
Discussões candentes reforçam a necessidade do estudo da escravidão colonial. No mundo, avançam relações de trabalho comumente assimiladas à escravidão. Em países com população com graus diversos de afro-ascendência, propõe-se a opressão racial — e não a sócio-econômica — como a origem-reprodução da desigualdade social. (ALMEIDA, 2019.) Um “racismo estrutural”, não apenas negro, e não a luta de classes, moveria a história. Defende-se a dívida dos brancos para com os que têm algumas ascendência negra, pois, afirma-se, todos eles se locupletariam, todos, com o racismo. (MARX, K. & ENGELS, 2001; CARNEIRO: 2000, 24-9. )
A comunidade envolvida, em forma ativa ou passiva, nesta discussão, comumente, conhece pouco da história do passado escravista e de suas reais e profundas sequelas contemporâneas. Vive imersa em reconstruções rústicas do passado, de sentidos político-ideológicos, impulsionadas e financiadas pelo grande capital, sobretudo anglo-estadunidense. (CHAVES, 2019.)
A desarticulação da USAID acaba de desvelar impudicamente, mas de forma selecionada, o financiamento mundial, apenas pelo imperialismo estadunidense, de milhares de comunicadores, cientistas sociais, ongs, revistas, centros de estudos, etc. que participam, consciente, semi-consciente ou inconscientemente da manipulação das consciências. (VIANA, 10.02.2025) Consolida-se a proposta de que as relações raciais são fortemente auto-explicativas, superando as necessárias investigação e reflexão científicas sobre elas.
Leitura marxista
Minha interpretação mais do que telegráfica da evolução da história da escravidão no mundo dito ocidental apoia-se no método marxista de interpretação. Ela se articula, portanto, na discussão crítica dos principais modos e relações de produção escravistas no espaço em questão, até a gênese e agonia do escravismo colonial, no Brasil, em 1888, o último país a conhecer essa forma social de organização. (CONRAD, 1975.)
A história conheceu múltiplas relações servis de submissão. A escravidão, forma mais acabada de servidão, possuía três determinações essenciais. Primeira: o cativo, tido como mercadoria, podia ser vendido, doado, destruído, etc. Segunda: a totalidade dos frutos do seu trabalho pertenceriam ao escravizador, ao menos em teoria. Terceira: a escravidão era hereditária, mantendo-se até a morte ou a alforria. Algumas dessas determinações conheceram restrições diversas, que não negaram o núcleo essencial dessa forma de dominação. (MAESTRI, 1988.)
Relações sociais escravistas foram possíveis a partir de um desenvolvimento mínimo das forças produtivas materiais: práticas comerciais, posse privada da terra, produção sistemática de excedente pelo produtor direto, etc. Nesse contexto, constituíram-se variados modos de produção escravista, substratos de múltiplas formações sociais. Não é o número de escravizados, mas a produção e reprodução dominante das condições materiais de existência que define o caráter escravista de uma formação social.
Escravidão Doméstica
A Grécia Micênica conheceu formas embrionárias de escravidão. Sob o domínio da exploração da comunidade aldeã, ela conheceu esboços de propriedade privada da terra, de comércio de longa distância, a incorporação de estrangeiros. A civilização homérica, com patriarcas despóticos, no mando de fazendolas de algumas uns vinte hectares — oikos—, apoiava-se na metalurgia do ferro, que democratizou o trabalho e a guerra.
O patriarca dirigia essa célula de produção e consumo, onde trabalhava, ao lado de sua família ampla, de algum agregado e de um ou dois cativos. Em geral, a produção, apoiada na agricultura, no pastoreio, na pesca, no artesanato, voltava-se sobre si. O trabalhador escravizado, elemento essencial, mas não exclusivo e necessário da força de trabalho, conhecia condições de vida penosas, mas longe das misérias dos futures cativos americanos.
A produção voltada para a auto-subsistência, impunha-se fortemente sobre a produção mercantil marginal. A produção das múltiplas fazendolas era simétrica e não complementar. Não havia sentido produzir além das necessidades de consumo do oikos. O cativo, de múltiplas etnias, inclusive a mesma dos patriarcas, era obtido através da reprodução natural, de razias, de pirataria e da guerra. O filho de um homem livre e uma escrava nascia livre.
Superação da Escravidão Patriarcal
Os tempos homéricos e a escravidão patriarcal foram superados pelo enriquecimento e pela maior complexidade do mundo grego — urbanização, organização estatal supra-comunitária; crescimento do comércio, da produção artesanal, das finanças, da divisão social e do trabalho — aristocratas, plebeu, metecas, estrangeiros, escravizados.
A propriedade de escravizados e, sobretudo, da terra, vedada aos não cidadãos, tornou-se a base da riqueza social. As principais cidades fundaram mais de duzentas colônias na bacia do Mediterrâneo. Nas periferias das cidades e em regiões em contato marítimo com elas surgiram pequenas explorações agrícolas especializadas.
Essas fazendolas apoiavam-se na produção escravista que definimos como pequeno-mercantil, de esfera mercantil dominante, abastecendo as cidades, e esfera natural, subordinada, suprindo o consumo dos trabalhadores e proprietários. (MAESTRI, 1986.) Elas produziam vinhos, frutas, óleo, mel, flores, pequenos animais de corte, etc. e conheceram avanços tecnológicos — relha de metal, incipiente afolhamento trienal, melhor adubação, etc.
Os limites do mercado e as exigências da produção limitavam-nas a um máximo de cinquenta hectares e de um a três cativos, em geral, especializados na produção de vinho e azeite. Os proprietários absenteístas mais ricos, para produzir produtos diversos, possuíam diversas pequenas propriedades, em diversas regiões.
A baixa fertilidade dos solos, as rústicas estradas carroçáveis, a capacidade limitada da tração animal, etc. limitavam o alcance da produção pequeno-mercantil agrícola a uns vinte quilômetros das cidades. Importantes regiões não conheceram centros urbanos dignos do nome. As pequenas propriedades de subsistência — oikos — dominavam a Grécia profunda, deprimindo o mercado da produção pequeno-mercantil escravista.
Escravidão Penosa
Eram numerosos os cativos urbanos, empregados no comércio, no artesanato, nas residências. Um escravista remediado possuía de três a cinco cativos; acima deste número, era um homem rico. De dois a cinco cativos domésticos labutavam nas moradias. Aristóteles, defensor ferrenho da escravidão, ao morrer, possuía treze mulheres e seis homens escravizados.
As condições de vida dos cativos não eram sumamente penosas, mas haviam se degradado em relação à escravidão patriarcal. Eles trabalhavam mais duramente e haviam regredido socialmente — o filho de um homem livre e uma cativa nascia escravo. Entretanto, segundo a lei, o amo não podia injuriar gravemente, aleijar ou matar seu cativo.
As condições servis de existência eram muito duras nos moinhos, pedreiras, marmorarias, minas e nas construções de estradas. A guerra, a pirataria, a razia, o rapto, a servidão por dívidas, a venda de si mesmo, a venda de crianças e, sobretudo, o comércio, supriam as necessidades de escravizados.
Os escravistas viam com bons olhos a reprodução natural dos escravizados, mas não a apoiavam, devido à alta mortalidade, ao custo de criação dos recém-nascidos e a oferta abundante de cativos. Não havia identificação entre escravidão e etnia. (MALOWIST, 1991; GARLAN, 1988; VERNANT, 1988; GLOTZ, 1973; EHRENBERG, 1973; WOOD, 1998; PETIT, 1986; TRIGARI,1977; ANDREAU & DESCAT, 2009; MAESTRI, 1994.)
Apogeu e crise do escravismo pequeno-mercantil
Roma foi, inicialmente, um humilde burgo e um centro comercial pobre. Nos séculos sexto e quinto antes de nossa era, os patrícios e suas famílias trabalhavam pequenos lotes, apoiados, eventualmente, por clientes ou assalariados. Apenas no século quarto a.n.e, o trabalho escravizado passou a desempenhar um papel produtivo, entretanto, subordinado.
No século terceiro a.n.e., cresceu a atividade comercial romana. Muito logo, os patrícios, entrincheirados no Senado, e, a seguir, os romanos e itálicos ricos, capazes de investir na produção escravista, privilegiaram-se com as conquistas territoriais — o ager romanus— e com a abundância de vencidos, vendidos como cativos, a baixo preço nos mercados.
A exploração escravista, habitual na bacia do Mediterrâneo, apresentou-se ao patriciado romano como solução às pressões plebeias. Ela permitiu a proibição da escravidão de romanos por dívidas, em 367 a.n.e. A economia pujante romana potenciou o escravismo pequeno-mercantil grego, tornando-a forma de produção dominante nos dois séculos antes e posteriores à nossa era.
Foram de quatro tipos as principais unidades agrícolas romanas. Primeiro: a pequena e média exploração de, em torno, quatro hectares, produzindo sobretudo trigo, voltada para a subsistência, vendendo sua pequena produção excedente. Apoiada no trabalho familiar e, eventualmente, em um ou dois cativos, ela dominou o agro romano até o século terceiro antes de nossa era, mantendo-se sobretudo nas regiões de difícil acesso, e sobreviveu à crise do Império. (KUZISCIN, 1984, P. 253.)
Segundo tipo: nas proximidades das cidades, de estradas movimentadas, de vias aquáticas, surgiram explorações agrícolas escravistas, de produção orientada para o mercado. Elas reproduziam, em maior e melhor, a agricultura pequeno-mercantil grega. Terceiro tipo: no sul da península, em terras distantes dos mercados, organizou-se produção escravista pastoril. E, finalmente: a Sicília conheceu produção escravista latifundiária de grãos, ensaio de superação da pequena produção mercantil escravista, que não se consolidou.
Villa Rustica
Os estudiosos romanos da agricultura propunha que a villa rustica se localizasse, necessariamente, próxima ao mar, a um rio, a um centro urbano, a uma estrada importante, para escoar sua produção, com destaque para os vinhos e azeites finos, frutos, flores, verduras, pequenos animais de corte, etc.
Na sede ampla da villa rustica se localizavam os aposentos do proprietário; a morada do administrador e sua família; o refeitório; o dormitório dos cativos; o ergástulo; o depósito das ferramentas; o galinheiro; o chiqueiro, a cavalariça, etc. Esse complexo produtivo materializava o avanço e a maturidade da agricultura escravista pequeno-mercantil romana.
A villa rustica, com de dez a uns cem hectares e de dez a trinta cativos, orientava-se para o mercado e supria, em forma subordinada, as necessidades dos trabalhadores e da família dos proprietários absenteístas, que procuravam visitar amiúde a propriedade. O administrador, villicus, em geral, um escravo, administrava a villa rustica ajudado pela esposa. Esperava-se que ele punisse sem exageros os trabalhadores escravizados e os alimentasse e vestisse com economia.
Os cativos trabalhavam em equipe, vigiados. Apenas os rebeldes labutavam acorrentados e dormiam na prisão-dormitório, ergastulum. O quarto individualdo cativo tinha uns nove metros quadrados. As refeições eram feitas no refeitório. Além de suas tarefas normais, uma cativa se ocupava das necessidades sexuais dos cativos, quase todos homens,. (COLUMELLA, 1977; CATONE, 2015; KOLENDO, 1980.)
Latifúndios pastoril e agrícola
Na Itália meridional e na Sicília, em terras impróprias à agricultura ou longe dos mercados, organizaram-se grandes criações de gado de médio e de grande porte, encaminhados em tropas aos mercados. Pastores escravizados, armados contra as feras e assaltantes, eram vigiados por um capataz, em geral, um cativo. Eles alimentavam-se com os animais que criavam, praticando comumente a rapinagem e o assalto. (GIARDINA & SCHIAVONE, 1981, p. 88 et seq.)
No fim do terceiro século antes de nossa era, Roma submeteu as cidades sicilianas a status jurídicos diversos e multidões de sicilianos à escravidão. Parte das terras da ilha, com sua cidades e proprietários obrigadas a pagar tributos sobretudo em grão, foram apropriadas como agri pubblici. Após a II Guerra Púnica (218-201 a.n.e.), chegaram à Sicília enormes quantidades de cativos, a baixíssimo preço.
Patrícios, sicilianos, plebeus e itálicos ricos, organizaram enormes latifúndios para a produção de trigo, com centenas de trabalhadores feitorizados. O alto preço da vigilância das enormes escravarias e os interregnos produtivos das lavouras sazonais de trigo, quando os cativos deviam ser alimentados, oneravam a produção. O mercado consumidor de grãos era restrito e em retração; os limitados meios de transportes não-aquáticos dificultavam a distribuição do trigo.
Para rentabilizar os investimentos, os proprietários exploravam sem piedade os cativos, marcados com ferro incandescente. A exploração extrema dos cativos e razões conjunturais —nacionais, étnicas, etc.—, motivaram insurreições gerais e Estados de curta vida fundados por cativos rebelados, ameaçando a ordem romana. O Senado romano reprimiu as grandes propriedades agrícolas escravistas, que foram reorientadas para o pastoreio ou para a produção agrícola escravista pequeno-mercantil. [BRIZZI, 2017: 11; SALLES; 1990, 60.]
Concentração de propriedades
No segundo século de nossa era, as propriedades do agro romano tenderam à concentração. No século seguinte, surgiram latifúndios de centenas e milhares de hectares, já no contexto da superação da produção escravista, que desembocaria na produção feudal, através do colonato. Nesse contexto, multiplicaram-se explorações heterogêneas dos latifúndios homogêneos, ao lado de propriedades escravistas pequeno-mercantis e das pequenas produções de subsistência, em retração. (KUZISCIN, 1984.)
Os grandes proprietário exploravam parte de suas terras com cativos e arrendavam, direta ou indiretamente, pequenas parcelas a colonos que pagavam uma renda em dinheiro e, mais tarde, em espécie e trabalho. A produção excedente era enviada aos mercados locais e regionais. Os colonos geravam e cuidavam dos filhos, para que ajudassem no trabalho, como segurança para a velhice, etc., o que livrava os escravistas da compra de cativos. O colono não exigia vigilância estrita. Ele geria a gleba e se esforçava no trabalho, já que era seu o produzido além do aluguel da terra.
Os colonos cuidavam do gado e dos rústicos instrumentos de trabalho, que lhe pertenciam, que os cativos maltratavam, como rejeição consciente ou inconsciente da escravidão. O trabalho livre permitiu a introdução de novas técnicas e instrumentos produtivos, inibidos pela resistência do escravizado ao trabalho. (STAERMAN, E.M. e TROFIMOVA, 1975.)
Os cativos, trabalhando nas reservas senhoriais, pressionaram, de todos os modos — resistência no trabalho, sabotagem dos instrumentos, fugas, revoltas, etc., — para se tornarem colonos-servos, alcançando melhores condições de existência, ainda que relativas.A metamorfose do cativo, separado das condições necessárias à produção de seus meios de existência, à situação de camponês dependente, tratou-se de transição revolucionária. Obtiveram direitos muito limitados de autonomia civil; de gerir com certa autonomia a gleba, sobre a qual tinham direitos limitados de de domínio; a propriedade dos instrumentos de trabalho e de sua família.
Transição Revolucionária
No ocaso do Império Romano, as forças produtivas materiais, em expansão, entraram em contradição com a principal forma de relação social de exploração, a escravidão, e, consequentemente, com a estrutura da propriedade dominante por ela ensejada. A produção escravista pequeno-mercantil, modo de produção mais elevado de organização produtiva, que garantira séculos de desenvolvimento do mundo romano, ingressara em uma profunda crise. Sua superação foi a maior responsável pela dita queda do Império Romano.
O colonato e o feudalismo, ao revolucionarem as relações sociais de produção, permitiram superar o impasse vivido, assegurando um significativo salto na produtividade do trabalho humano, assentado em novas relações de produção. As novas formas de produção ensejaram nova superestrutura, quanto à ideologia, às formas de governo e de propriedades, etc. Elas abriram passo à hegemonia do modo de produção e das relações feudais de dominação na Europa, em evolução histórica ascendente. (DOCKÉS, 1979.)
Na Europa Ocidental e Oriental, a escravidão desapareceu como forma de produção dominante, assumindo, ao máximo, um papel subordinado em regressão. Séculos mais tarde, a grande escravidão mercantil, que fracassara na Sicília romana, renasceria, como um modo de produção historicamente novo, segundo a formulação do historiador marxista brasileiro Jacob Gorender, na época da constituição da globalização, quando das ditas grandes Descobertas.(GORENDER, 2010.)
Modo de produção escravista colonial
Os europeus desembarcaram nas Américas, não para civilizá-la, mas para explorá-la. No inicio do século 16, quando os primeiros africanos foram desembarcados nas colônias americanas, a escravidão languescia na Europa. A escravidão colonial foi o sustentáculo, por séculos, da produção agrícola, urbana e mineradora de enormes regiões americanas, desempenhando, em outras, um papel acessório.
Portugueses, espanhóis, franceses, ingleses, etc. produziram variados produtos coloniais com a mão de obra escravizada. A pequena agro-manufatura do açúcar, produto valiosíssimo, conhecida no Mediterrâneo e em ilhas atlânticas, foi testada, com sucesso, em diversas colônias europeias. De 60 a 70 % dos milhões de africanos escravizados nas Américas viveram e morreram em regiões dedicadas à produção do açúcar.
A escravidão colonial superou o escravismo pequeno-mercantil da Antiguidade, ao vencer as barreiras que levaram à crise a agricultura escravista no crepúsculo do Baixo Império. O açúcar era produto valorizado em um mercado internacional em permanente extensão. Os navios da época transportavam até mil toneladas através do Atlântico, com relativa segurança.
Os avanços tecnológicos na Europa feudal garantiram o funcionamento relativamente complexo dos engenhos açucareiros. Dizimadas as populações nativas, abundavam terras extremamente favoráveis aos canaviais. Entretanto, para rentabilizar a agricultura colonial, impunha-se altíssima exploração do trabalhador, que não era aceita pelos europeus livres pobres que desembarcaram nas terras do Novo Mundo.
Escravização de índios e africanos
A exploração escravista dos nativos, até sua extinção tendencial, e a seguir, das reservas infindáveis de africanos, foi imposta pela lógica mercantil. A produção agro-manufatureira de açúcar podia ser desmembrada em atos simples e repetitivos, distribuídos através de todo o ano, e possíveis de serem realizados por equipes de cativos, com instrumentos rústicos.
Surgiram na costa da América Lusitana engenhos açucareiros de milhares de hectares e centenas de escravizados. Trabalhando febrilmente para um mercado inesgotável, eles consumiam enormes quantidades de lenha, de bovino e, sobretudo, de cativos. Economizava-se na alimentação, no vestuário, na moradia, nos cuidados da saúde. Se procurava produzir tudo o que era consumido na fazenda, na própria fazenda. (MAESTRI, 1989.)
A produção escravista era uma atividade mercantil que buscava produzir e vender o máximo e comprar e gastar o mínimo possível. O cativo labutava muito, dormia pouco, comia mal, era tratado em forma muito dura, vestia e morava precariamente. São sandices ideológicas as propostas de uma literal “escravidão feliz” no Brasil, algumas delas escandalosas. (MATTOSO, 1979.) A organização social e econômica escravista colonial funcionou como uma máquina de moer corpos, línguas, tradições, culturas, etc. dos escravizados, em geral, desembarcados nas Américas jovens.
Os cativos trabalhavam de sol a sol e, muitas vezes, à noite, à luz de lampiões. Nos engenhos, quando da safra, era comum descansarem cada quinze dias. As expressões culturais da população escravizada eram reprimidas. A esperança de vida média dos escravizados era baixa. Os cativos eram vigiados durante a produção e castigados quando não cumpriam tarefas, desobedeciam feitores, etc. Em caso mais graves, de atentados e justiçamento de escravistas e feitores, etc. podiam ser castigados com até 1.500 chicotadas e condenados à morte. (LIMA, 1997.)
As mais diversas formas de expressão da oposição surda e aberta, entre escravizadores e escravizados, transpassaram em forma incessante a sociedade escravista colonial. Desamor ao trabalho, auto-ferimento, danificação de instrumentos, fugas, revoltas, rebeliões, quilombos etc. fizeram parte do cotidiano da escravidão colonial brasileira, de seu primeiro ao último dia. (REIS, GOMES, 1996.)
A dura repressão e situações objetivas e subjetivas da ordem escravista brasileira e da população escravizadas determinam que apenas no Haiti, os cativos tenham se libertado da escravidão através da sublevação armada. No Brasil, o fim da escravidão colonial, em 1888, no contexto do abandono geral das fazendas cafeicultoras pelos cativos, sobretudo paulistas, constituiu a única revolução social até agora vitoriosa no país. (MAESTRI, 1989; GORENDER, 2010.)
O Tráfico Negreiro
A reprodução da população escravizada e, portanto, da ordem escravista colonial, dependeu sobremaneira do tráfico negreiro. O tráfico transatlântico de africanos escravizados em direção das Américas tomou corpo no início do século dezesseis e encerrou-se apenas nos anos 1860, com a derrota do sul escravista na Guerra de Secessão estadunidense.
O tráfico transatlântico de africanos escravizados constituiu a maior transferência forçada de trabalhadores da história da humanidade. No Brasil, após 1850, quando do fim do tráfico oceânico, este último foi substituído pelo tráfico inter-provincial de escravizados, em enorme parte já nascidos no Brasil, não menos violento. (CONRAD, 1985.)
Mais de dez milhões de africanos e africanas, em geral, jovens adultos, mas também adolescentes e crianças, foram arrancados sobretudo das costas da África Ocidental e chegaram com vida às Américas. Milhões de africanos morreram na África, devido às sequelas do tráfico, quando foram embarcados, quando da travessia. (CALDEIRA, 2020.)
A África Negra foi dessangrada em favor da acumulação escravista-mercantil e mercantil. Os negro-africanos enriqueceram as metrópoles europeias, os comerciantes negreiro, os escravizadores das colônias americanas e, em forma marginal, classes dominantes negro-africanas. Nas colônias luso-americanas, nas primeiras décadas, a escravidão feitorizou e exterminou centenas de milhares de povos autóctones, sobretudo do litoral. (MAESTRI, 2012.)
O negro-africano mostrou-se mão de obra inesgotável, ao contrário dos nativos. Ele provinha de diversas regiões da África Ocidental e Oriental e era escravizados em terra que não conhecia, o que facilitava sua submissão. A heterogeneidade cultural da população africana desembarcada nas Américas dificultou sempre a resistência dos escravizados. Com destaque para o Novo Mundo, a cor da pele serviu como justificação da escravidão e assinalava os escravizados. O que permitiu identificação de uma pretensa etnia africana e população escravizada.
Discute-se sobre a existência de escravidão na África Negra Pré-colonial, no sentido estrito da categoria. O Continente Negro conheceu múltiplas formas servis de submissão não escravistas, ensejadas pelo desenvolvimento da divisão do trabalho e das forças produtivas materiais que conheceu. Fora algumas regiões, em forma embrionária, a África Negra não conheceu a propriedade privada da terra.
Antes da chegada dos europeus, enorme parcela das populações negro-africanas conhecia modos de produção definido por africanistas como aldeões, domésticos ou de linhagem, apoiados na agricultura, no artesanato, no pastoreio, na caça, na pesca, na coleta. As unidades sociais de base eram a família nuclear ampliada e a comunidade aldeã, sob o comando de um patriarca. Sobre ela, ergueram-se formações sociais supra-aldeãs de pequeno, médio, grande e enorme porte, como os Reinos de Ghana, Império de Mali, Império de Songai, etc. (MAESTRI, 2022.)
Antes da chegada dos europeus nas costas, a África Negra Pré-colonial conhecia uma importante circulação interna de africanas e africanos cativos, vendidos por dívida, por feitiçaria, sequestrados, capturados nas guerras, etc. Em geral, as cativas eram incorporadas, como esposas, e os homens, como agregados às famílias ampliadas de famílias aldeãs. A exploração dos agregados e das esposas era limitada consuetudinariamente e, sobretudo, devido à inexistência de uma ampla atividade comercial e de posse privada da terra. Não havia por que e como avançar a produção além das necessidades de consumo do grupo familiar amplo. (MAESTRI, 2022.)
Servidão não hereditária
Essa forma de incorporação familiar não exigia gastos extraordinários de controle dos agregados, com destaque para as esposas. Seus descendentes superavam o status desqualificador em duas ou três gerações. Os agregados às famílias ampliadas podiam ser vendidos apenas em casos de extrema necessidade, e não podiam ser mortos pelos patriarcas. As sociedades domésticas africanas jamais conheceram a escravidão, no sentido pleno da categoria. São inúmeras as referências africanas pungentes sobre as diferenças abismais entre a escravidão colonial e as formas de submissão familiar africana. A proposta de escravidão na África Pré-Colonial constitui forma enviesada de justificar o tráfico europeu e a escravidão colonial americana.
Com a chegada dos europeus, a circulação de mulheres e de cativos foi reorientado para os entrepostos europeus da costa, onde surgiram igualmente poderosos reinos negro-africanos escravizadores, caçando e comerciando africanos, para abastecer os castelos, as feitorias e os navios negreiros europeus. Com a venda dos cativos, os comerciantes africanos e os senhores das costas do Continente Negro obtinham valorizadas mercadorias: tecidos, álcool, pólvora, armas, ferramentas, etc. Como as mulheres eram mantidas preferencialmente na África Negra como esposas, em geral, 2/3 dos cativos desembarcados nas Américas eram homens, o que limitou as enormes sequelas causadas pelo tráfico sobre a demografia africana.
Não há razão para uma ampla perplexidade contemporânea sobre o fato de negros venderem negros na África. Na África, antes e após o início do tráfico, não havia negros, como na Europa não havia brancos. Havia africanos nobres, plebeus, guerreiros e camponeses, patriarcas e agregados, etc. divididos e opostos por contradições e oposições de idade, de sexo, sociais, culturais, linguísticas, nacionais, etc.
Na Europa e na África, não havia e não há solidariedade e identidade de classe e social entre europeus e africanos, por serem brancos e negros, categorias exteriores a essas sociedades. Ainda que o racismo seja comumente um instrumento de exploração econômico-social. É uma construção ideológica a proposta de cultura, língua, costumes, etc. pan-africanos, pan-europeus, pan-asiáticos, etc., para além de determinações geográficas e históricas gerais.
Conferência ministrada no dia 22 de maio de 2025, por convite do dr. Valter Zanin, na Università degli Studi di Padova. Tradução do italiano ao português pelo autor, atualizada em 28 de maio. Agradecemos a leitura da linguista italiana Florence Carboni.
Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.
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