cresce 1,1% em 2019, menor avanço em 3 anos. 04/03/2020. https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/03/04/pib-do-brasil-cresce-11percent-em-2019.ghtml,acesso em 13/04/2020.

[2] – G1. Cidades brasileiras registram panelaço contra Bolsonaro. 16/04/2020. https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/16/cidades-brasileiras-registram-panelaco-contra-bolsonaro.ghtm, acesso em 17/04/2020.

[3] – MAZUI, Guilherme. Um dia após pronunciamento, Bolsonaro repete ataques a governadores e críticas ao isolamento. 25/03/2020. https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/25/um-dia-apos-pronunciamento-bolsonaro-repete-ataques-a-governadores-e-defende-isolamento-mais-brando.ghtml, acesso em 26/03/2020.

[4] – ROCHA, Lucas. General Braga Netto já é o presidente operacional do Brasil e decisão foi até comunicada à Argentina. 04/04/2020. https://www.brasil247.com/poder/general-braga-netto-ja-e-o-presidente-operacional-do-brasil-e-decisao-foi-ate-comunicada-a-argentina, acesso em 06/04/2020.

[5] – Os conceitos de democracia restrita e democracia de cooptação foram desenvolvidos originalmente por Florestan Fernandes. Ver FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987, pp. 289-366.

[6] – PENIDO, Ana; RODRIGUES, Jorge M.; MATHIAS, Suzeley Kalil Mathias.  As Forças Armadas no governo Bolsonaro. 14/04/2020. https://www.thetricontinental.org/pt-pt/brasil/as-forcas-armadas-no-governo-bolsonaro/, acesso em 14/05/2020.

[7] – GELAPE, Lucas; MORENO, Ana Carolina e CAESAR, Gabriela. Número de policiais e militares no Legislativo é quatro vezes maior do que o de 2014. 08/10/2018. https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em-numeros/noticia/2018/10/08/numero-de-policiais-e-militares-no-legislativo-e-quatro-vezes-maior-do-que-o-de-2014.ghtml, acesso em 09/03/2020.

[8] – MIGALHAS. Previsão de aposentadoria dos ministros do STF e STJ é modificada com PEC dos 75. 06//05/2015. https://www.migalhas.com.br/quentes/220030/previsao-de-aposentadoria-dos-ministros-do-stf-e-stj-e-modificada-com-pec-dos-75 , acesso em 16/04/2020.

[9] – Veja-se as críticas dirigidas a Bolsonaro por Gabriel Kanner, dirigente do grupo “Brasil 200”, principal entidade empresarial bolsonarista.        AZEVEDO, Reinaldo. Fala de Bolsonaro desagradou líder de grupo de empresários aliados. 25/03/2020. https://noticias.uol.com.br/colunas/reinaldo-azevedo/2020/03/25/fala-de-bolsonaro-desagradou-lider-de-grupo-de-empresarios-aliados.htm, acesso em 28/03/2020.

[10] – SOUZA, Josias de. Bolsonaro posta novo vídeo contra isolamento social. 02/03/2020. https://noticias.uol.com.br/colunas/josias-de-souza/2020/04/02/bolsonaro-posta-novo-video-contra-isolamento-social.htm, acesso em 07/04/2020.

[11] -UOL. Madero, Havan, Giraffas: empresários criticam medidas de combate à pandemia. 24/03/2020. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/24/empresarios-coronavirus-o-que-dizem-criticas.htm, acesso em 27/03/2020.

[12] – SAFATLE, Cláudia. “Vamos transformar a crise em reformas”, afirma Paulo Guedes”. 10/03/2020. https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/03/10/vamos-transformar-a-crise-em-reformas-afirma-paulo-guedes.ghtml, acesso em 11/03/2020.

[13] – ANDRETTA, Filipe. MP 936: entenda novas regras de redução do salário e suspensão do emprego. 02/04/2020. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/04/02/medida-provisoria-mp-936-duvidas-salario-reducao-suspensao-coronavirus.htm, acesso em 03/04/2020.

[14] – EXAME. Mais de um milhão já tiveram contrato suspenso ou salário reduzido. 13/04/2020. https://exame.abril.com.br/economia/mais-de-um-milhao-ja-tiveram-contrato-suspenso-ou-salario-reduzido/, acesso em 14 de abril de 2020.

[15] – SEBRAE. O impacto da pandemia de corona vírus nos pequenos negócios. Resultados Nacionais. 2ª edição. 3 a 7 de abril de 2020.

[16] – BRANDÃO, Marcelo. MP da Carteira Verde e Amarela é aprovada na Comissão Mista. 17/03/2020. https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2020-03/mp-da-carteira-verde-e-amarela-e-aprovada-na-comissao-mista, acesso em 18/03/2020.

[17] – BRASILAGRO. Agronegócio fica com 17% do socorro de bancos públicos na pandemia. 23/03/2020. https://www.brasilagro.com.br/conteudo/agronegocio-fica-com-17-do-socorro-de-bancos-publicos-na-pandemia.html, acesso em 28/03/2020; EXAME. Caixa anuncia pacote de R$ 43 bilhões para construção civil. 09/04/2020. https://exame.abril.com.br/negocios/caixa-anuncia-pacote-de-r-43-bilhoes-para-construcao-civil/, acesso em 12/04/2020.

[18] – AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA. Nota Técnica ACD Nº 2/2020 – “Privilégios da banca no Senado” – PEC 10/2020 E MP 930/2020. 06/04/2020. https://auditoriacidada.org.br/privilegios-da-banca-no-senado-pec-10-2020-e-mp-930-2020/, acesso em 15/03/2020.

[19] – RITTNER, Daniel; GRANER, Fabio; MOREIRA, Talita; FILGUEIRAS, Maria Luíza. BNDES articula um ”sindicato” de bancos em plano de socorro. 15/04/2020. https://valor.globo.com/financas/noticia/2020/04/15/bndes-articula-um-sindicato-de-bancos-em-plano-de-socorro.ghtml, acesso em 16/04/2020.

[20] – ROCHA, Lucas. Bolsonaro incita carreatas e atos pelo fim do confinamento em várias cidades do país, 27/03/2020. https://revistaforum.com.br/coronavirus/bolsonaro-incita-carreatas-e-atos-pelo-fim-do-confinamento-em-varias-cidades-do-pais/, acesso em 29/03/2020;  O POPULAR. Bolsonaristas fazem carreata em SP contra medidas de Doria. 11/04/2020. https://www.opopular.com.br/noticias/politica/bolsonaristas-fazem-carreata-em-sp-contra-medidas-de-doria-1.2033634, acesso em 12/04/2020.

[21] – CORREIO BRAZILIENSE. Governos de MT, RO e SC seguem Bolsonaro e reabrem o comércio. 27/03/2020. https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2020/03/27/interna-brasil,840663/governos-de-mt-ro-e-sc-seguem-bolsonaro-e-reabrem-o-comercio.shtml, acesso em 31/03/2020.

[22] – Mesmo sem fazer críticas à posição negacionista de Bolsonaro, no dia 24 de março o comandante do Exército, General Edson Pujol, emitiu nota afirmando o compromisso da força com o combate à pandemia e o apoio aos profissionais de saúde. Ver DEFESANET. Gen Pujol – Lutaremos sem Temor! Importante pronunciamento do Comandante do Exército Brasileiro em alerta à Nação Brasileira. 24/03/2020. http://www.defesanet.com.br/pw/noticia/36204/Gen-Pujol—Lutaremos-sem-Temor-/, acesso em 25/03/2020.

[23] – O governo brasileiro prevê uma alta de 0,02% para o PIB de 2020, No entanto, mesmo agentes e instituições tradicionalmente otimistas percebem que a gravidade da crise é muito maior e pode se intensificar ainda mais: os analistas do mercado financeiro estimam uma queda de 1,96%, enquanto o Banco Mundial prevê recessão de 5% e o FMI de 5,3%, com quase 15% de desemprego.Ver MARTELLO, Alexandro. Apesar de já falar em recessão, governo estima alta de 0,02% no PIB em 2020. 15/04/2020. https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/04/15/mesmo-ja-admitindo-recessao-governo-mantem-previsao-para-o-pib-de-2020-em-002percent-de-alta.ghtml, acesso em 15/03/2020. DE ORTE, Paola. FMI: PIB do Brasil encolherá 5,3% em 2020 e desemprego chegará à 14,7%. 14/03/2020. https://oglobo.globo.com/economia/fmi-pib-do-brasil-encolhera-53-desemprego-chegara-147-neste-ano-1-24370004, acesso em 15/03/2020.

[24] – MARETTI, Eduardo. Insano? Meio jurídico começa a questionar faculdades mentais de Bolsonaro. 17/03/2020, https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2020/03/kakay-bolsonaro-15-de-marco-inimputabilidade-coronavirus/, acesso em 18/03/2020; PRADO, Antonio Carlos. Um ignorante irresponsável. 20/03/2020. https://istoe.com.br/um-ignorante-irresponsavel/, acesso em 22/03/2020; OLIVEIRA. João José.  Até liberais, que defendem Estado enxuto, apoiam ajuda do governo. 28/03/2020. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/28/coronavirus-cria-consenso-entre-economistas-sobre-papel-do-estado.htm, acesso em 29/03/2020.

[25]– Para uma descrição pormenorizada sobre a posição das respectivas frações burguesas diante da quarentena ver VALLE,André Flores Penha e DEL PASSO, Octávio F. As frações burguesas na crise da covid-19: apontamentos preliminares. 16/04/2020. https://www.brasildefato.com.br/2020/04/16/artigo-as-fracoes-burguesas-na-crise-da-covid-19-apontamentos-preliminares, acesso em 16/04/2020. Ver também BORTONE, Elaine e HOEVELER, Rejane Carolina. Mercadores da morte: a ação empresarial contra o isolamento social, 07/04/2020. https://esquerdaonline.com.br/2020/04/07/mercadores-da-morte-a-acao-empresarial-contra-o-isolamento-social/, acesso em 08/04/2020.

[26] – SIQUEIRA, CARLOS e outros. Nota Pública. 30/03/2020. https://esquerdaonline.com.br/2020/03/30/o-brasil-nao-pode-ser-destruido-por-bolsonaro-nota-partidos/, acesso em 01/04/2020; GAUCHAZH. Pandemia faz PT deixar de apoiar campanha por saída de Bolsonaro. 09/04/2020. https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2020/04/pandemia-faz-pt-deixar-de-apoiar-campanha-por-saida-de-bolsonaro-ck8thmpc6025b01tero0nig00.html, acesso em 12/04/2020.

[27] – Ver MACIEL, David. A nova “chantagem do mal menor”. Contrapoder. 3/08/2019. https://medium.com/@Contrapoderbr/a-nova-chantagem-do-mal-menor-coluna-david-maciel-f9e031a1686a, acesso em 15/04/2020.

[28]– ROCHA, Lucas. Por pressão do Exército, Braga Netto atua como presidente no lugar de Bolsonaro, 03/04/3030. https://revistaforum.com.br/politica/por-pressao-do-exercito-braga-netto-atua-como-presidente-no-lugar-de-bolsonaro/, acesso em 06/04/2020.

[29] – FERRO, Maurício. Mandetta é demitido do Ministério da Saúde e Nelson Teich assume. 16/04/2020, https://www.poder360.com.br/governo/mandetta-e-demitido-do-ministerio-da-saude-e-nelson-teich-assume/, acesso em 16/04/2020.

[30] -VASCONCELOS, Paloma. Avanço de coronavírus na periferia de SP expõe desigualdade e racismo, 16/04/2020. https://ponte.org/avanco-de-coronavirus-na-periferia-de-sp-expoe-desigualdade-e-racismo/, acesso em 16/04/2020.

[31] -DIEB, Daniel e GOMES, Helton S. Governo vai monitorar celular para controlar aglomeração na pandemia. 03/04/2020. https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/04/02/para-combater-a-covid-19-o-governo-federal-vai-monitorar-o-seu-celular.htm, acesso em 12/04/2020; MOTA, Erick. Ministério da Saúde: sem isolamento social, Brasil pode entrar em lockdown. 11/04/2020. https://congressoemfoco.uol.com.br/saude/ao-vivo-ministerio-da-saude-atualiza-os-casos-de-coronavirus-no-brasil-2/, acesso em 12/04/2020.

[32] – Virginia Fontes apresenta uma proposta substantiva em torno desta perspectiva. Ver FONTES, Virgínia. Solidariedade social ativa e o coronavírus. 16/03/2020. https://apg.ufsc.br/2020/03/16/solidariedade-social-ativa-e-o-coronavirus-por-virginia-fontes/, acesso em 18/03/2020.

David Maciel

Doutor em história, prof de história, membro da coordenação da escola de formação socialista, membro da editoria de marxismo21, e da coordenação nacional do GT história e marxismo da ANPUH.

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