A notícia não é nova, mas a constatação é inequívoca: “o futebol de várzea está sumindo das cidades” 1, fruto da especulação imobiliária, de um crescimento desordenado e que apenas privilegia o lucro, que marginaliza os pobres e caça deles o direito à cidadania plena, mas com um resultado certeiro: não há mais espaço para os campos que foram desde sempre “celeiros de craques”. Uma fonte invisível dos talentos que fizeram (décadas atrás) o país despontar como aquele no qual a prática do futebol fosse caracterizada por verdadeiros “estilistas” do jogo, que se praticava quase espontaneamente em todos os cantos… Basta um minuto de atenção ao lado de qualquer campo de várzea para se perceber quantos gestos tecnicamente difíceis são feitos com desenvoltura por jovens e crianças que nunca passaram por formação específica. No país que conta com o maior número de praticantes, os campos de futebol vêm sendo substituídos, em bairros, universidades, etc. por estacionamentos, prédios e avenidas. É uma pena que ainda persista entre as candidaturas das esquerdas uma apreensão meramente negativa do futebol. Algo que precisa mudar, algo que precisa ser substituído por uma proposta ampla de auto-organização verdadeiramente popular, para o futebol e para além do esporte mais querido do Brasil!
Quem, como eu, foi criado a “uma cerca” de um campo de futebol, não tem dificuldades em apontar de onde vem a paixão futebolística. Perfaz a minha lembrança de criança o mítico “campinho da Vila São Paulo” (Goiânia) da década de 80, na rua 5 (os fundos da minha casa), verdadeira “Várzea”, uma vazante do rio Anicuns, que, de tempos em tempos, enchia nossas casas e pior, bem pior, deixava o campo impróprio para o futebol “normal” (embora praticássemos na lama mesmo uma espécie diferente de futebol, sem regras e com a “falta” como centro. Incrível que a gente não se machucasse a sério…). Ali fazíamos as traves de Bambu e jogávamos com toda espécie de bola, desde as leves de “dente de leite” até as de “capotão”, pesadas e doídas nas costas, principalmente se molhadas.
Mas a vontade da maioria era mesmo jogar no “campão” da Vila São José, uma espécie de “divisão superior”, em dimensões e traves oficiais, com rede no gol, o que faz toda a diferença, era um terrão vermelho onde jogavam os times da Vila São Paulo. Dois principais, o São Paulino, que era dirigido pelo meu tio, Otaviano de Ázara, e o Time dos Primos, para quem do pescoço pra baixo sempre foi canela. Mas também de outros bairros, da Vila São José, Setor Perin, e adjacências. Época em que campeonatos amadores eram fortes e reuniam toda a região em torno destes verdadeiros estádios amadores. Hoje nem o “campinho” da Vila São Paulo, nem o “campão” da São José existem mais, e, longe de ser exceções, sua desaparição é a regra. Os novos bairros de periferia (hoje a periferia é muito mais longe) já nascem sem seus campos e, quando muito, tem uma quadra para ser dividida por milhares de moradores. As classes médias podem jogar em campos pagos, por isso o problema fica invisível.
No clássico O negro no futebol brasileiro, Mário Filho nos lembra que a origem do termo “pelada” vem destes campos sem grama, sem arquibancada, onde os negros e os brancos pobres aprendiam a jogar um esporte que até então era dedicado à elite 2. A pelada foi a origem invisível de muitos craques do futebol, em um tempo ainda anterior às “escolinhas de futebol”, pagas, rentáveis e fontes de diversas trapaças e abusos contra famílias e crianças que sonham em jogar profissionalmente o futebol.3. E não é raro encontrar ainda hoje jogadores que não passaram pelas categorias de base dos clubes, foram ficando escanteados e por fim brilharam no profissional, caso de destaque é o de Bruno Henrique, hoje no Flamengo, que dividia seu tempo como “office boy” e as peladas até os 21 anos e quase desistiu da carreira profissional.4 Os casos são muitos. As peladas foram nossa “categoria de base” pré-capitalista!
O fim das Várzeas, das Peladas, para além da perda do espaço de livre socialização comunitária, é, por outro lado, também a perda de espaços de organização popular, os clubes amadores, as associações de clubes, as ligas, os campeonatos auto-organizados pelo povo pobre das periferias. Nos idos dos anos 80 e 90, aos domingos pela manhã na periferia de Goiânia, o programa era de pé e no sol, assistir aos campeonatos do “Monte Cristo” e do “Beira Rio” (claro que não era a beira do Guaíba, mas do Rio Cascavel!). Ali tudo era autogestão! A liga de clubes, a arbitragem, a premiação, tudo! É certo que de dois em dois anos aparecia um candidato a vereador, dava camisa, troféu, marcava o campo e pagava o “professor” (o homem do apito), que não tinha vida fácil, não raro saía corrido ou escoltado das quatro linhas…
Que me desculpem os peladeiros por pura diversão, origem e fundamento do amor pelo esporte no Brasil, mas o peladeiro, mesmo com toda a sua dignidade caneluda, tem pelo Futebol uma paixão eventual, de fim de semana, quando muito… Já o jogador amador ou de várzea, intermediário entre o piso dos praticantes formado pelo peladeiro e o topo dos profissionais super-pagos, é único em seu amor por esse esporte, que se torna para estes quase uma religião. Ou que outra razão faria alguém em sã consciência acordar as 6, 7 horas da manhã de um domingo de Sol e dirigir-se aos estádios amadores na várzea, onde todas as condições faltam, desde a marcação das linhas até as traves, e jogar com a felicidade de um Ronaldinho Gaúcho, mesmo quando seu time é um desastre?!
Com o peladeiro o jogo é só ludicidade, gratuidade em todos os sentidos, experiência de craque ou de “pereba” que se paga a si mesma pela fruição do jogo. Com o profissional ele é distração que gera lucro, que encanta os fãs, que boquiabertos nem percebem as engrenagens de mercado que movem cada chute do craque. No extremo oposto da gratuidade do peladeiro e das “relações de valor” do profissional é onde habita a solidariedade da várzea, de onde não se tira nada, ao contrário, é invariavelmente fonte de prejuízos financeiros, que só são compensados por uma inexplicável e indizível certeza de pertença ao Futebol, porque o jogador de várzea só está em casa no interior das quatro linhas…
Referências
- http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2011/10/sp-celeiros-de-craques-campos-de-varzea-estao-sumindo-na-cidade.html
- “O branco pobre, o mulato, o preto, estabelecendo a diferença entre o grande e o pequeno clube. A Academia e a escola pública. O campo cercado, com arquibancada e tudo, e a pelada, um campo sem grama, pelado”. O negro do futebol brasileiro, pag. 73.
- https://www.cartacapital.com.br/blogs/futebol-por-elas/abuso-sexual-no-sonho-da-bola
- https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/24/deportes/1574617864_941952.html