Gramsci para principiantes [IV]

  1. Após o atentado de Anteo Zaniboni contra Mussolini, em Bolonha, o regime fascista decreta “medidas excepcionais”, em 8 de novembro de 1926. Gramsci e outros deputados comunistas são presos, a despeito de gozarem de imunidade parlamentar, junto com outros dirigentes do partido. Em 18 de dezembro, Gramsci é condenado, com base na Lei de Segurança Pública, a cinco anos de confinamento na Ilha italiana de Ústica. 
  1. Ústica é uma pequena ilha de oito quilômetros quadrados, com 1.600 habitantes, dos quais 500 ou 600 cumprindo penas por delitos comuns. Seis  desterrados cumpriam penas políticas, entre eles Gramsci e Bordiga, que, não obstante as antigas polêmicas, conviviam em clima de franca camaradagem.  Piero Sraffa, professor de economia política da Universidade de Cagliari, abriu uma conta em uma livraria de Milão, na qual Gramsci conseguia os livros que desejava ler. O sardo e o napolitano davam aulas para os outros detidos: Gramsci, de geografia e história; Bordiga, de ciências. 
  1. Em 14 de janeiro de 1927, o juiz Enrico Macis, do Tribunal Especial de Milão, reabre o processo contra Gramsci e emite um mandato de prisão contra ele, que,  ao cabo de 44 dias de desterro em Ústica, em 20 de Janeiro de 1927 é transferido para o presídio  milanês de San Vittore, onde chega em 7 de fevereiro. Em 9 de fevereiro foi interrogado pelo juiz.
  1. O comunista sardo escreve em carta de 19 de março à cunhada Tatiana: “Estou atormentado […] por esta ideia: de que é preciso fazer algo für ewig [para sempre].” Ele tem em mente o projeto dos Cadernos do Cárcere. Pede autorização para escrever, mas as autoridades carcerárias não a concedem.
  1. Em 28 de maio de 1928 começa o processo contra os dirigentes comunistas, entre eles Gramsci. Desse processo, ficou famoso o pronunciamento do promotor Michele Isgrô , referindo-se ao comunista sardo: “Devemos impedir este cérebro de funcionar durante vinte anos”.  A condenação foi pronunciada em 4 de junho: 20 anos, 4 meses e 5 dias de encarceramento. Devido à precariedade de seu estado de saúde, Gramsci foi internado na Casa Penal de Túri, a 30 km de Bári. Já estava preso há dois anos e quatro meses quando, em  fevereiro de 1929, obteve finalmente licença das autoridades carcerárias para escrever.
  1. O X Plenum do Comitê Executivo da IC, em julho, e o seu VI Congresso, que teve lugar de 7 de julho a 1 de setembro de 1928, implicam uma mudança brusca de rumo estratégico, com a qual Gramsci estava em desacordo. O VI Congresso abandona a política de ‘frente única’. Isso ocorria em meio à luta interna no partido russo e a refletia. Stalin, primeiro liquidara a oposição de ‘esquerda’, o bloco formado por Trotski, Zinoviev e Kamenev; agora, liquidava a oposição de ‘direita’, o bloco formado por Bukharin, Tomski e Rykòv. 
  1. Em 1926, Bukharin substituíra Zinoviev na Presidência da Internacional Comunista e desde então ocupava a posição dirigente. O VI Congresso da IC aboliu o cargo de presidente da Internacional. E a reunião do Comitê Central do partido russo de 23 de abril de 1928 excluiu Bukharin do Bureau Político do partido e do Presidium da IC. A nova linha da IC postulava os seguintes lineamentos: a catástrofe do capitalismo é iminente; os protestos proletários tendem a radicalizar num sentido revolucionário; a derrocada do fascismo deve ser seguida imediatamente pela ditadura do proletariado, sem fases intermediárias; a burguesia vale-se da socialdemocracia para deter o avanço revolucionário com o anteparo do social-fascismo. 
  1. A virada política da IC teve consequências no PCI: em setembro de 1929, Angelo Tasca é expulso do partido; e, em março de 1930, o Birô Político racha, com a expulsão dos dirigentes dissidentes. Em junho, Genaro, em visita ao irmão preso, informa-o dos fatos. Gramsci manifesta-lhe sua oposição. Mas Genaro transmite a Togliatti, então na direção do partido e alinhado à direção da IC, que Gramsci manifestara apoio às medidas. Interpelado sobre a razão que o levara a falsificar a opinião de Gramsci, Genaro explicou que foi para protegê-lo, pois se desse a conhecer a opinião do irmão, Antonio corria o risco de ser expulso do partido, provavelmente como trotskista (que era como eram tachados os que não se alinhavam à linha de Stalin). 
  1. No final de 1930, Gramsci participava de discussões políticas com os outros comunistas presos, mas o clima das divergências levou-o a interromper os debates. A animosidade chega a tal ponto que, um dia, passeando sozinho pelo pátio da prisão, ele é atingido por uma pedrada nas costas. Sente-se afrontado em sua dignidade de militante comunista. 
  1. Sua saúde se deteriorava. Em agosto de 1931, sofre uma crise grave, soltando inesperadamente uma golfada de sangue. Ele se dedicava a escrever os Cadernos, apesar dos transtornos causados por seu estado precário de saúde. Em 15 de setembro de 1932,  a cunhada Tatiana  encaminha uma petição ao Governo para que o preso receba a visita de um médico de sua confiança. Em 30 de janeiro de 1933, Gramsci desabafaria: “Há cerca de um ano e meio entrei em uma fase de minha vida que posso definir, sem exagero, como catastrófica.” 
  1. Em fevereiro de 1933, o governo acolhe a petição de Tatiana. Em 7 de março, ao levantar da cama, Gramsci cai no chão e não consegue se reerguer sozinho. Em julho, pede que Tatiana encaminhe com urgência uma petição para que ele seja transferido para a enfermaria de outra prisão. Em outubro, a petição é aceita e em 7 de dezembro ele é transferido para a clínica do Dr. Giuseppe Cucumano, em Fórmia, onde volta a ler, mas ainda não tem condições de escrever. 
  1. Em 25 de outubro de 1934 é promulgado o decreto que lhe concede a liberdade condicional. Dois dias depois, sai pela primeira vez para um passeio pelas ruas de Fórmia, acompanhado pela cunhada. Em junho de 1935 sofre uma nova crise. Em 24 de agosto é internado na clínica “Quisisana”, em Roma. Em abril de 1937, ganha a liberdade, mas na noite de 25 de  abril sofre um derrame cerebral e morre no dia 27.
  1. Na percepção de Leandro Konder, “o italiano Antonio Gramsci desenvolveu uma interpretação bastante original da filosofia de Marx. Para ele [Gramsci], a perspectiva do pensador alemão [Marx] era a de um ‘historicismo absoluto’”. Se Leandro estiver com a razão, pode-se estimar que Gramsci representa um “marxismo historicista”, muito distinto do “marxismo estruturalista”. Não obstante, Louis Althusser reconhece em Gramsci um papel singular na história do pensamento marxista. “Quem tentou realmente levar avante as explorações de Marx e Engels?” – questiona Althusser. E comenta: “Só me ocorre o nome de Gramsci”. 
  1. Como vimos, embora estivesse encarcerado desde 8 de novembro de 1927, só em fevereiro de 1929 Gramsci pode dar início a seus escritos. Escreveu enquanto seu estado de saúde permitiu. Datou de 8 de fevereiro o início de seu primeiro caderno.  Até sua transferência para a prisão de Civitravecchia, em novembro de 1933, redigiu,  de forma completa ou parcial, 21 cadernos. De fevereiro de 1929 a agosto de 1935, ou seja, em apenas seis anos, escreveu 2.848 páginas (o equivalente a 4 mil laudas datilografadas) de notas curtas e reflexões fragmentárias, agrupadas em 32 cadernos (21 dos quais começados em Turi),  que ele mesmo classificou em dois grupos: “miscelâneos” e “especiais”. Nos cadernos “especiais” (ou temáticos), Gramsci reagrupa por temas e eventualmente reescreve anotações retiradas dos cadernos de “miscelâneos”, ao lado de outros textos originais.
  1. Ao escrever os cadernos, Gramsci fez uma advertência: “As notas contidas neste caderno, como nos demais, foram escritas ao correr da pena, como rápidos apontamentos para ajudar a memória. Todas devem ser revistas e verificadas minuciosamente, já que certamente contêm inexatidões, falsas aproximações, anacronismos. Escritas sem ter presentes os livros a que se referem, é possível que, depois da verificação, tenham de ser radicalmente corrigidas, precisamente porque o contrário do que foi escrito é que é verdadeiro.”
  1. Nos Caderno do Cárcere, Gramsci deixa-se guiar por uma consideração muito significativa: “Na colocação dos problemas histórico-críticos, não se deve conceber a discussão científica como um processo judiciário, no qual há um réu e um promotor, que deve demonstrar, por obrigação de ofício, que o réu é culpado e digno de ser tirado de circulação. Na discussão científica, já que se supõe que o interesse seja a pesquisa da verdade e o progresso da ciência, demonstra ser mais ‘avançado’ quem se coloca do ponto de vista de que o adversário pode expressar uma exigência que deva ser incorporada, ainda que como um momento subordinado, na sua própria construção. Compreender e valorizar com realismo a posição e as razões do adversário (e o adversário é, em alguns casos, todo o pensamento passado) significa justamente estar liberto da prisão das ideologias ( no sentido pejorativo, de cego fanatismo ideológico), isto é, significa colocar-se em um ponto de vista ‘crítico’, o único fecundo na pesquisa científica.”
  1. A seguir, propomos selecionar alguns fragmentos dos Cadernos do Cárcere no intuito de organizar um roteiro de leitura coletiva  que visite os rudimentos das categorias gramscianas.
  • INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA FILOSOFIA

IDEOLOGIAS
SENSO COMUM OU BOM-SENSO
TEORIA E PRÁTICA

  • FILOSOFIA DA PRÁXIS

PRODUÇÃO DE NOVAS WELTANSCHAUUGEN
UNIDADE NOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO MARXISMO
VALIDADE DAS IDEOLOGIAS
ESTRUTURA E SUPERESTRUTURAS
O TERMO CATARSE
HEGEMONIA E IDEOLOGIA
GÊNESE DA FILOSOFIA DA PRÁXIS
“OBJETIVIDADE” DO CONHECIMENTO

  • OS INTELECTUAIS E A EDUCAÇÃO

PASSAGEM DO SABER AO COMPREENDER, AO SENTIR, E, VICE-VERSA, DO SENTIR AO COMPREENDER, AO SABER

  • A CIÊNCIA DA POLÍTICA

ELEMENTOS DE POLÍTICA
GRANDE POLÍTICA (ALTA POLÍTICA) –  PEQUENA POLÍTICA (POLÍTICA DO DIA A DIA, POLÍTICA PARLAMENTAR, DE CORREDOR, DE INTRIGAS)
SOBRE A VERDADE, OU SEJA, SOBRE DIZER A VERDADE EM POLÍTICA
O ESTUDO DAS SITUAÇÕES E DO QUE SE DEVE ENTENDER POR “RELAÇÕES DE FORÇA”
ANÁLISE DAS SITUAÇÕES: RELAÇÕES DE FORÇA
O NÚMERO E A QUALIDADE NOS REGIMES REPRESENTATIVOS
[FORMAÇÃO DA VONTADE COLETIVA] 

  • ESTADO E SOCIEDADE CIVIL

UM NOVO CONCEITO DE ESTADO
HEGEL E O ASSOCIATIVISMO
ESTADO GENDARME – GUARDA -NOTURNO ETC.
ESTADO ÉTICO OU DE CULTURA
O ESTADO “VEILLEUR DE NUIT”
ESTADO E SOCIEDADE REGULADA
SOCIEDADE CIVIL E SOCIEDADE POLÍTICA
[ESTADO, PARTIDO E CLASSES SUBALTERNAS] CRITÉRIOS DE MÉTODO
ESTATOLATRIA
A INICIATIVA INDIVIDUAL

  • HEGEMONIA, GUERRA DE  MOVIMENTO, GUERRA DE POSIÇÃO

SUPREMACIA, DIREÇÃO E DOMÍNIO
FORÇA E CONSENSO
[SOBRE A ”CRISE DE AUTORIDADE”]
HEGEMONIA E DEMOCRACIA
CONCEITO POLÍTICO DA CHAMADA “REVOLUÇÃO PERMANENTE”
LUTA POLÍTICA E GUERRA MILITAR
POLÍTICA E ARTE MILITAR
PASSAGEM DA GUERRA MANOBRADA E DO ATAQUE FRONTAL) À GUERRA DE POSIÇÃO TAMBÉM NO CAMPO POLÍTICO
GUERRA DE POSIÇÃO E GUERRA MANOBRADA OU FRONTAL
SOBRE A COMPARAÇÃO ENTRE OS CONCEITOS DE GUERRA MANOBRADA E GUERRA DE POSIÇÃO NA ARTE MILITAR E OS CONCEITOS CORRESPONDENTES NA ARTE POLÍTICA

  • O PARTIDO POLÍTICO

O MODERNO PRINCÍPE E O PARTIDO POLÍTICO
SOBRE O CONCEITO DE PARTIDO POLÍTICO
[SOBRE O PARTIDO POLÍTICO]
OBSERVAÇÕES SOBRE ALGUNS ASPECTOS DA ESTRUTURA DOS PARTIDOS POLÍTICOS NOS PERÍODOS DE CRISE ORGÂNICA
QUANDO SE PODE DIZER QUE UM PARTIDO ESTÁ FORMADO E NÃO PODE SER DESTRUÍDO POR MEIOS NORMAIS
ESPONTANEIDADE E DIREÇÃO CONSCIENTE
CENTRALISMO ORGÂNICO E CENTRALISMO DEMOCRÁTICO. DISCIPLINA

  • REVOLUÇÃO PASSIVA, TRANSFORMISMO, CESARISMO

O CONCEITO DE “REVOLUÇÃO PASSIVA”
SOBRE A REVOLUÇÃO PASSIVA
O TRANSFORMISMO
[REVOLUÇÃO-RESTAURAÇÃO E REVOLUÇÃO PASSIVA]
[REVOLUÇÃO PASSIVA E GUERRA DE POSIÇÃO]
[FASCISMO COMO REVOLUÇÃO PASSIVA]
O CESARISMO

  • AMERICANISMO E FORDISMO 

A CRISE
O FORDISMO 
SOBRE A QUEDA TENDENCIAL DA TAXA DE LUCRO

  • CULTURA, ARTE LITERATURA

[NACIONAL-POPULAR, HUMANISMO, HISTORICISMO]
CONCEITO DE “NACIONAL-POPULAR”

Vamos nos restringir aqui a propor, como uma prévia dessa leitura coletiva, o estudo do texto a seguir:

ANÁLISE DAS SITUAÇÕES: RELAÇÕES D E FORÇA

É o problema das relações entre estrutura e superestrutura que deve ser posto com exatidão e resolvido para que se possa chegar a uma justa análise das forças que atuam na história de um determinado período e determinar a relação entre elas. É necessário mover-se no âmbito de dois princípios: 1) o de que nenhuma sociedade põe tarefas para cuja solução ainda não existam as condições necessárias e suficientes, ou que pelo menos não estejam em vias de aparecer e se desenvolver; 2) e o de que nenhuma sociedade se dissolve e pode ser substituída antes que se tenham desenvolvido todas as formas de vida implícitas em suas relações (verificar a exata enunciação destes princípios).  […]

Da reflexão sobre estes dois cânones pode-se chegar ao desenvolvimento de toda uma série de outros princípios de metodologia histórica. Todavia, no estudo de uma estrutura, devem-se distinguir os movimentos orgânicos (relativamente permanentes) dos movimentos que podem ser chamados de conjuntura (e que se apresentam como ocasionais, imediatos, quase acidentais). Também os fenômenos de conjuntura dependem, certamente, de movimentos orgânicos, mas seu significado não tem um amplo alcance histórico: eles dão lugar a uma crítica política miúda, do dia a dia, que envolve os pequenos grupos dirigentes e as personalidades imediatamente responsáveis pelo poder. Os fenômenos orgânicos dão lugar à crítica histórico-social, que envolve os grandes agrupamentos, para além das pessoas imediatamente responsáveis e do pessoal dirigente. Quando se estuda um período histórico, revela-se a grande importância dessa distinção. Tem lugar uma crise que, às vezes, prolonga-se por dezenas de anos. Esta duração excepcional significa que se revelaram (chegaram à maturidade) contradições insanáveis na estrutura e que as próprias estruturas esforçam-se para saná-las dentro de certos limites e superá-las. Estes esforços incessantes e perseverantes (já que nenhuma forma social jamais confessará que foi superada) formam o terreno do “ocasional”, no qual se organizam as forças antagonistas que tendem a demonstrar (demonstração que, em última análise, só tem êxito e é ‘verdadeira” se se torna nova realidade, se as forças antagônicas triunfam, mas que imediatamente se explicita numa série de polêmicas ideológicas, religiosas, filosóficas, políticas, jurídicas etc., cujo caráter concreto pode ser avaliado pela medida em que se tornam convincentes, necessárias e suficientes para que determinadas tarefas possam e, portanto, devam ser resolvidas historicamente (devam, já que a não realização do dever histórico aumenta a desordem necessária e prepara catástrofes mais graves).

O erro em que se incorre frequentemente nas análises histórico-políticas consiste em não saber encontrar a justa relação entre o que é orgânico e o que é ocasional: chega-se assim ou a expor como imediatamente atuantes causas que, ao contrário, atuam mediatamente, ou a afirmar que as causas imediatas são as únicas causas eficientes. Num caso, tem-se excesso de “economicismo” ou de doutrinarismo pedante; no outro, excesso de ideologismo.  Num caso, superestimam-se as causas mecânicas; no outro, exalta-se o elemento voluntarista e individual. (A distinção entre “movimentos” e fatos orgânicos e movimentos e fatos de “conjuntura” ou ocasionais deve ser aplicada a todos os tipos de situação, não só àquelas em que se verifica um processo regressivo ou de crise aguda, mas àquelas em que se verifica um processo progressista ou de prosperidade e àquelas em que se verifica uma estagnação das forças produtivas.) O nexo dialético entre as duas ordens de movimento e, portanto, de pesquisa dificilmente é estabelecido de modo correto; e, se  o erro é grave na historiografia, mais grave ainda se torna na arte política, quando se trata não de reconstruir a história passada, mas de construir a história presente e futura: os próprios desejos e as próprias paixões baixas e imediatas constituem a causa do erro, na medida em que substituem a análise objetiva e imparcial e que isto se verifica não como “meio” consciente para estimular a ação, mas como autoengano. O feitiço, também neste caso, se volta contra o feiticeiro, ou seja, o demagogo é a primeira vítima de sua demagogia. […]

Estes critérios metodológicos podem adquirir visível e didaticamente todo o seu significado quando aplicados ao exame de fatos históricos concretos. […] Um aspecto do mesmo problema é a chamada questão das relações de força. Lê-se com frequência, nas narrações históricas, a expressão genérica: relações de força favoráveis, desfavoráveis a esta ou à aquela tendência. Assim, abstratamente, esta formulação não explica nada ou quase nada, pois não se faz mais do que repetir o fato que se deve explicar, apresentando-o uma vez como fato e outra como lei abstrata e como explicação. Portanto, o erro teórico consiste em apresentar um princípio de pesquisa e de interpretação como “causa histórica”, 

Na “relação de força”, é necessário distinguir diversos momentos ou graus, que no fundamental são os seguintes:

  1. Uma relação de força de forças sociais estreitamente ligada à estrutura, objetiva, independente da vontade dos homens, que pode ser mensurada com os sistemas das ciências exatas ou físicas. Com base no grau de desenvolvimento das forças materiais de produção, têm-se os agrupamentos sociais, cada um dos quais representa uma função e ocupa uma posição determinada na própria produção. Esta relação é o que é, uma realidade rebelde: ninguém pode modificar o número das empresas e de seus empregados, o número das cidades com sua dada população urbana etc. Este alinhamento fundamental permite estudar se existem na sociedade as condições necessárias e suficientes para uma sua transformação, ou seja, permite verificar o grau de realismo e de viabilidade das diversas ideologias que nasceram em seu próprio terreno, no terreno das contradições que ela gerou durante o seu desenvolvimento.
  2. O momento seguinte é a relação das forças políticas, ou seja, a avaliação do grau de homogeneidade, de autoconsciência e de organização alcançado pelos vários grupos sociais.  Este momento, por sua vez, pode ser analisado e diferenciado em vários graus, que correspondem aos diversos momentos da consciência política coletiva, tal como se manifestaram na história até agora. O primeiro e mais elementar é o econômico-corporativo: um comerciante sente que deve ser solidário com outro comerciante, um fabricante com outro fabricante etc., mas o comerciante não se sente ainda solidário com o fabricante; isto é, sente-se a unidade homogênea do grupo profissional e o dever de organizá-la, mas não ainda a unidade do grupo social mais amplo. Um segundo momento é aquele em que se atinge a consciência da solidariedade de interesses entre todos os membros do grupo social, mas ainda no campo meramente econômico. Já se põe neste momento a questão do Estado, mas apenas no terreno da obtenção de uma igualdade político-jurídica com os grupos dominantes, já que se reivindica o direito de participar da legislação e da administração e mesmo de modificá-las, de reformá-las, mas nos quadros fundamentais existentes. Um terceiro momento é aquele em que se adquire a consciência de que os próprios interesses corporativos, em desenvolvimento atual e futuro, superam o círculo corporativo, de grupo meramente econômico, e podem e devem tornar-se os interesses de outros grupos subordinados. Esta é a fase mais estritamente política, que assinala a passagem nítida da estrutura para a esfera das superestruturas complexas; é a fase em que as ideologias geradas anteriormente se transformam em “partido”, entram em confrontação e lutam até que uma delas, ou pelo menos uma única combinação delas, tenda a prevalecer, a se impor, a se irradiar por toda a área social, determinando, além da unicidade dos fins econômicos e políticos, também a unidade intelectual e moral, pondo todas as questões em torno das quais ferve a luta não no plano corporativo, mas num plano “universal”, criando assim a hegemonia de um grupo social fundamental sobre uma série de grupos subordinados. O Estado é certamente concebido como organismo próprio de um grupo, destinado a criar as condições favoráveis à expansão máxima desse grupo, mas este desenvolvimento e esta expansão são concebidos e apresentados como a força motriz de uma expansão universal, de um desenvolvimento de todas as energias “nacionais”, isto é, o grupo dominante é coordenado concretamente com os interesses gerais dos grupos subordinados e a vida estatal é concebida como uma contínua formação e superação de equilíbrios instáveis (no âmbito da lei) entre os interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados, equilíbrios em que os interesses do grupo dominante prevalecem, mas até um determinado ponto, ou seja, não até o estreito interesse econômico-corporativo. Na história real, estes momentos implicam-se reciprocamente, por assim dizer horizontal e verticalmente, isto é, segundo as atividades econômico-sociais (horizontais) e segundo os territórios (verticalmente), combinando-se e cindindo-se de modo variado: cada uma destas combinações pode ser representada por uma própria expressão organizada econômica e política. Deve-se ainda levar em conta que estas relações internas de um Estado-Nação entrelaçam-se com as relações internacionais, criando novas combinações originais e historicamente concretas. Uma ideologia, nascida num país mais desenvolvido, difunde-se em países menos desenvolvidos, incidindo no jogo local das combinações. […] Esta relação entre forças internacionais e forças nacionais torna-se ainda mais complexa por causa da existência, no interior de cada Estado, de várias seções territoriais com estruturas diferentes e diferentes relações de força em todos os graus […].
  3. O terceiro momento é o da relação das forças militares, imediatamente decisivo em cada oportunidade concreta. (O desenvolvimento histórico oscila  continuamente entre o primeiro e o terceiro momento, com a mediação do segundo.) Mas também esse momento não é algo indistinto e identificável imediatamente de forma esquemática, também nele  se podem distinguir dois graus: o militar em sentido estrito, ou técnico-militar, e o grau que pode ser chamado de político-militar. No curso da história, estes dois graus se apresentaram numa grande variedade de combinações. Um exemplo típico, que pode servir como demonstração-limite, é o da relação de opressão militar de um Estado sobre uma nação que procura alcançar sua independência estatal. A relação não é puramente militar, mas político-militar: com efeito, este tipo de opressão seria inexplicável sem o estado de desagregação social do povo oprimido e a passividade de sua maioria. Portanto, a independência não poderá ser alcançada com forças puramente militares, mas com forças militares e político-militares. De fato, se a nação oprimida, para iniciar a luta pela independência, tivesse de esperar a permissão do Estado hegemônico para organizar seu próprio exército no sentido estrito e técnico da palavra, teria de esperar bastante tempo (pode ocorrer que a reivindicação de ter um exército próprio seja concedida pela nação hegemônica, mas isto significa que uma grande parte da luta já foi travada e vencida no terreno político-militar). A nação oprimida, portanto, oporá inicialmente à força militar hegemônica uma força que que é apenas “político-militar”, isto é, oporá uma forma de ação política que tenha a virtude de determinar reflexos de caráter militar, no sentido de que: 1) seja capaz de desagregar intimamente a eficiência bélica da nação hegemônica; 2) obrigue a força militar hegemônica a diluir-se e dispersar-se num grande território, anulando grande parte de sua eficiência bélica. […]

Outra questão ligada às anteriores é a de ver se as crises históricas fundamentais são determinadas imediatamente pelas crises econômicas. A resposta a essa questão está implicitamente contida nos parágrafos anteriores, onde são tratadas questões que constituem um outro modo de apresentar aquela questão a que nos referimos agora; mas é sempre necessário, por razões didáticas, dado o público específico, examinar cada modo sob o qual se apresenta uma mesma questão como se se tratasse de um problema independente e novo. Pode-se excluir que, por si mesmas, as crises econômicas imediatas produzam eventos fundamentais; podem  apenas criar um terreno mais favorável à difusão de determinados modos de pensar, de pôr e de resolver as questões que envolvem todo o curso subsequente da vida estatal. De resto, todas as afirmações referentes a períodos de crise ou de prosperidade podem dar margem a juízos unilaterais. […] A questão particular do mal-estar ou do bem-estar econômicos como causa de novas realidades históricas é um aspecto parcial da questão das relações de força em seus vários graus. Podem-se produzir novidades ou porque uma situação de bem-estar é ameaçada pelo egoísmo adversário, ou porque o mal-estar se tornou intolerável e não se vê na velha sociedade nenhuma força capaz de mitigá-lo e de restabelecer uma normalidade através de meios legais. Pode-se dizer, portanto, que todos estes elementos são a manifestação concreta das flutuações de conjuntura do conjunto das relações sociais de força, em cujo terreno verifica-se a transformação destas relações em relações de políticas de força, para culminar na relação militar decisiva. Se não se verifica este processo de desenvolvimento de um momento a outro – trata-se essencialmente de um processo que tem como atores os homens e a vontade e capacidade dos homens -, a situação se mantém inoperante e podem ocorrer desfechos contraditórios: a velha sociedade resiste e garante para si um período de “tomada de fôlego”, exterminando fisicamente a elite adversária e aterrorizando as massas de reserva; ou, então, verifica-se a destruição recíproca das forças em conflito com a instauração da paz dos cemitérios, talvez sob a vigilância de um sentinela estrangeiro.

Mas a observação mais importante a ser feita sobre qualquer análise concreta das relações de força é a seguinte: tais análises não podem e não devem ser fins em si mesmas (a não ser que se trate de escrever um capítulo da história do passado), mas só adquirem um significado se servem para justificar uma atividade prática, uma iniciativa de vontade. Elas mostram quais são os pontos de menor resistência, nos quais a força pode ser aplicada de modo mais frutífero, sugerem as operações táticas imediatas, indicam a melhor maneira de empreender uma campanha de agitação política, a linguagem que será mais bem-compreendida pelas multidões etc. O elemento decisivo de cada situação é a força permanentemente organizada e há muito tempo preparada, que se pode fazer avançar quando se julga que uma situação é favorável (e só é favorável na medida em esta força exista e seja dotada de ardor combativo). Por isso, a tarefa essencial consiste em dedicar-se de modo sistemático e paciente a formar esta força, desenvolvê-la, torná-la cada vez mais homogênea, compacta e consciente de si. Isso pode ser comprovado na história militar  e no cuidado com que, em qualquer época, os exércitos estiveram preparados para iniciar uma guerra a qualquer momento. Os grandes Estados foram grandes Estados precisamente porque sempre estavam preparados para inserir-se eficazmente nas conjunturas internacionais favoráveis; e essas eram favoráveis porque havia a possibilidade concreta de inserir-se eficazmente nelas.

Bibliografia:

COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. Porto Alegre: L&PM, 1981.

COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

COUTINHO, Carlos Nelson (org.). O leitor de Gramsci: escritos escolhidos 1916-1935. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2011.

FIORI, Giuseppe. A vida de Antonio Gramsci; tradução de Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

LAJOLO, Laurana. Antonio Gramsci: uma vida; tradução Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1982. 

LIGUORI, Guido e VOZA, Pasquale (orgs.). Dicionário Gramsciano (1926-1937). São Paulo: Boitempo, 2017.

Sergio Granja

Carioca de 1948. Iniciou sua militância em 1965, no PCB. Foi da ALN e exilado político. É mestre em Literatura Brasileira e professor aposentado do Estado do Rio de Janeiro.

Um comentário sobre “Gramsci para principiantes [IV]

  • 4 de setembro de 2020 at 8:09 pm
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    Excelente texto sobre um intelectual de maior grandeza.

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