Bolsonaro em guerra de posição! Até quando?

1 – As “crises gêmeas” avançam.

A atual conjuntura política foi inaugurada com a saída de Moro do ministério da Justiça e desdobrada pela ofensiva do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o governo Bolsonaro e o clã presidencial numa situação de avanço das “crises gêmeas” (pandemia e crise econômica). Quando Sérgio Moro pede demissão do governo, no final de abril, o Brasil notificava mais de 45 mil contaminados e quase 3 mil mortos pela covid-19[2]. Mesmo com a enorme subnotificação, no momento em que escrevemos o número de contaminados já ultrapassou a marca de 2 milhões e 99 mil contaminados e quase 80 mil mortos, ocupando a segunda posição mundial nos dois índices. Neste período de quase três meses o país tornou-se um dos centros mundiais da pandemia, com esta avançando em velocidade e abrangência avassaladoras, para muito além da média mundial de disseminação: com 2,7% da população mundial o Brasil apresenta uma taxa de 14, 47% de contaminados e de 13,1% dos mortos de todo o mundo. Só perde para os EUA, tanto em termos absolutos, quanto em termos relativos: 26,3% de contaminados e 23,52% de mortos para uma população de 4,2% do total mundial[3]. Tanto lá quanto cá, tamanha desproporção em relação às tendências mundiais tem na política sua causa fundamental, particularmente na postura genocida de seus governos centrais e de suas classes dominantes. Por aqui, além de negar a própria pandemia, defender a manutenção da normalidade a todo custo e adotar uma postura contra-pedagógica em relação às posições da OMS, da ciência e do simples bom senso, o governo Bolsonaro negou-se a coordenar as iniciativas de combate à pandemia; atrapalhou o quanto pôde as iniciativas tomadas por governos estaduais e municipais neste sentido; negaceou a liberação do auxilio emergencial para os trabalhadores precarizados e desempregados, negou-se por tempo demais a liberar recursos para as pequenas empresas e, quando liberou, o montante disponível ficou bastante aquém do necessário; retardou o quanto pôde a negociação em torno do alívio fiscal para estados e municípios e ainda tentou maquiar os dados de doentes e mortos pela pandemia. Sem ministro desde meados de maio, o Ministério da Saúde, que se transformou numa espécie de cabide de emprego para militares que nada entendem do assunto, mais estorva do que ajuda no combate à pandemia, além de prescrever medicamentos comprovadamente ineficazes para o tratamento da covid-19. Em grande medida por conta desta postura do governo federal, foi adotada uma “quarentena de araque”, com o funcionamento autorizado ou “tolerado” da maioria das atividades econômicas, obrigando milhões de trabalhadores a se expor diariamente à contaminação em seus postos de trabalho e nos transportes públicos superlotados. Isto sem falar na carência de EPI’s (equipamentos de proteção individual) para os profissionais de saúde; na falta de testes; no completo desamparo das populações carentes e dos bairros periféricos pelo Estado, entregues à condições sanitárias precárias e à carência de alimentos, remédios e artigos de higiene e limpeza; num auxílio emergencial que não paga nem o aluguel, obrigando trabalhadores autônomos e precarizados a buscar renda no dia a dia do comércio informal e da “uberização”. Pesquisa realizada na cidade de São Paulo indica que o índice de contaminação por covid-19 nos bairros populares é 2 vezes e meia maior do que nos bairros ricos, indicando claramente o alto grau de condicionamento social no processo de expansão da pandemia[4]. Outra evidência deste condicionamento social é a disparidade entre negros/pardos e brancos no número de internados por covid-19 que vem à óbito: 54,8% contra 37,9%[5]. O que revela a extrema desigualdade em relação às condições de acesso, ao estágio da doença no momento da internação e à qualidade do atendimento hospitalar.

Para além da pandemia, a crise econômica evoluiu aceleradamente, afetando até mesmo setores “essenciais” como o comércio varejista de alimentos, artigos de higiene e limpeza e produtos farmacêuticos. Em abril, o PIB recuou 9,3% em relação a março, com quedas de 15,7% na indústria, 18,3 no comércio (inclusive nos setores essenciais como alimentos e produtos farmacêuticos), 7,3% no setor de serviços, 7,7% no consumo das famílias e 23% na formação bruta de capital fixo, todos records históricos, a indicar não só a perda de renda por parte dos trabalhadores, mas a própria dificuldade de uma recuperação futura[6]. Diante de tamanha queda, em maio houve uma pequena melhora, mas em junho as estimativas de crescimento da economia brasileira eram puxadas ainda mais para baixo, apesar do discurso ilusionista de Guedes. Entre as empresas que paralisaram suas atividades por conta da quarentena, nada menos que 40% fecharam definitivamente e entre estas 99% eram de pequeno porte, com menos de 50 empregados[7]. Enquanto isto o governo dificulta o acesso ao crédito para as micros e pequenas empresas, disponibilizando poucos recursos ou impondo condições impossíveis para quem se habilita a solicitar um empréstimo. Se em janeiro o FMI projetava uma queda no PIB brasileiro de 2,2% em 2020, antes da pandemia[8], em abril a queda projetada para o ano foi de 5,3% e em junho de 9,1% em 2020, o dobro da queda prevista para a economia mundial (4,9%) [9]. A política ambiental do governo Bolsonaro agrava ainda mais a situação, levando fundos de investimento internacionais a pressionarem o governo brasileiro pelo controle do desmatamento. A pressão externa, com ameaça de negação de novos investimentos e a perda de mercados para produtos brasileiros, acendeu o sinal de alerta entre setores do grande capital nacional, que também cobraram mudanças na política ambiental[10].

Em plena pandemia e com o avanço da crise econômica a aplicação da plataforma neoliberal extremada continuou avançando, surrupiando direitos trabalhistas e favorecendo a privatização ainda maior de recursos e bens públicos, com a ampliação do prazo para suspensão do contrato de trabalho e redução dos salários dos trabalhadores com carteira assinada[11] e o novo marco do saneamento básico[12]. Porém, segundo dados do IBGE, entre maio e junho o desemprego avançou em todas as regiões do país, inclusive no setor informal, atingindo quase 12 milhões de trabalhadores, apesar da redução do número de trabalhadores afastados do trabalho por conta da pandemia.[13] Segundo o IPEA, os trabalhadores autônomos tiveram, em média, uma queda de 60% dos seus rendimentos, com maior incidência entre os menos escolarizados e qualificados e os idosos.[14] Na verdade, a crise econômica não foi criada pela pandemia, mas pelas contradições do atual padrão capitalista de acumulação, combinadas à prevalência de políticas neoliberais que não só destruíram instrumentos e mecanismos capazes de promover políticas anticíclicas, como dificultam a adoção de alternativas e impõem “mais do mesmo”, agravando um cenário já dramático.

Diante do avanço incontrolável da pandemia, completamente evidente no início de junho, não poucas vozes se posicionaram pela necessidade premente do “lockdown”, porém foram abafadas pela pressão do conjunto das frações do capital, particularmente da pequena burguesia, para a reabertura de quase todas as atividades por prefeitos e governadores de norte a sul do país[15]. Na queda de braço entre o isolamento social e a flexibilização prevaleceu a perspectiva burguesa de volta ao trabalho e à “normalidade” da reprodução do capital; no entanto, o “coro da morte” ganhou ressonância entre os trabalhadores, premidos pelo desemprego, pela diminuição de sua renda, pelo desamparo governamental e pela própria falta de perspectivas, reforçado pelo senso comum fatalista, de fundo religioso, de que as coisas precisam voltar ao normal e de que não há nada a ser feito para evitar o destino. Desde o final de junho o clima de “normalidade” se espraia pelo país afora, com um relaxamento até mesmo das práticas elementares de distanciamento social e de proteção social, com aglomerações em shoppings, igrejas, bares, restaurantes e festas e o abandono do uso de máscaras. No momento em que escrevemos alguns governadores e prefeitos apelam para novas medidas de “fechamento” do comercio e das atividades não-essenciais, porém, sem a adesão e a obediência de três meses atrás. Em 22 de março o índice de isolamento social no país atingia sua maior marca: 62,2%; em 20 de julho esta marca caiu para 39,1%[16]. Apesar de todos os esforços no sentido do esclarecimento sobre a pandemia e da pedagogia acerca das medidas de prevenção e tratamento, a contra-pedagogia negacionista parece ter conquistado o senso comum. As medidas de abertura e fechamento são definidas pelos gestores públicos de acordo com a disponibilidade de leitos de UTI, num just in time macabro onde a prioridade é a retomada da economia, não a defesa da vida, nem a proteção da população. A se manter esta situação a pandemia deve continuar sua trajetória de expansão no país pelo resto do ano de 2020, com as taxas de contaminação e mortes mantendo-se bastante elevadas em comparação com a média mundial.

2 – Bolsonaro e o bolsonarismo contra a parede.

Se a demissão do ministro da saúde Henrique Mandetta não teve maiores desdobramentos do que a confirmação de que Bolsonaro se opunha abertamente à mobilização do ministério da Saúde no combate à pandemia, a demissão de Moro, ocorrida dias depois, deu início à um processo de alteração na correlação política de forças que ainda está em curso. Frente à clara intenção de Bolsonaro de avançar sobre a Polícia Federal, um dos pilares do lavajatismo no Ministério da Justiça, substituindo o superintendente, Moro reagiu saindo do governo e denunciando a manobra presidencial como uma tentativa de aparelhamento da PF. O efeito imediato foi um racha entre bolsonarismo e lavajatismo, na base de apoio popular ao governo, desiludindo principalmente setores de classe média afeitos ao discurso moralista do “combate à corrupção”. Nas redes sociais os agora chamados “moristas” passaram à ofensiva acusando Bolsonaro de tentar barrar investigações e esconder os crimes da família, mas nas ruas o bolsonarismo tentou compensar a perda de espaço aumentando as manifestações em favor do governo e radicalizando o discurso em defesa do golpe fascista, apesar da visível redução do número de participantes a cada novo ato. Ampliou-se o número de bolsonaristas “arrependidos” ou “críticos”, desiludidos com o comportamento presidencial na pandemia e na proteção do clã diante da justiça. No entanto, apesar da desilusão com Bolsonaro, é preciso considerar que o universo político e ideológico destes segmentos continua nucleado pelas concepções de extrema-direita e pelo antipetismo, o que pode trazê-los de volta às hostes bolsonaristas no futuro[17]. Enquanto isto, os bolsonaristas “raiz” giram em torno de 15% da população[18]

O segundo efeito foi o desencadeamento de uma ofensiva do STF contra o governo por meio da abertura ou aceleração de diversos inquéritos contra o clã Bolsonaro e militantes bolsonaristas e contra membros e atitudes do governo. Abriu-se o inquérito das “fake news”, que corroborou as investigações da CPMI instalada no Congresso desde 2019 e revelou a existência de uma extensa rede de sites pseudo-jornalísticos e perfis em redes sociais administradas por militantes bolsonaristas, parlamentares e pelo chamado “gabinete do ódio” sediado no próprio Palácio do Planalto para divulgar mentiras, desinformar e atacar adversários. Por conta disto foram indiciadas diversas pessoas, inclusive parlamentares bolsonaristas, e promovidos procedimentos de busca e apreensão. Também foi aberto o inquérito dos “atos antidemocráticos” atingindo financiadores (empresários e parlamentares) e membros de organizações fascistas como o grupo “300 do Brasil”, com a prisão de vários deles; além do inquérito contra o Ministro da Educação por crime de racismo, e que o levou a fugir pros EUA, e do inquérito contra o ministro do meio ambiente por enriquecimento ilícito[19]. No entanto o inquérito de maior repercussão política foi aberto a partir da denúncia de Moro para apurar a tentativa de interferência de Bolsonaro na Polícia Federal (PF). Além do STF vetar a nomeação de um amigo do clã Bolsonaro para a superintendência da PF, este inquérito não só intimou para depor os principais ministros militares do governo (Braga Netto, Alberto Heleno e Luiz Eduardo Ramos) e o próprio Bolsonaro, como tornou pública a gravação da reunião ministerial de 22/04/2020 onde o presidente exigiu abertamente o repasse de informações sigilosas pelo comando da PF. A exibição do vídeo em 12 de maio teve o impacto de uma bomba, pois revelou o verdadeiro caráter do governo (autoritário, prevaricador, antipopular e oportunista, que se aproveita da crise para aprovar seu projeto político e econômico) para muitos que ainda o consideravam ético e bem-intencionado ou que o imaginavam apenas “confuso” e “despreparado”. Na reunião Bolsonaro aparece como o verdadeiro dirigente político do governo, ao qual até os militares se submetem passivamente, apesar da sua rudeza e “truculência sincera”; seu projeto é fascista, de fechamento do regime por meio de um golpe armado contra as instituições e adversários, com o apoio das forças repressivas estatais e para-estatais; Guedes é primário, preso a uma concepção anacrônica de política econômica, incapaz de enfrentar os desafios postos pela pandemia com políticas anticíclicas, mas é quem conduz a economia, impondo sua perspectiva neoliberal extremada por meio do embuste e operando exclusivamente para o grande capital; o desmatamento e o avanço do capital sobre a Amazônia não são fruto do mero desinteresse com a questão ambiental, mas de políticas de destruição dos órgãos fiscalizadores, de flexibilização das leis de proteção ambiental e de avanço do capital privado sobre os recursos públicos, políticas que o governo pretende aplicar a todo custo, mesmo que por fora da lei; o racismo e a recusa em reconhecer direitos de “minorias” são política de governo[20].

A queda das últimas máscaras fortaleceu a ofensiva do STF e de setores do Judiciário contra o governo Bolsonaro, com a abertura de queixa crime contra Eduardo Bolsonaro por pregar a ruptura institucional; a quebra do foro privilegiado de Carlos Bolsonaro, numa investigação que apura prática de rachadinha no gabinete dele na Câmara Municipal do RJ, e a aceleração do inquérito que apura a prática de rachadinha na ALERJ, envolvendo também Flávio Bolsonaro quando deputado estadual no RJ. Cozida em banho-maria desde 2019 por conta das pressões do governo, as investigações contra Flávio Bolsonaro avançaram depois da queda de Moro, que também o protegia, com a denúncia de que sabia do andamento das investigações desde antes do segundo turno de 2018 e a prisão do principal operador do esquema criminoso em seu gabinete: Fabrício Queiroz. A prisão de Fabrício Queiroz em junho, articulada pelos Ministérios Públicos do RJ e de SP, revelou o envolvimento direto do clã Bolsonaro em sua fuga e proteção por mais de um ano e reforçou as suspeitas de envolvimento do presidente com as milícias cariocas. Na esteira desta ofensiva, milicianos do “Escritório do Crime” foram presos no RJ, provavelmente envolvidos no assassinato de Marielle Franco.

Além disso, o STF e outras instâncias do poder Judiciário acharam por bem anular ou pressionar pela reversão de diversas medidas tomadas pelo governo. Além do veto à indicação de Ramagem na PF; foi mantida a suspensão da medida provisória que permitia o compartilhamento de dados das empresas de telefonia com IBGE; foi garantida a autonomia de estados e municípios na adoção de medidas de isolamento social independentemente do governo federal; foi suspensa a ordem de expulsão de diplomatas venezuelanos; Bolsonaro foi obrigado a apresentar para a imprensa o resultado de exames de covid-19 que tinha feito anteriormente; o Ministério da Saúde foi obrigado a restabelecer os procedimentos de divulgação dos dados da pandemia que adotava antes da tentativa de maquiagem dos números; foi restituído o sistema de cotas nas universidades públicas e alterado o calendário do ENEM. Todas estas ações vulnerabilizaram o bolsonarismo e o governo, pois atingiram o clã Bolsonaro, ministros, parlamentares, os esquemas milicianos e empresariais; além de fundamentar jurídica e políticamente o impeachment ou a impugnação da chapa Bolsonaro/Mourão.

O terceiro efeito da demissão de Moro foi cimentar ainda mais o apoio dos ministros militares a Bolsonaro. Apesar de derrotas sucessivas dentro do governo em torno de questões como o Plano Pró-Brasil e o controle e rastreamento de armas e munições pelo Exército[21], o fato é que diante da fragilização do governo e do bolsonarismo os ministros militares se posicionaram ao lado do presidente, reverberando seus argumentos e defendendo suas posições. No pronunciamento feito por Bolsonaro horas após a demissão de Moro os principais ministros militares de Bolsonaro, além de Guedes, se perfilaram ao lado dele, numa demonstração explícita de apoio ao presidente. Dias após, Braga Neto (Casa Civil) e o general Azevedo (Defesa) acompanharam Bolsonaro e empresários na visita surpresa ao STF para pressionar pelo fim da quarentena[22]. No inquérito sobre a tentativa de interferência de Bolsonaro na PF Braga Netto, Alberto Heleno (GSI) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) foram convocados a depor e confirmaram a versão presidencial[23], mesmo diante de todas as evidências em contrário; diante do pedido de apreensão dos celulares do presidente no âmbito do mesmo inquérito Alberto Heleno emitiu nota ameaçadora, apoiada pelo general Azevedo (Ministro da Defesa) e por militares da reserva, contra o que considerou quebra da harmonia entre os poderes e interferência indevida do STF[24]; Mourão (vice-presidente) foi na mesma direção em artigo publicado na grande imprensa em que acusou a “usurpação das prerrogativas presidenciais” por estar levando o país ao “caos” [25]; Azevedo, além de Heleno e Ramos, participou ao lado de Bolsonaro do famoso ato antidemocrático do dia 31 de maio, promovido por bolsonaristas em desagravo ao governo[26]; mesmo o comandante do Exército (general Pujol), que demonstrou uma postura dissidente ao negacionismo presidencial no início da pandemia e é tido como um dos generais da ativa que busca preservar a autonomia das FA diante do governo, também manifestou seu descontentamento com o protagonismo do STF em conversa com Gilmar Mendes[27]. Por fim, à afirmação deste último de que o Exército estava se associando a um genocídio devido à presença de um general da ativa (Pazuello) no comando do Ministério da Saúde e que os militares deveriam preservar seu papel institucional e não se deixar usar políticamente, o Ministro da Defesa (Azevedo) respondeu emitindo uma nota de repúdio e entrando com uma representação contra o magistrado na PGR, também assinada pelo Comandante do Exército (Pujol) [28], enquanto Mourão exigiu uma retratação[29].

Ao contrário do que pretendem alguns porta-vozes do centro-direita, todas estas iniciativas evidenciam que apesar do fracasso da perspectiva de tutela dos militares sobre Bolsonaro, o apoio destes ao seu governo tornou-se mais cerrado do que antes. Poder-se-ia conjecturar sobre os benefícios que o impeachment de Bolsonaro traria para o “partido militar” com a ascensão de Mourão à presidência e a eliminação de um fator permanente de instabilidade política. Porém, a situação é mais complexa, e a queda de Bolsonaro poderia trazer perdas consideráveis para os militares. Em primeiro lugar porque o projeto dos militares é majoritariamente afinado com o de Bolsonaro e do bolsonarismo (autoritário, neoliberal, entreguista e obscurantista), apesar de divergências específicas, como no tocante à submissão ao “trumpismo”, à postura imperial e instabilizadora de Bolsonaro e ao fortalecimento das milícias, empresas de segurança e polícias estaduais, como estruturas repressivas paralelas. Em segundo lugar porque, para além da realidade fática, tornou-se senso comum, alimentada pelo próprio Bolsonaro, a tese de que os militares são seus fiadores desde antes da campanha de 2018, o que significa que o fracasso do governo implica no fracasso das próprias pretensões políticas dos militares e de seu projeto. Em 2019 a presença dos militares em cargos civis no Executivo Federal aumentou 27% em comparação com o governo Temer, passando de 2765 para 3515. Porém, em 2020, conforme se intensificou o isolamento político do governo este percentual cresceu 122% em comparação com 2018, pulando para nada menos que 6157. Desses, quase a metade (43%) ocupam cargos comissionados, ampliando seus vencimentos com rendimentos extras significativos e dos quais não pretendem se desfazer[30], o que cria um fundamento material poderoso ao apoio militar. Em terceiro lugar, por que os militares não tem base popular própria, afinal, os votos são de Bolsonaro. Além disso, em caso de impeachment, um governo Mourão também sofreria a oposição e resistência do bolsonarismo. Em quarto lugar, porque a queda de Bolsonaro representa uma vitória importante do centro-direita, obrigando os militares à uma composição que implica no curto prazo concessões em relação ao seu projeto e à médio prazo, na possibilidade do seu retorno às funções predominantemente institucionais (guardiões e mantenedores da lei e da ordem), com o esvaziamento de sua condição de “partido político”. Além disso, o racha com o lavajatismo abriu ainda mais espaço para o avanço dos militares no governo, como já vimos, e como base de sustentação política, ao lado do “Centrão”.

3 – Da guerra de movimento à guerra de posição.

À ofensiva do STF e do Judiciário sobre o governo, que equivale à adoção de uma estratégia de guerra de movimento pelo “centro-direita”, com vistas à esvaziar o bolsonarismo e conter a perspectiva do golpe fascista dirigida por Bolsonaro, este reagiu apelando para uma guerra de posição que consiste em seis movimentos.

O primeiro é estreitar os laços com os militares, ampliando sua participação no governo com cargos e funções[31], acatando suas indicações para a composição dos cargos, como no caso do ex-ministro Decotelli, e adotando uma postura menos beligerante em relação ao STF e o Congresso. O estreitamento dos laços com os militares visa não só reforçar um dos pilares de sustentação do governo, cada vez mais importante diante do recuo das hostes bolsonaristas, mas também para funcionar como um fator dissuasório em relação à perspectiva de impeachment ou de impugnação da chapa Bolsonaro/Mourão, tidos como “julgamentos políticos” para tirá-lo do poder[32]. O segundo movimento é consolidar a composição com os partidos do “Centrão” (PTB, PL, Republicanos, Solidariedade, PP, PSD e parlamentares de outros partidos de direita), loteando cargos no governo e nas lideranças governistas no Congresso em lugar de bolsonaristas, com vistas não só à barrar qualquer processo de impeachment, como eleger o futuro presidente da Câmara, cargo crucial no encaminhamento das propostas do governo. A próxima eleição ocorrerá no inicio de 2021. Além do ministério das Comunicações e das lideranças do governo no Congresso, entregues à parlamentares do “Centrão” em lugar de bolsonaristas, cogita-se a troca do ministro do Meio Ambiente. Em contrapartida o Ministério da Educação foi dado à um pastor evangélico, cuja nomeação agradou do “Centrão” aos militares e a ala propriamente bolsonarista do governo[33]. Estima-se que a base governista no Congresso já abrange aproximadamente 220 deputados federais[34]. O terceiro movimento é avançar no processo de bolsonarização do poder Judiciário, mobilizando bolsonaristas e novos adeptos para “blindar” o governo e o clã Bolsonaro e atuar contra seus adversários[35]. Além do comando da PF, sob Augusto Aras a Procuradoria Geral da República (PGR) funciona mais como advocacia geral do que como procuradoria, com a permanente tentativa de blindagem do governo nos diversos inquéritos em que Bolsonaro e os filhos estão envolvidos, além da perseguição a seus adversários. No momento, além de Moro, investigado no inquérito sobre a tentativa de interferência de Bolsonaro na PF, o alvo principal é a Operação Lavajato, que a PGR busca desbaratar porque funciona como um poder paralelo que ameaça o governo e seus aliados, e mantém mobilizada a base “morista” desiludida com o governo e crente na mitologia do “combate à corrupção”. Para tal propósito vale extinguir o modelo de investigação baseado em forças-tarefa, considerado demasiado independente diante da procuradoria geral, e cooptar juízes lavajatistas, como no RJ[36]. Diante da ofensiva da PGR a Lava-Jato resolveu “salvar as aparências” ao denunciar por corrupção e lavagem de dinheiro um seu antigo protegido: o tucano José Serra[37]. No mesmo processo da Lavajato a PF indiciou Geraldo Alckmin, outro beneficiado pela “blindagem” do centro-direita pelo Judiciário. No momento em que escrevemos Fabrício Queiroz e sua esposa ganharam o benefício da prisão domiciliar por ato de um juiz próximo de Bolsonaro e candidato à indicação para a vaga no STF que será aberta no final deste ano[38].

O quarto movimento consiste em eliminar do páreo eleitoral lideranças de direita e extrema-direita que emergem como prováveis candidatos às eleições de 2022. Enquanto a Polícia Federal investiga o governo Dória por corrupção na compra de equipamentos hospitalares no combate à pandemia[39], Wilson Witzel sofre um processo de impeachment que provavelmente irá apeá-lo do poder em favor de um aliado de Bolsonaro, a partir de uma investigação relâmpago da PGR[40]. O quinto movimento é se comprometer ainda mais com a aplicação da pauta neoliberal extremada na tentativa de demonstrar confiabilidade ao capital. Além da proposta de substituição do salário mensal pelo pagamento por hora trabalhada, que elimina 13º salário, férias e FGTS; o Ministério da Fazenda anuncia uma “reforma tributária” que aprofunda o caráter regressivo do sistema tributário brasileiro, pois restaura a CPMF, aumenta o imposto de renda das pessoas físicas e reduz o das pessoas jurídicas (empresas), e aumenta a carga tributária sobre o consumo, mas isenta o setor financeiro, com a unificação entre PIS e COFINS; também insiste na proposta de capitalização do que sobrou da previdência pública[41] e promete uma nova rodada de privatizações que atingirá Correios, Caixa Econômica Federal, Eletrobrás e outras empresas[42].

Por fim, Bolsonaro busca recuperar sua popularidade apelando para uma faceta da pauta neoliberal: as políticas sociais compensatórias. Apesar do crescimento da popularidade entre os mais pobres por conta do auxilio emergencial, que em certa medida compensou a perda de apoio entre os setores de classe média[43], desde o início do ano a popularidade de Bolsonaro apresenta uma tendência de queda desde o início do mandato, que se acentuou e tornou-se consistente desde abril[44]. No entanto, ciente dos efeitos positivos do auxilio emergencial em sua popularidade, Bolsonaro não apenas aceitou prorrogar o benefício por mais dois meses, contrariando orientação de Guedes, como o governo anuncia a unificação de diversas políticas sociais compensatórias como o Bolsa Família e o benefício de prestação continuada num único programa de renda básica, Renda Brasil, que promete ampliar em aproximadamente 40% o número de beneficiados e pagar um benefício em média 50% superior[45].

Podemos ainda considerar que o governo também conta com os efeitos positivos que a retomada da economia após o fim do isolamento social e de qualquer simulacro de quarentena poderá ter para a popularidade presidencial, o que também explica a pressão pela abertura total e a insistência na estratégia da “imunidade de rebanho”. É fato que a crise econômica e social tem causas muito mais profundas e estruturais do que o impacto da pandemia sobre as atividades econômicas e que a depressão/recessão econômica deve durar anos. Mas justamente devido à sua gravidade e abrangência, mesmo uma retomada tímida das atividades econômicas poderá trazer algum alívio em termos de desemprego e de aumento na renda para milhões de trabalhadores com efeitos ideológicos importantes, favorecendo uma postura mais condescendente ou mesmo positivo diante do governo. O próprio stress psicológico causado pela pandemia pode suscitar um estado de espírito pós-pandêmico de contentamento e satisfação que favoreça esta perspectiva. O impacto do auxílio emergencial no aumento da popularidade de Bolsonaro entre os mais pobres indica que esta não é uma perspectiva irreal e que o personalismo em torno de qualquer chefe de governo no Estado burguês, oriundo do próprio burocratismo, continua funcionando. Daí que para o governo é fundamental sobreviver à pandemia.

4 – Guerra de movimento e tentativa de “paz armada”.

Por sua vez, a tardia guerra de movimento do centro-direita não visa a derrubada do governo, mas a criação de condições para o estabelecimento de uma espécie de “paz armada” em que o embate se limite ao campo da institucionalidade política, em especial ao sistema de representação política. Ou seja, não se trata de avançar em direção ao impeachment ou à impugnação da chapa Bolsonaro/Mourão, mas de forçar o governo à aceitar um modus vivendi que restabeleça alguma estabilidade política, permita a manutenção da democracia restrita criada a partir do golpe de 2016, a retomada da economia e o aprofundamento das reformas neoliberais, além de impedir um levante popular potencializado pelo agravamento das “crises gêmeas” (depressão econômica e pandemia). Esta é a estratégia que unifica as diversas forças e atores do centro-direita, apesar de sua heterogeneidade e autonomia de ação.

Por manutenção da democracia restrita entenda-se a não-reversão das mudanças institucionais que flexibilizam/eliminam direitos sociais, criminalizam ainda mais as lutas e movimentos sociais, solapam a base material dos sindicatos, reduzem o espaço político e eleitoral dos partidos de esquerda, particularmente da esquerda socialista, e desaparelham o Estado de instrumentos e recursos capazes de promover políticas de distribuição de renda e oferecer serviços sociais gratuitos e de qualidade. Porém, numa situação de crescente agravamento das condições de vida e trabalho da maioria da população também é preciso manter mecanismos políticos e institucionais que canalizem o descontentamento popular para a arena da disputa política de maneira subordinada, porém relativamente eficaz na mediação do conflito social. Ou seja, é preciso manter a representatividade política e corporativa dos trabalhadores, mesmo que desidratada, como mecanismo que não só canalize o descontentamento social para instâncias de disputa altamente controladas, como o processo eleitoral, a sociedade política e a estrutura sindical estatal; mas também mobilize as energias políticas e sociais dos trabalhadores para o institucionalismo e a acomodação, não para a auto-organização e a contestação. O conteúdo transformista desta perspectiva é evidente, com potencial para restabelecer a hegemonia burguesa em bases correspondentes às novas condições históricas criadas pelo fim da Nova República e pela nova correlação entre capital e trabalho.

Neste sentido, em linhas gerais é possível perceber que os diversos agentes do centro-direita promovem uma ofensiva política que se dá como um movimento de pinça em duas frentes: a) por meio do STF, Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e setores do MP para colocar Bolsonaro contra a parede, colocar também uma “Espada de Dâmocles” sobre a cabeça dele, dos filhos e apoiadores calibrando o andamento dos diversos inquéritos e esvaziar perspectiva do autogolpe bolsonarista ou mesmo do golpe militar; b) a constituição de uma Frente Ampla que reúna golpistas e golpeados de 2016 em torno da “defesa da democracia”, com grande inserção na sociedade política e na sociedade civil e capacidade de conquista da adesão popular. Diversas iniciativas foram tomadas para a constituição dessa frente ampla nos últimos meses, como a realização de lives reunindo figuras do centro político (à direita e à esquerda) em torno da defesa da unidade entre os opositores de Bolsonaro, o chamamento ao fim do antipetismo e a criação de movimentos “civis” como “Estamos #juntos”, “Basta!”, “Somos 70%” e “Direitos Já” [46]. Este último movimento promoveu uma live no final de junho que contou com a presença de artistas, intelectuais, personalidades, jornalistas e lideranças de esquerda até notórios golpistas como Reynaldo Azevedo, Raul Jungmann, Roberto Freire, Cristovam Buarque, Tasso Jereissati, Geraldo Alckmin, FHC[47]. Após apoiar o golpe de 2016, o ataque aos direitos sociais e democráticos promovido pelo governo Temer e a prisão ilegal de Lula o cadáver político do tucano-mor foi ressuscitado para o debate público e se tornou uma espécie de “oráculo” da perspectiva de Frente Ampla dirigida pelo centro-direita, se colocando contra o impeachment ao mesmo tempo em que acusa Bolsonaro de “cavar o próprio fosso” [48]. Até ACM Neto, presidente do Democratas (ex-PFL, ex-ARENA, partido da Ditadura Militar) e herdeiro de uma das oligarquias mais poderosas do país, se dispõe a fazer uma aliança com a esquerda (PT, PDT, PSOL, PC do B) para “defender a democracia” [49].

O mais recente e importante movimento no sentido da constituição da Frente Ampla nos moldes que definimos acima veio da família Marinho, proprietária das Organizações Globo, uma das principais forças do centro-direita e espécie de sua porta-voz oficiosa. Em artigo publicado no jornal O Globo um dos jornalistas de sua confiança defendeu nada menos que o “perdão” do PT pelos crimes de corrupção e pelo viés autoritário e a necessidade de reintegrar o partido e os petistas ao debate político e ao esforço para criar uma alternativa ao bolsonarismo. Afinal, 30% da sociedade brasileira é de esquerda, vota na esquerda, acredita nos valores da esquerda e não pode ser descartada sem mais; além disso, “a gritaria contra a roubalheira já cansou”, diz ele. Apelando para uma espécie invertida do “não-revanchismo” tancrediano em que o perdão é oferecido às vítimas, concede que os culpados já foram punidos e aposta que o partido não irá repetir os erros do passado, o que sugere o descarte dos dirigentes punidos pela Lavajato e pelo impeachment (Lula e Dilma incluídos) e um chamamento ao diálogo com as novas lideranças partidárias[50]. Sem qualquer autocrítica por seu cotidiano antipetismo, pelo apoio ao golpe de 2016 e às decisões políticas da Lavajato e por sua responsabilidade na ascensão de Bolsonaro, o recado das Organizações Globo indica que o antipetismo deixou de ser útil para setores do bloco no poder e que é preciso preservar os instrumentos de mediação dos conflitos sociais. No entanto, nada de “Fora Bolsonaro”, menos ainda “Fora Bolsonaro e Mourão”. Também nem uma palavra sobre a restituição dos direitos políticos de Lula.

As razões pelas quais o centro-direita não avança na perspectiva do impeachment ou da impugnação da chapa Bolsonaro/Mourão explicam-se pelo compromisso do bloco no poder com o golpe de 2016 e a democracia restrita criada a partir de então, dos quais a eleição de Bolsonaro é o resultado necessário, e com a pauta neoliberal extremada, que seu governo aplica sem rebuços[51]. Portanto, melhor conviver com um governo proto-fascista e tentar mantê-lo sob controle, do que abrir mais uma crise institucional para tirá-lo do poder correndo o risco de uma mobilização popular massiva, que recoloque a esquerda em cena e questione não apenas o governo, mas todo o projeto burguês desde o golpe. Não se trata de confiar em Bolsonaro, mas de criar uma camisa de força frouxa o suficiente para que ele não se sinta aprisionado, mas capaz de limitar seus movimentos.

5 – A tentação do transformismo e a necessária construção de uma alternativa socialista.

A hegemonia do centro-direita na Frente Ampla aparece de maneira mais evidente na incapacidade do centro-esquerda em pautar o “Fora Bolsonaro” como centro da luta oposicionista e em constituir-se como uma alternativa política, revelando seu institucionalismo e inação estratégica. Diversas lideranças (Ciro Gomes, Carlos Lupi, Fernando Haddad, Camilo Santana, Tarso Genro, Flávio Dino, Marcelo Freixo, Guilherme Boulos, etc.), partidos (PDT, PC do B, PSB), centrais sindicais e movimentos sociais do centro-esquerda e mesmo da esquerda socialista tem participado ativamente das iniciativas que buscam constituir a Frente Ampla contra Bolsonaro. No Dia do Trabalhador, no último 1º de Maio, as maiores centrais sindicais (CUT, Força Sindical, UGT, CTB) promoveram um grande ato nacional por meio de uma live de cinco horas para a qual foram convidadas figuras como Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, os principais responsáveis pelo encaminhamento dos ataques contra os direitos dos trabalhadores no Congresso; Dias Tofolli, defensor da tese de que em 1964 não teve um golpe, mas um “movimento autoritário”, além do redivivo FHC[52].

Partidos do centro-esquerda como PDT, PSB e PC do B apoiam abertamente a Frente Ampla com os setores golpistas e se dispõem a compor com o centro-direita até mesmo em termos eleitorais. Apesar da resistência de Lula, Dilma e de Gleisi Hoffman (presidente do PT) em participar de iniciativas da Frente Ampla e assinar diversos manifestos que circulam em defesa da democracia, várias lideranças petistas, como Haddad, Genro, Suplicy, Wagner e Santana participam ativamente. A resistência de setores do PT se deve não só à solidariedade moral à Lula, mas à uma perspectiva hegemonista que impede o partido de participar de iniciativas em que não detenha a hegemonia. No entanto, por conta do peso do institucionalismo e do eleitoralismo no próprio modo de ser do PT, a anulação das condenações de Lula por meio de uma sentença do STF reconhecendo a suspeição de Moro nos processos da Lavajato pode ser o caminho para superar a resistência do líder petista e de seus aliados mais próximos na direção do partido. A contrapartida seria sua renúncia à qualquer pretensão eleitoral em 2022, hipótese que ele mesmo já admitiu[53].

No PSOL a situação é semelhante, pois apesar do partido não tirar uma posição unitária, lideranças como Freixo e Boulos tem participado das iniciativas da Frente Ampla. A perspectiva predominante no PSOL é pela constituição de uma Frente de Esquerda, não de uma Frente Ampla com setores golpistas, porém, a adesão petista à uma Frente Ampla com o centro-direita dificulta ainda mais a perspectiva de Frente de Esquerda, inclusive do ponto de vista eleitoral, com poder para isolar ainda mais o restante da esquerda socialista (PCB, PSTU, UP, etc.).

Apesar da anomia da esquerda no plano institucional, os trabalhadores tem reagido firmemente ao desamparo a que foram relegados pelo Estado e pelo capital diante da pandemia e à piora acentuada de suas condições de vida e trabalho. Diversas iniciativas de solidariedade e auto-organização tem se desenvolvido motivadas pela defesa da vida e pela urgência da situação, principalmente nos bairros periféricos das grandes cidades. Em diversos lugares do país criam-se comitês populares formados por moradores e lutadores sociais para a coleta e distribuição de alimentos, produtos de higiene e limpeza e equipamentos de proteção individual; assistência aos mais vulneráveis ou pertencentes aos grupos de risco em torno de atividades básicas como ir ao supermercado ou à farmácia; o trabalho de conscientização sobre os hábitos e procedimentos necessários diante do risco de contaminação e a pressão sobre órgãos públicos e empresas para o atendimento de serviços básicos como água, luz e coleta de lixo. Tais iniciativas contam com o apoio de associações de moradores, coletivos de diversos, movimentos sociais, sindicatos e igrejas. Uma articulação nacional denominada “Coalizão dos Comunicadores das Periferias contra o Coronavírus” foi criada reunindo coletivos de diversos estados[54]. O Mapa “Corona nas Periferias” revela a existência de dezenas de iniciativas em quase todo o país[55]. Movimentos sociais como MST, MTST e União Nacional dos Movimentos por Moradia promovem campanhas de arrecadação de recursos e doação de alimentos, artigos de limpeza, etc.[56]

Depois de meses em que as ruas foram ocupadas exclusivamente pelos bolsonaristas, com a ausência da esquerda por conta da necessidade de isolamento social imposta pela pandemia, os trabalhadores voltaram a promover atos pelo #Fora Bolsonaro, contra a ameaça fascista e o racismo. Reverberando protestos ocorridos nos EUA e em diversos países contra o racismo e outras pautas específicas, a partir do final de maio foram realizados atos de protesto em diversas cidades do país, convocados por torcidas antifascistas e engrossados por movimentos sociais e organizações de esquerda. O protagonismo das torcidas antifascistas revelou não apenas a prevalência do institucionalismo no comportamento político dos setores majoritários da esquerda (alguns dos quais condenaram abertamente a iniciativa por conta do risco de contaminação), mas a mobilização dos setores sociais mais precarizados do mundo do trabalho e por isto mesmo mais afetados pelas “crises gêmeas”. Coincidindo com manifestações bolsonaristas em diversos lugares, os protestos populares foram numericamente superiores e receberam tratamento “seletivo” da policia, que reprimia os manifestantes, enquanto protegia os bolsonaristas[57]. Na onda de mobilização dos trabalhadores precarizados foi realizada uma greve nacional dos trabalhadores de aplicativos, com apoio solidário de parte da população, que exigiu não só melhores condições de proteção no trabalho diante da pandemia, mas aumento salarial e reconhecimento de direitos trabalhistas[58].

Estas experiências de luta, organização e mobilização evidenciam que os trabalhadores se movimentam para reagir à ofensiva burguesa e anunciam a retomada das lutas sociais neste período e repõe a necessidade de construção de uma frente de esquerda, que organize e mobilize os trabalhadores em torno de uma perspectiva classista e socialista. Para tanto, é preciso ir além das pautas de urgência criadas pelas “crises gêmeas”, incorporando no imediato uma perspectiva antineoliberal e antiautocrática que se oponha tanto à ameaça fascista, quanto à normalização da democracia restrita fundada no “acordão” patrocinado pelo centro-direita. Isto porque nada garante que Bolsonaro vá se acomodar à “paz armada” que o centro-direita tenta lhe impor depois que ele consolidar posições mais favoráveis, principalmente porque do ponto de vista institucional nada foi feito efetivamente para desarmar seus instrumentos de poder. Afinal, as milícias continuam expandindo seus negócios e se armando, as polícias militares dão mostras explícitas de seu bolsonarismo e de sua autonomia diante dos governadores e nada acontece e os militares, da reserva e da ativa, continuam se metendo em política e ameaçando as instituições e ninguém vai preso! Ou seja, não há garantias de que Bolsonaro se contente com a atual guerra de posição e não re-habilite sua guerra de movimento assim que possível, escalando a crise numa perspectiva fascista. Por outro lado, a vitória do centro-direita implica na “normalização” da subordinação política dos trabalhadores sob a nova forma da dominação burguesa, com democracia restrita, expropriação de direitos, superexploração do trabalho e consenso passivo.


[2]https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/04/22/coronavirus-brasil-mortes-casos-confirmados-22-abril.htm?cmpid=copiaecola;

[3]https://news.google.com/covid19/map?hl=pt-BR&gl=BR&ceid=BR:pt-419

[4]https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/07/01/percentual-de-pessoas-expostas-ao-coronavirus-nos-bairros-mais-pobres-da-cidade-de-sp-e-25-vezes-maior-do-que-nos-mais-ricos.ghtml.

[5]https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/06/02/covid-mata-54-dos-negros-e-37-dos-brancos-internados-no-pais-diz-estudo.htm

[6]https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/06/22/monitor-do-pib-aponta-queda-135-em-abril-ante-abril-de-2019-diz-fgv.htm; https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/06/comercio-despenca-168-com-distanciamento-social-no-brasil-diz-ibge.shtml.

[7]https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-07/pandemia-fecha-394-das-empresas-paralisadas-diz-ibge

[8]https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/04/14/fmi-projeta-retracao-de-53percent-para-economia-brasileira-em-2020.ghtml

[9]https://valor.globo.com/financas/noticia/2020/06/24/fmi-reduz-previso-de-crescimento-do-brasil-de-53-pontos-percentuais-para-91-em-2020.ghtm.

[10]https://www.brasildefato.com.br/2020/07/10/desmatamento-na-amazonia-cresce-e-piora-imagem-do-brasil-no-mercado-internacional

[11]https://veja.abril.com.br/economia/bolsonaro-autoriza-suspensao-de-contratos-por-mais-60-dias/

[12]https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/06/24/senado-aprova-novo-marco-legal-do-saneamento-basico

[13]https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/07/03/cerca-de-11-milhao-de-pessoas-voltaram-ao-trabalho-no-pais-na-segunda-semana-de-junho-diz-ibge.ghtml

[14]https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/07/03/pandemia-derruba-renda-de-trabalhador-por-conta-propria-para-60-em-maio-diz-ipea.ghtml.

[15]https://veja.abril.com.br/brasil/os-desafios-dos-estados-que-comecam-a-flexibilizar-a-quarentena-no-brasil/.

[16]https://mapabrasileirodacovid.inloco.com.br/pt/

[17] -ROCHA, Camila e SOLANO, Esther. “Bolsonarismo em crise?” Friedrich Ebert Stiftung. Junho de 2020. https://www.fes-brasil.org/detalhe/bolsonarismo-em-crise/

[18]https://jornalggn.com.br/crise/quem-e-a-populacao-de-jair-bolsonaro-segundo-o-datafolha/

[19]https://noticias.uol.com.br/videos/?id=ricardo-salles-e-investigado-por-enriquecimento-ilicito-04028C193462C0C16326

[20]https://www.youtube.com/watch?v=6cg5AAcijv4

[21]https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/05/28/defesa-sera-obrigada-a-explicar-flexibilizacao-na-compra-de-municao-e-arma.htm.

[22]https://catracalivre.com.br/cidadania/bolsonaro-e-empresarios-vao-ao-stf-pressionar-pelo-fim-da-quarentena/

[23]https://oglobo.globo.com/brasil/confira-as-versoes-dos-ministros-militares-de-bolsonaro-em-depoimento-pf-sobre-reuniao-ministerial-24424218

[24]https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/política/2020/05/23/interna_política,857743/ministro-da-defesa-endossou-nota-de-heleno-sobre-celular-de-bolsonaro.shtml

[25]https://www.em.com.br/app/noticia/política/2020/05/15/interna_política,1147546/mourao-alarma-política-com-artigo-que-ressuscita-fantasma-da-intervenc.shtml

[26]https://política.estadao.com.br/noticias/geral,ao-lado-de-bolsonaro-ministro-da-defesa-sobrevoa-manifestacao-antidemocratica-em-brasilia,70003320474

[27]https://veja.abril.com.br/política/gilmar-mendes-ouviu-do-comandante-do-exercito-o-que-nao-queria/

[28]https://www.brasil247.com/poder/ministerio-da-defesa-e-exercito-enviam-representacao-a-pgr-contra-gilmar-mendes

[29]https://www.cnnbrasil.com.br/política/2020/07/14/mourao-cobra-retratacao-de-gilmar-mendes-de-declaracao-sobre-militares

[30]https://g1.globo.com/política/noticia/2020/07/17/governo-bolsonaro-tem-6157-militares-em-cargos-civis-diz-tcu.ghtml

[31]https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/bolsonaro-antecipa-mudancas-apos-saida-de-moro-e-infla-presenca-militar-em-postos-chave.shtml

[32]https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/06/forcas-armadas-nao-cumprem-ordens-absurdas-nem-aceitam-julgamentos-politicos-diz-bolsonaro.shtml

[33]https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/07/11/interna_politica,871289/escolha-de-pastor-para-o-mec-agrada-centrao-e-apazigua-relacao-com-stf.shtml

[34]https://noticias.uol.com.br/política/ultimas-noticias/2020/05/07/se-aderir-de-vez-a-bolsonaro-centrao-tem-forca-para-segurar-impeachment.htm

[35] – BARROCAL, André. “Procurador de estimação”.Carta Capital, 08/07/2020, p.10-14.

[36]https://piaui.folha.uol.com.br/chumbo-grosso-no-ministerio-publico/

[37]https://política.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/lava-jato-denuncia-serra-e-filha-por-lavagem-de-dinheiro-transnacional-pf-faz-buscas/

[38]https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53358224

[39]https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/27/doria-diz-que-ve-com-naturalidade-investigacao-da-pgr-sobre-gestao.htm

[40]https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/06/23/witzel-e-citado-em-processo-de-impeachment-na-alerj-prazo-para-apresentar-defesa-e-de-10-sessoes.ghtml

[41]https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/07/15/trabalho-hora-capitalizacao-imposto-digital-paulo-guedes-plano.htm

[42]https://www.brasildefato.com.br/2020/07/10/em-meio-a-pandemia-paulo-guedes-ameaca-avancar-nas-privatizacoes-no-brasil

[43]https://epoca.globo.com/brasil/os-novos-bolsonaristas-forjados-pelos-600-reais-24524420

[44]https://piaui.folha.uol.com.br/bolsonaro-e-ilusao-dos-30/

[45]https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2020/07/15/internas_economia,872519/renda-brasil-deve-pagar-de-r-250-a-r-300-diz-paulo-guedes.shtml

[46]https://exame.com/brasil/juntos-basta-somos70-entenda-a-ascensao-dos-manifestos-pro-democracia/

[47]https://www.youtube.com/watch?v=NnpG67Hlh8k

[48]https://noticias.uol.com.br/política/ultimas-noticias/2020/06/08/nao-defendo-impeachment-mas-bolsonaro-esta-cavando-seu-fosso-diz-fhc.htm

[49]https://noticias.uol.com.br/política/ultimas-noticias/2020/06/24/presidente-do-dem-diz-aceitar-uniao-com-pt-e-psol-para-garantir-democracia.htm

[50]https://oglobo.globo.com/opiniao/e-hora-de-perdoar-pt-24527685

[51]https://contrapoder.net/colunas/bolsonaro-aposta-no-caos-apresenta-suas-armas-e-continua-na-cadeira-sem-mascara/

[52]https://www.youtube.com/watch?v=PPW19thI71M

[53]https://noticias.uol.com.br/política/ultimas-noticias/2020/04/30/lula-descarta-candidatura-em-2022-e-diz-querer-ser-cabo-eleitoral.htm

[54] – CALCAGNO, Victor. “O vírus chega, o Estado não”. Carta Capital, 29/04/2020, p. 28-29; https://www.brasildefato.com.br/2020/03/23/solidariedade-une-moradores-das-periferias-de-sp-contra-proliferacao-do-coronavirus

[55]https://www.institutomariellefranco.org/mapacoronanasperiferias

[56]https://www.brasildefato.com.br/2020/04/26/movimentos-de-moradia-organizam-acoes-de-solidariedade-em-comunidades-em-todo-o-pais

[57]https://www.brasildefato.com.br/2020/06/14/apos-sabado-de-atos-por-forabolsonaro-antifascistas-voltam-as-ruas-neste-domingo

[58]https://br.noticias.yahoo.com/breque-dos-apps-confira-como-foi-a-greve-dos-entregadores-de-aplicativo-pelo-pais-234330546.html

David Maciel

Doutor em história, prof de história, membro da coordenação da escola de formação socialista, membro da editoria de marxismo21, e da coordenação nacional do GT história e marxismo da ANPUH.

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