Um museu de velhas novidades

O governo Lula/Alckmin apresentou ao Congresso Nacional o projeto de Arcabouço Fiscal destinado a substituir o famigerado Teto de Gastos. Para além dos detalhes técnicos de seus mecanismos operacionais e parâmetros institucionais, cuja versão definitiva ainda sofrerá alterações, o espírito da política fiscal proposta é inequívoco. Não se trata de modificar o conteúdo da Emenda Constitucional Nº 95, cuja essência consistia em promover uma draconiana redução da presença do Estado na economia, mas apenas de introduzir mudanças na forma de alcançar tal desiderato. 

Em comparação com o tosco Teto de Gastos de Henrique Meirelles, cuja viabilidade prática revelou-se insustentável, o Arcabouço Fiscal de Fernando Haddad é bem mais inteligente e capcioso. Trata-se de um Teto de Gastos 2.0. A ideia é subordinar o ritmo e a intensidade das restrições às despesas do setor público às circunstâncias da conjuntura econômica nacional – uma maneira mais flexível e realista de perseguir a meta do Estado mínimo. 

A expectativa de que a derrota de Bolsonaro pudesse representar o fim do garrote vil sobre os gastos públicos mal durou três meses. Mesmas políticas, mesmos efeitos. O novo marco fiscal perpetua o estado de penúria permanente que bloqueia a capacidade de gasto do governo federal. Ao invés de responder às necessidades da população e aos interesses nacionais, a evolução das políticas sociais e dos investimentos públicos continuará deprimida, não podendo ultrapassar uma fração do aumento das receitas tributárias e ficando institucionalmente vinculada ao cumprimento de metas de superávits primários – recursos fiscais reservados para o pagamento de parcela das despesas com juros da dívida pública. 

Durante a campanha eleitoral, Lula prometeu retomar as políticas sociais de seus dois primeiros mandatos. Não deixa de ser irônico constatar que, se a legislação fiscal proposta agora estivesse então em vigor, suas realizações passadas teriam sido muito mais modestas. Uma simulação mostra que a aplicação das novas regras para o período de 2011 a 2022 teria implicado um corte de R$ 775,3 bilhões nos gastos da União – uma redução de R$ 64 bilhões ao ano, diminuição de 40% na taxa de crescimento real efetivamente observada.1 Se o mesmo cálculo fosse feito para os anos 2003-2010, período do ciclo de crescimento impulsionado pelo boom de commodities que condicionou o “neodesenvolvimentismo” de Lula, a contração das despesas primárias da União seria ainda muito mais severa e a política de recuperação do poder de compra do salário mínimo, uma das principais bandeiras de seu governo, simplesmente não poderia ter acontecido.

A política econômica do governo Lula/Alckmin, da qual o Arcabouço Fiscal constitui a viga mestra, não enfrenta nenhuma das causas responsáveis pela crônica fragilidade fiscal do Estado brasileiro. A continuidade do padrão de acumulação liberal-periférico, que tem nas metas inflacionárias sua arquitetura estratégica, perpetua a estagnação do crescimento e a desindustrialização da economia. A complacência da reforma tributária com o grande capital e a plutocracia bloqueia qualquer possibilidade de elevação significativa da carga tributária e de correção das seculares injustiças fiscais. Por fim, a ausência de qualquer providência para limitar as despesas financeiras decorrentes de pagamentos de juros da dívida pública e dos custos da política monetária e cambial que sustentam a farra do rentismo, o principal item de gasto do governo federal, interdita inapelavelmente qualquer possibilidade de colocar o pobre no orçamento público. A sangria que significam tais despesas fica evidente quando se constata que há décadas seu montante equivale a mais de três vezes o gasto acumulado do governo central com saúde e educação.2

Elaborado sem consulta aos sindicatos, desconsiderando os movimentos sociais e ignorando olimpicamente a importância de abrir um debate público sobre o sentido mais geral da política econômica, o Arcabouço Fiscal dos tecnocratas de Haddad é um museu de velhas novidades. Trata-se de uma gambiarra para remendar a malfadada Emenda Constitucional Nº 95. O bom-mocismo do Ministro da Economia e a maior sofisticação técnica da legislação proposta mal camuflam o objetivo estratégico de subordinar a política fiscal à intenção de abrir espaço para a mercantilização dos serviços sociais e garantir a sustentabilidade intertemporal da relação dívida pública/PIB – critérios sacrossantos que presidem o regime de austeridade fiscal inaugurado com Joaquim Levy no governo Dilma Rousseff e levado ao paroxismo após a chegada espúria de Michel Temer ao Planalto. 

Por absoluta falta de coragem para enfrentar os interesses econômicos e sociais que se locupletam com a miséria dos trabalhadores e a desagregação do Estado nacional, o governo Lula/Alckmin caminha a passos largos para repetir o estelionato eleitoral de Dilma Rousseff, que abriu a Caixa de Pandora que impulsiona as hordas reacionárias que lutam para transformar a reversão neocolonial em razão de Estado.

Ao procurar conciliar o inconciliável, Lula tornou-se vítima de suas próprias artimanhas. Muito aquém do que seria necessário para superar a grave crise civilizatória que ameaça a sociedade brasileira, seu governo ficou condenado a cumprir o triste papel de consolidar a ofensiva do capital sobre o trabalho, legitimando e institucionalizando os golpes contra os conteúdos democráticos e republicanos imprimidos pela luta popular à Constituição de 1988.

Referências

  1.  Ver artigo “Nova regra fiscal teria economizado R$ 64 bi ao ano, estimam analistas”, in https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/04/nova-regra-fiscal-teria-economizado-r-64-bi-ao-ano-estimam-analistas.shtml
  2.  Sobre a importância das despesas financeiras no orçamento do governo federal, ver interessante trabalho de Luís Carlos G. de Magalhães e Carla Rodrigues Costa, “Arranjos institucionais, custo da dívida pública e equilíbrio fiscal: a despesa ‘ausente’ e os limites do ajuste estrutural”, in: IPEA, Texto para Discussão, Nº 2403, Rio de Janeiro, agosto de 2018. https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8594/2/TD_2403_sumex.pdf

Plínio de Arruda Sampaio Junior

Professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp. Autor do livro Crônica de uma Crise Anunciada: crítica à economia política de Lula e Dilma.

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