Brasil: uma megafeitoria moderna

Uma estagnação estrutural de longa duração, provocada pela crise terminal da industrialização por substituição de importações, solapou a ideia de crescimento como panaceia para os problemas nacionais. O ciclo de liberalização da economia brasileira, iniciado com Collor de Mello em 1990, consolidado por Fernando Henrique Cardoso com o Plano Real em 1994, legitimado por Lula no efêmero ciclo “neodesenvolvimentista” e levado ao paroxismo por Temer e Bolsonaro, redundou no pior desempenho do nível de atividade econômica da história brasileira.

As enfáticas promessas de bonança das reformas liberais não se cumpriram. Entre 1990 e 2020, o crescimento médio da economia brasileira foi de apenas 2,1% ao ano – marca equivalente ao da década perdida dos anos oitenta e muito abaixo da expansão de 6,7% ao ano entre 1933 e 1980. Como consequência, na era neoliberal a renda per capita cresceu menos de 1% ao ano – quase cinco vezes menos do que no ciclo da industrialização. A propaganda de que o fim da inflação criaria condições para o início de um processo de distribuição de renda revelou-se uma balela. Postas em perspectiva, tanto a concentração funcional (entre lucro e salário) quanto a concentração pessoal da renda (entre a massa de salário), que já eram uma das piores do mundo, registraram tendência estrutural de deterioração.1

A relação orgânica entre acumulação de capital, aumento da desigualdade social e deterioração das condições de vida dos trabalhadores é uma característica do capitalismo contemporâneo.2 A tendência decrescente da taxa de lucro requer um aumento brutal na exploração do trabalho.3 A arbitragem salarial em escala global, propiciada pela elevada mobilidade espacial do capital e do trabalho, acirra a concorrência entre os trabalhadores, deixando-os particularmente vulneráveis à ofensiva do capital contra seus direitos.4 Nessas circunstâncias, desenvolvimento capitalista e desenvolvimento nacional tornam-se incompatíveis. O poder político fica completamente submetido aos interesses do capital financeiro e o Estado fica sem condições de fazer políticas públicas com conteúdo democrático e nacional.

No elo fraco da economia mundial, tal antagonismo é potencializado pela ampliação das assimetrias na divisão internacional do trabalho. Na periferia latino-americana, a crise estrutural do capital manifesta-se sob a forma de um processo de reversão neocolonial, cuja essência reside na progressiva incapacidade do Estado de estabelecer limites mínimos às taras do capital. À especialização regressiva das forças produtivas corresponde necessariamente o rebaixamento do nível tradicional de vida dos trabalhadores, a desarticulação das políticas públicas, o esvaziamento da soberania nacional e o aprofundamento da depredação do meio ambiente.

O Brasil revelou-se particularmente vulnerável aos efeitos destrutivos da globalização. A ausência de um projeto de nação, que identificasse os problemas fundamentais do conjunto da população e as ações para resolvê-los, deixou a sociedade completamente desarmada para enfrentar um contexto histórico extraordinariamente adverso.5

A falência da burguesia brasileira como demiurga do desenvolvimento nacional foi selada na ditadura militar. Ao sepultar as reformas de base, o desfecho da revolução burguesa como uma contrarrevolução permanente impediu a constituição de condições objetivas (um sistema econômico nacional) e subjetivas (nexos morais de solidariedade entre as classes sociais) necessárias para o controle dos fins e dos meios do desenvolvimento nacional. Ao naturalizar a segregação social e a dependência externa como elementos constitutivos do padrão de acumulação e dominação burguesa, a ditadura do grande capital transformou a acumulação de lucro num fim em si. Impotente para enfrentar o imperialismo, a burguesia dependente ficou condenada a adaptar-se às exigências do capital internacional e reproduzir os mecanismos de superexploração do trabalho e depredação do meio ambiente.

Enquanto a subordinação da política econômica aos imperativos do capital internacional coincidiu com o avanço da industrialização por substituição de importações, entre 1968 e 1980, o elevado dinamismo da economia alimentou o mito do crescimento como solução para os problemas nacionais. Ao equiparar desenvolvimento nacional – o controle sobre as mudanças econômicas e sociais – a crescimento – simples expansão da produção –, a ideologia do progresso ocultou o divórcio intransponível entre acumulação de capital, democracia e soberania nacional. A contrapartida do crescimento desenfreado do “milagre econômico” foi o acirramento das contradições que redundariam na reversão neocolonial: o rebaixamento sistemático das parcas conquistas democráticas e nacionais do povo brasileiro.

A vitalidade dos mecanismos de classificação social gerados pela expansão acelerada da renda e do emprego não impediram a intensificação das desigualdades sociais nem a reprodução da pobreza em grande escala. O desenvolvimento das forças produtivas implicou aumento substancial da dependência comercial, tecnológica e financeira. A cópia desesperada dos estilos de vida e padrões de consumo das economias centrais exacerbou o mimetismo cultural da sociedade brasileira. O progresso material veio acompanhado de um aprofundamento do abismo entre o mundo dos ricos e o dos pobres.

A crise da dívida externa nos anos oitenta explicitou a fragilidade do modelo econômico brasileiro e a absoluta cumplicidade do Estado autocrático burguês, cristalizado na ditadura militar, com os interesses do grande capital. A retórica verde-amarela dos generais e seus devaneios delirantes de que o país caminhava para o “primeiro mundo” culminou com o país de joelhos, sob a tutela do Fundo Monetário Internacional (FMI). O ajuste estrutural da economia brasileira às novas exigências do capital internacional e do imperialismo foi aceito docilmente pela burguesia local.

Preocupada exclusivamente em preservar o patrimônio ameaçado de liquidação pelos efeitos destrutivos das mudanças pelas quais passava o sistema capitalista mundial, a burguesia abdicou da industrialização sem pestanejar. Repassou os prejuízos da crise para os trabalhadores e ajustou-se rapidamente aos imperativos da ordem global emergente. Sob o manto de recorrentes crises de estrangulamento cambial e hiperinflação, a economia brasileira passaria por mudanças estruturais de grande envergadura.

O Estado foi amplamente mobilizado para consolidar o agronegócio e o extrativismo mineral como frentes de expansão do capitalismo brasileiro e para sustentar o rentismo ancorado em títulos públicos como forma de valorização do capital fictício – os dois principais vetores do padrão de acumulação liberal-periférico. O colapso das premissas internas e externas que sustentavam o capitalismo dependente – a elevada geração de emprego provocada pela industrialização e a necessidade do imperialismo de ter parceiros relativamente fortes na periferia – ganharia ímpeto nos anos noventa, com a inserção subalterna do país na ordem global. A capacidade da burguesia brasileira de negociar com o imperialismo os termos da capitulação seria drasticamente reduzida.

Nos marcos da ordem global, a liberalização das economias periféricas é um caminho sem volta. Na falta de uma resposta nacional às crises que abalam recorrentemente a economia mundial, as burguesias que vivem dos negócios que surgem nos interstícios dos investimentos do capital internacional ficam obrigadas a dobrar as apostas na mercantilização da vida e na inserção especializada na divisão internacional do trabalho. Nesse contexto, a ofensiva sobre o trabalho e a natureza é permanente. O raio de manobra da política econômica fica reduzido à definição do ritmo e da intensidade da retirada de direitos dos trabalhadores, da destruição das políticas públicas e da degradação do meio ambiente.

Para além das diferenças de interesses que condicionam os conflitos entre as inúmeras frações do capital, fenômeno inevitável numa economia marcada por grandes heterogeneidades estruturais, o projeto da burguesia brasileira para a crise terminal da industrialização por substituição de importações é a transformação da economia brasileira numa espécie de megafeitoria moderna. Com a chegada da república dos delinquentes, em 2016, tal projeto foi radicalizado. Os ataques às políticas públicas com conteúdo democrático, nacional e ambiental tornaram-se razão de Estado. No governo Bolsonaro, o descaso com a coisa pública, sobretudo com a situação da classe trabalhadora, manifesta-se em sua dose máxima.

Amplia-se o abismo que separa o Brasil das economias desenvolvidas. O subdesenvolvimento não aponta para o desenvolvimento, mas para a reversão neocolonial. A gestão genocida da crise sanitária não deixa margem a qualquer tipo de dúvida. A plutocracia divorciou-se irremediavelmente das classes subalternas. O projeto da burguesia é acumular riqueza, sem qualquer preocupação com os problemas nacionais. O primeiro desafio para deter a tragédia brasileira é romper a blindagem mental que naturaliza o capitalismo. Sem a perspectiva de mudanças estruturais, que vão além do capital, é impossível mobilizar a sociedade em torno de um projeto coletivo que enfrente os problemas seculares do povo brasileiro. 

Referências

  1. A propósito ver Pereira, D.C.N. Distribuição funcional da renda no Brasil (1955-2014). Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tese de doutorado. Natal. 2017 in: https://repositorio.ufrn.br/jspui/bitstream/123456789/24276/1/DistribuiçãoFuncionalRenda_Pereira_2017.pdf. Consultar também, Medeiros, M., Souza, P.H.G e Castro, F.A. O topo da distribuição de renda no Brasil: Primeiras estimativas com dados tributários e comparação com pesquisa de domiciliares (2006-2012). Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 48, no. 1. In: https://www.scielo.br/pdf/dados/v58n1/0011-5258-dados-58-1-0007.pdf
  2. Sobre o assunto, a abundante informação no livro de Piketty, T. Le Capital au XXIe siécle XXI. Paris, Edition du Seuil, 2013
  3. A tendência decrescente da taxa de lucro é objeto de estudo de Roberts, M. The long depression – How it happened, and what happens next. Chicago. Haymarket Books. No Brasil, a tendência de longo prazo da taxa de lucro é examinada em Marquetti, A. y Melody de Campos, S.P. Patrónes de progreso técnico en la economia brasileña, 1952-2008. Revista de la Cepal, No. 113, agosto 2014. Santiago. Cepal; e também Marquetti, A.; Hoff, C.; Miebach, A. (2017). Lucratividade e Distribuição: A Origem Econômica da Crise Política Brasileira. Texto para Debate. Departamento de Economia, PUCRS. Marquetti, A.
  4. A lógica da arbitragem salarial em escala global é estudada por Smith, J. Imperialism & the Globalistion of Production. PHD Thesis. University of Sheffield. July, 2010.
  5. A propósito ver Furtado, C. Brasil: A Construção Interrompida. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1992.

Plínio de Arruda Sampaio Junior

Professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp. Autor do livro Crônica de uma Crise Anunciada: crítica à economia política de Lula e Dilma.

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