
Passados dois anos desde a posse de Lula em seu terceiro mandato presidencial, não há nada que possa levar à ilusão de que se trata de um governo dos trabalhadores. Por um lado, sua agenda econômica segue os mesmos princípios que vem norteando as ações dos diferentes governos há décadas, inclusive mantendo traços dos governos Temer e Bolsonaro. Por outro, faz uso da pauta identitária como se fosse algo progressista, essa se constituindo uma das poucas diferenças em relação ao mandato de Bolsonaro. A despeito do que possam dizer os delírios tanto lulistas como bolsonaristas, se trata de um governo de setores capitalistas que têm como único objetivo tentar superar a crise econômica que, com oscilações e recuos, vem marcando o mundo há anos.
O novo governo encabeçado Lula nasceu de um contexto bastante particular. Desde pelo menos 2013, os trabalhadores e a juventude se mostraram insatisfeitos com as instituições burguesas. Diante do desgaste do reformismo, depois de sucessivos governos do PT, segmentos de massas acabaram por nutrir ilusões em setores da extrema direita que faziam críticas às instituições, ainda que essa postura fosse apenas uma retórica demagógica que não fazia nada além de mentir sobre promessas genéricas de mudanças.
Os governos Temer e Bolsonaro se materializaram em ataques a direitos históricos dos trabalhadores, em especial por meio das reformas trabalhista e da previdência e a implantação do “teto de gastos” em um limitado orçamento público. Esses governos foram marcados por resistência dos trabalhadores e da juventude. Temer era chamado de golpista por parte da esquerda, mas, também, era visto como continuidade do mandato de Dilma por parte da extrema direita, tentando fazer um governo que não conseguiu qualquer legitimidade.
O governo Bolsonaro, por sua vez, em especial por conta da postura assumida frente à pandemia, rapidamente se viu desgastado e a campanha pela sua derrubada ganhou o apoio de setores de massas. Considerando a perspectiva da burguesia, era um governo que não resolvia os problemas da crise econômica aberta desde 2019, pois estava mais preocupado em mobilizar sua turba ideológica do que em administrar o Estado.
A esquerda institucional assumiu o papel de impedir que a campanha pela derrubada de Bolsonaro se transformasse em ação de massas, procurando desviar a indignação popular para o voto na candidatura de Lula nas eleições presidenciais de 2022. Lula, além de conseguir o apoio dos trabalhadores e da juventude indignados com o descaso do governo durante a pandemia, também angariou o apoio de setores da burguesia que viam em Bolsonaro uma ameaça às instituições da democracia burguesia. Com isso, se constituiu uma ampla frente de apoio a Lula em torno de um projeto de união nacional, com vistas a defender a democracia e as intuições burguesas.
Essa postura do PT não foi surpresa, afinal não se percebe muitas mudanças nos elementos estratégicos que há décadas vêm orientando sua atuação, inclusive sua defesa das instituições da Nova República. Florestan Fernandes afirmava que, em sua trajetória, o partido “confere resoluta prioridade estratégica às reformas e revoluções sociais de cima para baixo – dentro do capitalismo ou contra ele, dependendo da receptividade ou da fraqueza das classes proprietárias”.1
No final da década de 1980, o PT desenvolveu uma elaboração do que na época chamou de governo democrático-popular. Esse governo deveria aplicar um programa reformas no capitalismo, que significariam conquistas dentro de um cenário de acúmulo de forças na luta pelo socialismo. O partido assim elaborava a questão, às vésperas de primeira participação de Lula nas eleições presidenciais, em 1989:
“Contra o projeto das classes dominantes, o PT reafirma o seu caminho para resolver a crise do ponto de vista dos trabalhadores, que é a instauração de um governo democrático-popular, anti-imperialista, antimonopolista, contra o pagamento da dívida externa, que realize a reforma agrária e que promova o desenvolvimento sobre novas bases, e no qual os trabalhadores detenham a hegemonia e possam avançar em direção ao socialismo”.2
Essa ideia de defesa de um governo que aplicasse reformas como etapa na luta pelo socialismo foi paulatinamente sendo abandonada pelo PT, em especial a partir da derrota das correntes revolucionárias na disputa interna do partido. Esse processo teve como pano de fundo o colapso dos Estados operários burocráticos no Leste Europeu e a difusão de ideologias como a do “fim da história”. Para o PT, depois das sucessivas derrotas em eleições presidenciais, o democrático popular se tornou estratégia, ou seja, o programa de reformas deixou de ser uma ferramenta no acúmulo de forças pelo socialismo e se tornou um fim em si mesmo dentro da ordem capitalista. Um capitalismo com reformas e com instituições burguesas em pleno funcionamento passava a ser a estratégia do partido.
Esse processo se evidencia nos documentos do partido. Em 1997, às vésperas de mais uma derrota na eleição presidencial, o partido consolidou em seus documentos a ideia de uma “revolução democrática”, com vistas a “pôr fim à exclusão, às desigualdades sociais e ao autoritarismo que marcam nossa história”.3 Buscando o que chamava de “alternativa concreta e progressista”, o partido defendia “uma nova economia, capaz de assegurar a superação do apartheid social no Brasil e desencadear um processo de inclusão social, que elimine o dualismo resultante da concentração de riqueza nas mãos de poucos”.4
O partido, que em algum momento anterior pelo menos falava em socialismo nos dias de festa, passou à defesa da superação de desigualdades e de melhorias das instituições burguesas. Na elaboração de “novos objetivos estratégicos”, o partido se propunha a “promover uma democratização radical da sociedade e do Estado”, impulsionando “um desenvolvimento econômico sustentável e solidário, orientando para um mercado de consumo de massas e serviços públicos essenciais”5
Embora o partido se remetesse ao que chamava de “projeto socialista contemporâneo”, afirmava que ele deveria “promover o crescimento acelerado da economia, que os países periféricos exigem, realizando um processo sustentado de distribuição de riqueza”6. O “socialismo” defendido pelo partido passava a ser, de forma explícita, sua versão social-democrata que, naquele contexto, vinha aplicando o programa capitalista de ataque a direitos dos trabalhadores em países como França e Inglaterra.
Com a chegada no PT à presidência em 2002, até mesmo as reformas do capitalismo perderam seu espaço em seu programa. O partido se tornou um gestor do capitalismo e aprofundou seu processo de integração às instituições do Estado burguês. O democrático-popular e até mesmo a palavra socialismo, ainda que apareçam formalmente em documentos do partido, foi abandonado pelo PT, dando vazão a uma estratégia que passa por defender a ordem capitalista, gerenciando os interesses da burguesia, enquanto tenta amenizar superficialmente suas mazelas por meio de medidas assistenciais.
Esse processo de integração à ordem está explícito em resoluções e outros documentos do partido. Em 2022, no programa eleitoral de Lula, o PT defendia a necessidade de “restabelecer um ambiente de estabilidade política, econômica e institucional que proporcione confiança e segurança aos investimentos que interessam ao desenvolvimento do país”7. O programa também defendia “uma estratégia nacional de desenvolvimento justo, solidário e sustentável”8. Em um documento posterior, o partido afirma que,
“[…] do ponto de vista estratégico, programático e histórico, o governo Lula fará toda a diferença à medida em que contribua para desencadear um ciclo de desenvolvimento, com ampliação das liberdades democráticas, do bem-estar social, da soberania nacional e da integração regional”.9
Esses exemplos mostra o compromisso assumido pelo partido de defesa da manutenção da estabilidade das instituições burguesas e, da mesma forma, com o desenvolvimento do capitalismo. O partido, portanto,
“[…] acompanhava a metamorfose mundial dos partidos reformistas em partidos social-liberais dispostos a governar em favor do capital, apoiados no capital político, que dispunham. Não defendiam mais concessões do capital aos trabalhadores para manterem a paz social. Defendiam a ofensiva do capital sobre os direitos dos trabalhadores, com concessões pontuais e limitadas. Transformavam-se em partido burgueses com bases operárias e populares”.10
O atual governo Lula não possui elementos progressistas nem defende políticas de interesse dos trabalhadores. Se em governos anteriores do PT ainda era possível pensar em tímidas concessões pontuais, como a ampliação da rede pública de educação federal, ainda que este tenha sido realizada de forma precária, ou em um projeto econômico com tímidos aspectos desenvolvimentistas, o atual mandato está marcado por uma perspectiva totalmente integrada à ordem do capital financeiro imperialista. Portanto, se antes o partido “substituiu a antiga proposta de reforma anticapitalista pela de gestão honesta, capaz e humana do Estado e da sociedade capitalista”, agora se propunha a “apenas administrar com competência e alguma sensibilidade social o Estado burguês capitalista”.11
Essa perspectiva vem se materializando, entre outros aspectos, na política econômica, evidenciando-se na manutenção do chamado “teto de gastos”. Nessa ação política, que implica nos investimentos públicos em áreas como educação e saúde, o governo petista apenas maquiou a política anteriormente implementada por Temer, mudando alguns aspectos pontuais, chamando-a de “arcabouço fiscal”. Com isso,
“[…] perpetua o estado de penúria permanente que bloqueia a capacidade de gasto do governo federal. Ao invés de responder às necessidades da população e aos interesses nacionais, a evolução das políticas sociais e dos investimentos públicos continuará deprimida, não podendo ultrapassar uma fração do aumento das receitas tributárias e ficando institucionalmente vinculada ao cumprimento de metas de superávits primários – recursos fiscais reservados para o pagamento de parcela das despesas com juros da dívida pública”.12
O projeto de uma frente popular ficou para trás até mesmo na retórica eleitoral, sendo enterrado na greve dos servidores federais contra a reforma da previdência, ainda em 2003. Os governos de Lula e Dilma foram marcados por muitas promessas de futuro e nenhuma ação que transformasse a vida concreta dos trabalhadores, que tiveram que se contentar com as migalhas permitidas pelo capital financeiro. Em 2024, diante da greve dos servidores públicos federais, ficou evidente o compromisso do governo com o “teto de gastos”. Os governos do PT, nesses mais de vinte anos, foram paulatinamente abrindo espaço em ministérios e secretarias aos partidos de direita e se viram completamente presos nas negociações de recursos no Congresso Nacional. Observa-se um processo no qual
“[…] o PT abandonando progressivamente seu envolvimento com os movimentos sociais e lutas populares e seu radicalismo político em favor da viabilidade eleitoral e da inserção institucional, transformando-se num partido institucional típico, dirigido por sua burocracia interna e pelos detentores de mandatos sob a sombra personalista de seu principal dirigente, dependente da ocupação de cargos no interior do Estado para sua reprodução como máquina política e fortemente condicionada pelo eleitoralismo em sua política de alianças e em suas campanhas políticas”.13
O governo de união nacional encabeçado por Lula, que se tem na atual conjuntura, mostra um salto de qualidade em relação às alternativas burguesas anteriores encabeçadas pelo PT, na medida em que não apresenta nem mesmo tímidas reformas do capitalismo. O governo se limita a recompor parte do orçamento desastroso deixado pelas duas gestões presidenciais anteriores, o que é pouco até mesmo para um partido que, em outro momento de sua trajetória, defendia a conquista de reformas por parte dos trabalhadores como acúmulo de forças na luta pelo socialismo.
Quando se fala do governo Lula, não se fala em esquerda ou em alternativa progressista, mas em um bloco burguês incapaz de levar a qualquer conquista para os trabalhadores.
Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.
Referências
- FERNANDES, Pensamento e ação: o PT e os rumos do socialismo. São Paulo: Globo, 2006, p. 245.
- PT. “O momento atual e as nossas tarefas”, 6º Encontro Nacional, junho de 1989. In: Resoluções de encontros e congressos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 372.
- PT. “Resoluções políticas”, 11º Encontro Nacional, agosto de 1997. In: Resoluções de encontros e congressos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 653.
- PT. “Resoluções políticas”, 11º Encontro Nacional, agosto de 1997. In: Resoluções de encontros e congressos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 653.
- PT. “Resoluções políticas”, 11º Encontro Nacional, agosto de 1997. In: Resoluções de encontros e congressos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 658.
- PT. “Resoluções políticas”, 11º Encontro Nacional, agosto de 1997. In: Resoluções de encontros e congressos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 663.
- Diretrizes para o programa de reconstrução e transformação do Brasil, 2022, p. 15-6, https://fpabramo.org.br/wp-content/uploads/2022/06/documento-diretrizes-programaticas-vamos-juntos-pelo-brasil-20.06.22.pdf
- Diretrizes para o programa de reconstrução e transformação do Brasil, 2022, p. 16, https://fpabramo.org.br/wp-content/uploads/2022/06/documento-diretrizes-programaticas-vamos-juntos-pelo-brasil-20.06.22.pdf.
- Diretório Nacional, dezembro 2023, https://pt.org.br/veja-a-resolucao-do-diretorio-nacional-do-partido-dos-trabalhadores/
- MAESTRI, Mario. Revolução e contrarrevolução no Brasil (1530-2019). 2ª ed. Porto Alegre: FCM Editora, 2019, p. 279.
- MAESTRI, Mario. Revolução e contrarrevolução no Brasil (1530-2019). 2ª ed. Porto Alegre: FCM Editora, 2019, p. 236.
- SAMPAIO JUNIOR, Plinio de Arruda. “Um museu de velhas novidades”, Contrapoder, 18 de abril de 2023, https://contrapoder.net/colunas/um-museu-de-velhas-novidades/
- MACIEL, David. Notas sobre a dominação burguesa no Brasil durante a ditadura militar e seu legado (1964-1985). In: Marcelo Badaró Mattos. (Org.). Estado e formas de dominação no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2017, p. 120.