HERÓIS

“(…) me assemelho aos que na guerra fazem mais que simplesmente refletir o medo coletivo.”
[Parteum, Breve – Entressafra (2005)]

Em tempos em que as situações de catástrofes são latentes e, ao mesmo tempo, aumentam tanto no nível da realidade quanto no do imaginário popular (como ideologia), a luz opaca no fim do túnel se apresenta como pessoa corpórea, real, de carne e osso transmutada em herói. É ele – invariavelmente homem – que traz consigo todas as soluções para o mundo tornado cinza e escombros. Ele é, em tese ideológica, o Weltgeist, o Espírito do Mundo que carrega em si toda a potência gerada pela história social que esteve, até então, encubada e encurralada, sem escape. 

De antemão, a população sempre atenta aos movimentos da superfície da realidade sabe quem são os potenciais heróis, os protagonistas possíveis da resolução das contradições em palco. Nos filmes e séries atuais – que lotam cinemas ou enriquecem plataformas de streaming –, desde o primeiro ato os espectadores, sempre atentos e plenamente conscientes, sabem quem será o herói, aquele que salvará, no último ato, a humanidade da barbárie completa – ainda que a humanidade seja somente si próprio. Ele é o signo da redenção. No caso dos filmes e séries, quaisquer desvios sem compensações, quando o herói eleito a priori morre ou sai de cena, rende déficits, em cifras milionárias, aos produtores. O bom produtor/diretor das séries, especialmente, sabe que não se deve escrever o enredo mais que a metade. A parte restante deve ser redigida a toque de caixa, de acordo com o calor do público, mensurando suas emoções e delas fazendo o metro pelo qual se mede a renda e o sucesso. Nos filmes, por sua vez, qualquer que não tenha um herói – ou um coletivo de heróis que luta contra a barbárie encarnada em algo esdrúxulo, disforme e perverso –, de cara está fadado ao alternativo cult ou ao fracasso de renda (que é o fracasso total) e ao esquecimento. 

A lógica parece simples, apesar de esconder atrás de si toda a complexidade das relações em voga: destrói-se a cidade, a moral individual – colocando os indivíduos, como se diz no popular, abaixo de cachorro –, o mundo e etc. para salvar o que restar de tudo isso. A questão é: o que resta? Invariavelmente sobram escombros por todos os lados e, destoando, resta algo singular elevado à categoria que garante o universal – um prédio, uma quadra, uma mulher, um totem. Destrói-se o mundo para salvar o mundo. Os heróis, nesse cenário devastado, são aqueles que não salvam nada, mas que no decorrer construíram uma narrativa da salvação e a apresentam ao final, concretizada em algo irrisório e que antes não possuía qualquer valor. Qualquer filme, série ou interpretação do real que destoe disso é rechaçada de pronto, sem sobrevida. 

Ainda há um elemento, às vezes não tão aparente, que cerca e doa vida e sentido à toda a narrativa da realidade e da ficção. Sem relação direta ou correlação com os fatos elencados no processo social e histórico, surgem como os promotores da justiça, da verdade e da destruição “de tudo isso aí que está aí” – pois é disso, no fundo, que se trata: destruir todo o fato consumado que representa, na visão popular e pela sagacidade heroica, a catástrofe. Aparecem no final dos atos com toda a força imaginária concedida pelo desespero frente à própria catástrofe: Deus ex machina. Sem contexto, ele aparece no último ato com a solução perfeita final, mirabolante e improvável, que, contudo, amarra tudo como se fizesse sentido a partir da luz fria que emana de sua cabeça oca e a tudo e todos ilumina – ou, como consolação, representa pelo discurso sua iluminação. 

Ao mesmo tempo, na situação de indefinição e catástrofe vivida, uma grande parte quer ser herói de si e do mundo, trazendo ideias bárbaras e mirabolantes que solucionariam o mundo como num passe de mágica, mais incrível que barão de Münchausen tirando a si mesmo da lama ao se puxar para o alto pelos cabelos. Todos são e compõe a terceira via – que é, tal como são a primeira e a segunda, um composto de nada. 

Na Poética, Aristóteles define, em linhas gerais, os Deuses ex machina: aparecem no último ato, surgidos como ex nihilo (do nada), e resolvem aquilo que parecia, até então, não ter solução lógica visto o enredo. Não é preciso dizer que Aristóteles considerava ruim tal artifício nas Tragédias gregas. Na atual situação, os heróis Deuses ex machina surgem ou do céu estrelado do imaginário popular – que vê o céu olhando para baixo, para as poças de lama em que se chafurdam – ou do chorume escorrido do caminhão do lixo – ou, alternativamente, do mais baixo círculo do inferno dantesco. 

Os heróis Deuses ex machina despontam, como nas más Tragédias, no último ato do processo-enredo da Nova República para salvar tudo e todos com um ato mágico, destruindo tudo isso aí que está aí – mas sem programa de reconstrução que não seja a tergiversação de suas narrativas. O que vale é seu discurso vazio, pois nada contém, tal como sua luz fria que irradia, cegando a todos que se deixam cegar. Uma situação na qual a todo momento despontam heróis é uma que deixou de ser captável racionalmente. Os tais heróis são tecnocratas-máquinas – quando não lunáticos realistas – que tratam o mundo pelo cálculo frio e louco, como sua luz, e prometem – sabe-se lá como! – resolver a equação. 

A situação de barbárie não se apresenta somente por bombas caindo do céu como gotas de chuva ácida e campos de concentração nos quais se diz, de entrada, que “o trabalho liberta”. Ela, a barbárie, pode parecer sensata em momentos em que nada lhe escapa; pode aparecer como solução quando, pela falta de visão coletiva, parece o mais alto nível da racionalidade. É fruto do medo e do desespero conjugados. Numa situação como essa, somente heróis e seus superpoderes acima de todos podem dar alento ao processo histórico. No fundo, os heróis são o Exército de Brancaleone que, no entanto, se veem refletidos no espelho como Vingadores. Em todo caso, Brancaleone, diferente de nossos heróis, tinha alguma ética decadente a salvar.

Resistência Popular

Núcleo PSOL - Resistência Popular, Brás, São Paulo

Vinicius dos Santos Xavier

Militante marxista desde o início dos anos 2000, Professor de filosofia da rede estadual de São Paulo, integrante do grupo de estudos “Repensando o Desenvolvimento”, do LABIEB-USP no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

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