Entre a expectativa do trabalho intelectual e a realidade: o que comemorar no dia 15 de outubro?

A Paixão da Criação, de Leonid Pasternak
O Grito, de Edvard Munch

Comemora-se no Brasil em 15 de outubro o dia da professora e do professor. Isso porque, em 1827, Dom Pedro I decreta, na data, uma lei geral concernente ao ensino elementar, que se aproxima do que conhecemos na atualidade como a Lei de Diretrizes e Bases. Mas foi Antonieta de Barros, a primeira deputada negra da história, quem, em 1948, consegue a aprovação em Santa Catarina da lei estadual que institui o dia do professor, que décadas depois, em 1963, passa a ser data nacional oficializada pelo Presidente João Goulart.

É, de fato, um dia de luta, uma data voltada à construção de reflexões críticas sobre a profissão e distantes das frases de efeito e/ou romanceadas, cantadas em verso e prosa, acerca da importância de professoras e professores, principalmente entoadas por políticos envolvidos com a trajetória de destruição da educação pública.

No ano passado, a data foi “brindada” com a criação da Associação Nacional de Educação Básica e Híbrida (ANEBHI)1, com nítida manobra para aproveitar o cenário de distanciamento social causado pela crise sanitária e avançar na venda de produtos para a educação básica pública. Em 2021, ainda em tempos de pandemia, estamos às voltas com a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 032/2020, destinada à reforma administrativa, que, entre outros pontos, visa criar cinco carreiras no funcionalismo público, mais flexíveis e com maiores chances de apadrinhamento e retorno ao ranço do Estado Patrimonialista. O estado de São Paulo, sempre pioneiro no aperfeiçoamento das políticas neoliberais, coloca em votação seu Projeto de Lei Complementar nº26/2021, que, em seu baú de maldades, disciplina a contratação de temporários, prática muito antiga na educação paulista.

Realizo estudos sobre o trabalho docente há mais de uma década e, gradativamente, tenho presenciado nas entrevistas com professoras e professores um movimento duplo e contraditório. De um lado, um desencantamento profissional cravado em suas faces e frases aqui exemplificadas: “o que fizeram com a minha profissão?”; “aquela que sonhei exercer para transformar o mundo, as pessoas, construir conhecimentos e um futuro ao país e às famílias”; “para mim educação não é isso”; “eles [a Secretaria] dizem que eu não sei dar aulas”. Por outro lado, todavia, não se furtam a construir soluções para auxiliar as turmas e se desdobram para minimizar os improvisos criados durante a pandemia.

Antes do período pandêmico, o estado de São Paulo já vislumbrava a implementação do Centro de Mídias – uma vez que constava do planejamento da Secretaria em 2019 –, uma ação concretizada pelo Instituto Ayrton Senna, associada a um guarda-chuva de empresas, fundações e institutos, a exemplo da Roberto Marinho, empresas cuja finalidade é a venda de cursos de apoio aos estudantes da educação básica, ao ENEM, entre outros. Ele se constitui em aulas gravadas por professores da rede estadual, acompanhadas de questões a serem respondidas que, segundo os professores entrevistados, são um verdadeiro desrespeito à inteligência dos alunos, tanto pela má qualidade das perguntas e alternativas, quanto pela ausência de situações desafiadoras para o aprendizado. Além disso, os conteúdos veiculados na plataforma são distintos do que está sendo trabalhado nas aulas com as professoras e professores. Ou seja, distantes das escolas, os estudantes se sentiram ainda mais desorientados sobre as vinculações a serem feitas com a disciplina.

Os entrevistados relataram que tal medida triplicou o trabalho, já extraordinário frente às inúmeras adaptações para o modelo remoto ou para a preparação de material impresso a ser retirado pelas famílias nas escolas. 

Mas a SEDUC-SP divulgou o “sucesso“ do empreendimento2: “81% dos alunos da rede estadual de SP acessaram o centro de mídia”. A mandrakaria, no caso, foi obrigar o aluno a participar e o professor a lhe conceder dois pontos na média. Em um dos diálogos, pergunto assustada: “Mas, não é necessário acertar as questões?” E obtenho a seguinte resposta: “Não, não precisa…basta se logar na plataforma”. 

Todos os docentes ouvidos relataram ações mirabolantes para tentar minimizar o “estrago“ causado pelo Centro de Mídias. 

Procurei, com o exemplo de uma das ações irresponsáveis da política educacional, ilustrar as intermináveis horas de trabalho, já extensas antes da pandemia e que avançaram ainda mais nas madrugadas, feriados e finais de semana, quando pais e responsáveis buscavam esclarecimento a suas dúvidas ou mesmo disponibilizar o único celular na família ou de vizinhos e parentes para o ensino, dito híbrido.

Valorização salarial?

É inaceitável ouvir no dia 15 de outubro o quanto as professoras e professores são fundamentais para a sociedade, enquanto as condições de trabalho e os salários são crescentemente degradantes. 

Estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2021)3 – a mesma que dita regras à educação em todo o mundo – confirma que o Brasil remunera pessimamente a docência na educação básica, só perdendo para Costa Rica, Hungria e Letônia. Enquanto no Brasil a média anual é de US$ 13,9 mil, os países que encabeçam a lista dos melhores salários (Luxemburgo e Alemanha) superam os US$ 70 mil anuais.

No Brasil, a Lei 11.738/2008 instituiu o piso salarial dos professores, uma conquista, sem dúvida, mas longe de refletir o valor dos profissionais e de sua importância ao país. Em 2021, o piso é de R$ 2.886,24, e a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE)4 estima que, para 2022, ele será de R$ 3.236.05, para uma jornada contratual de 40 horas semanais: a conferir, pois a conjuntura negacionista da ciência, acompanhada de respectivos cortes, dificilmente se curvará às justas reivindicações do movimento sindical para ajuste do piso.

Homenageio e louvo esses profissionais que abrem diariamente as escolas e tentam contornar os problemas desconsiderados pelo poder público. Essa é uma forma de agradecer a eles, que, com trabalho tão intensificado, aceitam me receber, relatar seu cotidiano e, assim, contribuir com a difusão do conhecimento.

A figura do equilibrista é emblemática para uma profissão que a selvageria procura substituir por máquinas.

Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar

(Aldir Blanc e João Bosco)

Referências

  1. Debatida na coluna do Contrapoder de autoria de Olinda Evangelista, disponível em: https://contrapoder.net/colunas/ensino-hibrido-cai-sobre-o-professorado/; e na coluna do Universidade à esquerda, na minha coluna com Olinda Evangelista, disponível em: https://contrapoder.net/colunas/crise-sanitaria-e-legado-educacional-a-cilada-do-ensino-hibrido/
  2.  Disponível em: https://educacao.uol.com.br/noticias/2021/04/21/sp-em-um-ano-81-dos-alunos-da-rede-estadual-acessaram-centro-de-midia.htm Acesso em: 13 out. 2021.
  3.  Disponível em: < https://www.oecd.org/education/education-at-a-glance/> Acesso em: 13 out. 2021.
  4.  Disponível em: https://cnte.org.br/index.php/menu/comunicacao/posts/noticias/74201-piso-do-magisterio-em-2022-esta-estimado-em-r-3-236-05-reajuste-de-12-12 Acesso em: 13 out. 2021.

Selma Venco

Professora no DEPASE, Faculdade de Educação da Unicamp; Pesquisadora do Centre de Recherches Sociologiques et Politiques de Paris (CRESPPA) e Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional (GREPPE); Pesquisa A Nova Gestão Pública e as relações de trabalho praticadas no setor público educacional paulista.

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