Jeferson Tenório: o Rio Grande do Sul como um Mississipi nos Pampas

O jovem ficcionista carioca Jeferson Tenório, 43, radicado no Rio Grande do Sul, abiscoitou o patronato da 66ª Feira do Livro de Porto Alegre – 2020, em versão virtual, depois de ter reclamado, com razão, que jamais um escritor negro conhecera aquela distinção. A Feira do Livro fica ainda devendo homenagem, mesmo póstuma, ao brilhante poeta negro rio-grandense Oliveira Silveira. Por essas coisas da vida, Jeferson Tenório acaba de conceder entrevista ao portal negro Geledes praticamente apresentando o estado sulino como uma espécie de Mississipi nos pampas, idéia que vem correndo solta através do país.

No Brasil, as propostas políticas para o sempre insuficiente combate anti-racista se multiplicam, não raro contraditoriamente. Nos últimos tempos, lideranças e intelectuais negros, sobretudo de classe média, abraçam, como o norte político-ideológico, as orientações históricas ianques, difundidas pela ala negra do Partido Democrático. E isso apesar delas, após mais de meio século de aplicação e impugnação por lideranças classistas negro-estadunidenses, tendo fracassado fragorosamente no que se refere à grande população negra, consolidando a situação que levou às jornadas que se seguiram ao brutal assassinato de George Floyd, em maio deste ano. O que se propõe lá replica comumente aqui, não raro em péssima tradução.

Nas atuais eleições, o viés identitário negro assumiu caráter avassalador. Festeja-se agora como vitória histórica a eleição de alguns vereadoras e vereadores negros, apesar de, por um lado, a direita mais conservadora ter abiscoitado gulosa o pleito e, por outro, a oposição e a esquerda, semi-rendidas e pacificadas, terem conhecido uma de suas maiores derrotas. Sugere-se que, mais algumas eleições, será alcançada a glória, triplicando-se eventualmente o número de representantes parlamentares negros, enquanto o país e as classes populares, com destaques para as afro-descendentes, sob o tacão golpista, desaparecem pelo ralo sujo no qual já mergulhamos.

No Mundo da Fantasia

Não raro, do anti-racismo, se desliza para leituras conservadoras quase racistas e mesmo racistas de nossa sociedade. Propõe-se que o inimigo e o explorador do negro seja o branco, seja lá quem ele for, do mais rico ao mais miserável. Festeja-se o sucesso de um negro, mesmo quando pisa sobre o pescoço da população. Há dias, fui censurado em postagem do Facebook que festejava Barak Obama e consorte, por lembrar que fora na sua presidência que se prepararam o golpe de Estado no Brasil, de 2016, no Paraguai, em Honduras, no Equador, etc. Para não falar da destruição do Estado líbico, com a restauração virtual do comércio negreiro em versão moderna naquele país estilhaçado, do golpe na Ucrânia e por aí vai. Para meu censor, o que importava era que o ex-presidente e sua cara-metade são negros, lindos, ricos e poderosos, apesar de marcharem sobre as classes populares nos USA e através do mundo.

Mesmo com os avanços fabulosos dos estudos sobre a escravidão colonial, o colonialismo e a África Negra, abandona-se a história pela fantasia, sempre em viés anti-popular. O negro brasileiro não descende mais do trabalhador escravizado, hoje motivo de vergonha, apesar de ele ter sido o demiurgo acorrentado da sociedade brasileira. No Facebook, a seguinte postagem tem acolhida delirante: “(…) negros não são descendentes de escravos, como dizem os livros escolares. São descendentes de civilizações africanas, de reinados fortes e poderosos. (…) de reis, rainhas, príncipes e princesas. São parentes de homens e mulheres que desenvolveram a escrita, a astrologia, as ciências e as pirâmides. (…).” Ao ler tal sandice lembrei-me da querida tia Ofelia de minha companheira. Ela trabalhou duramente quase toda a vida como cozinheira em Washington e, ao voltar à Ligúria, na Itália, sua terra natal, poucos anos antes de morrer, comprou pelo correio um brazão ducal com o nome da família e passou a jurar que todos descendiam de aristocratas! E isso que o sobrenome familiar sugeria a origem popular de carvoeiros!

Um acadêmico negro, Lourenço Cardoso, acaba de declarar guerra aberta aos acadêmicos e orientadores “brancos”: “A inteligência negra (sic) chega na academia, passa a disputar os mercados totalmente pertencentes aos brancos.” E como os “negros possuem (….) maior profundidade e qualidade” nas questões tidas como identitárias, em uma “disputa justa com o negro ele(s) perderia(m)”. E, “ante um provável prejuízo econômico e de prestígio, o branco se protege”, passando a sabotar o orientando e o colega negro, através do “pacto narcisístico”, chamando apenas brancos para “espaços de difusão jornalística, cultura, científica, etc.”

Prestígio e Riqueza

Ao menos o jovem Lourenço Cardoso é honesto. Deixa claro que vê a vida acadêmica como espaço de luta furiosa pela remuneração econômica e o prestigio. No que, temos que convir, não está sozinho. Mas o que assombra é sua visão simplista, simplória e bi-cromática da Academia, habitada apenas por brancos e negros. Vivi quase meio século no eco-sistema acadêmico, onde constatei enorme diversidade biológica-cultural, já que habitado, entre outros, por idealistas, ecléticos, weberianos, marxistas, neo-kantianos, hegelianos tardios, populistas, racistas, epistemologistas. Para não falar dos totalmente desubicados e dos quase ausentes! Aterroriza-me que o darwinista-social Lourenço Cardoso chegue algum dia à posição de orientador. Vai jantar seus orientandos!

Com mais de sessenta orientações de doutoramento e mestrado oficiais e por de baixo do poncho, em boa parte sobre a escravidão colonial e a África Negra Pré-Colonial, nos orientando que alcançaram os merecidos sucessos vi a materialização do meu sucesso. O que sempre deprimiu meu “reflexo narcisístico” foram os (poucos) que me alugaram por dois e mais anos e terminaram não cumprindo o que prometeram ou prometiam, sem razões justificáveis! Ester B. Gutierrez se transformou na principal especialista na arquitetura escravista pelotense. Euzébio Assumpção escreveu clássico sobre as charqueadas de Pelotas. Solimar Oliveira Lima abiscoitou o Prêmio Açoriano em 1998 com trabalhar luminar sobre os castigos bestiais de cativos no Sul. Eduardo Ramon Palermo é o principal historiador da escravidão uruguaia.

Ana Regina Simão, Adelmir Fiabani, Adriano Viaro, Beatriz Eifert, Marilia Conforto, Valéria Zanetti, Jose Lucio da Silva Machado, Lucas Caregnato, Leandro Jorge Daronco, Maurício Lopes Lima, Setembrino Dal Bosco, Zilda Alves de Moura foram outros meus orientando que abordaram a escravidão colonial e produziram em geral trabalhos de grande valor. Para não falar nos que brilharam estudando a economia colonial camponesa no sul do Brasil e, recentemente, a História da Guerra da Tríplice Aliança. Todos eles me superaram nos trabalhos que fizeram, como é natural na produção científica, pois é disso que se trata.

Podem até me acusar de exibir meus orientados, para me exibir. Mas jamais de “cancelá-los”. Como tantos meus colegas, vejo neles espécies de filhos, nossos únicos arremedos de micro-eternidade. Orientandos, assinalo, que em geral se transformaram em amigos e colegas solidários, mesmo distantes, alguns brancos como a aspirina, outros pardos claros ou mais escuros, alguns (poucos) negros pretos e, até mesmo, um meio japonês, de simpatia única.

Rio Grande do Sul: As Raízes do Racismo

Mas quero voltar a Jeferson Tenório e ao RS, para tentar sintética restauração histórica, para além das fantasmagorias que pululam, como erva daninha em roça abandonada, colocando-o como a grande a pátria do racismo extremado no Brasil, devido às suas fortes raízes coloniais camponesas européias. E o faço com tranquilidade. Ao menos no Rio Grande do Sul e entre os especialistas não serei acusado de regionalismo e de tradicionalista, vertentes ideológico-culturais conservadoras nas quais tenho pisado forte, sempre.

Sei que não seria acusado, coisa ainda pior, de renegar o forte racismo anti-negro sulino, que não nasceu e vicejou fortemente com a imigração colonial camponesa européia, como sugere o ficcionista carioca radicado no Rio Grande do Sul. O racismo sulino assenta, ao contrário, como em outras regiões do Brasil, suas mais profundas raízes no importante passado escravista sul-rio-grandense, até algumas décadas negado e semi-ignorado. Realidade sobre a qual me debrucei, criticando o mito da “província branca” e da “democracia pastoril”, já fazem quase meio século, quando a história da escravidão colonial, assim como a da África Negra Pré-Colonial, não apenas no Sul, despertavam pouco interesse, para não dizer mais.

Décio Freitas, autor de livros magníficos sobre Palmares e a escravidão e resistência de negros e índios, impugnava indignado a proposta de que o Rio Grande, devido a sua imigração colonial-camponesa, fosse o Estado hiper-racista no Brasil, na frente do Rio de Janeiro, Bahia, etc., regiões de profundas raízes escravistas e de tradicional violência contra as classes populares, com destaque para as afro-descendentes.

O falecido historiador rio-grandense propunha que era, realmente, forte o preconceito racial nas regiões coloniais italiana, alemã e polonesa, sobretudo contra o negro. Mas, indo mais fundo, função das ciências sociais, lembrava que nelas jamais houve a grande propriedade territorial e muito menos o trabalho escravizado, a não ser como excrescência urbana. Os colonos europeus sustentaram-se sempre com o suor de seu trabalho e de suas famílias. Famílias que, a bem da verdade, para além das visões românticas, faziam trabalhar quase como cativos. Mas isso é uma outra história.

Disputando na enxada

O amigo e brilhante historiador René Gertz, crescido na colônia, contava-me que seu pai buscava episodicamente ajuda para o trabalho na sua pequena gleba em um “rincão de Negros”, esforçando-se para não fazer feio, na roça, no manejo da enxada, ao lado do trabalhador negro que contratava. Trabalhador negro que sentava à mesa familiar para as refeições, como era praxe na Europa, entre os pequenos proprietários, que não conheciam comportamento diverso. Não havia a tradição senhorial do desprezo pelo trabalho físico e pelo trabalhador, em mundo em que se vivia do seu trabalho. Nem condições materiais para que ela nascesse. Certamente os colonos tinham seus preconceitos étnico-raciais, com destaque para com a população afro-descendente. Mas não eram preconceitos de classe, que sustentassem a vida material. Há nisso nuances que ensejam importantes diferenças.

É certo que há pequenos núcleos identitários sobretudo na Região Colonial Italiana, que negam a própria nacionalidade brasileira. Instrumentalizados no passado por movimentos neo-fascistas italianos, hoje se encontram em claro retrocesso devido em boa parte à crise econômica e social da Península Itálica, que não mais oferece trabalho relativamente bem remunerado. Mas também isso merece aproximação menos impressionista. O movimento “Mi Son Talian” não apenas discriminava os negros e os brasileiros. Discriminava também os italianos não-vênetos, sobretudo os italianos meridionais e os pobres! Com Florence Carboni, linguista italiana, procuramos explicar as raízes desse fenômeno e denunciar e combater os identitário oportunistas que exploravam essa pregação racista e classista.

O racismo, duro, frio, cínico, nasceu e se desenvolveu nos campos e nas aglomerações urbanas da Campanha, da Depressão Central, do Litoral, do Planalto Médio do Rio Grande do sul, onde dominou por mais de um século a produção e a sociedade escravistas, encontrando-se a escravidão sulina entre as mais renitentes do Brasil. Agostinho Mario dalla Vecchia, meu ex-orientando, recolheu e transcreveu a talvez primeira e mais extensa coleção de depoimentos de velhinhos e velhinhas negros, como documento de base de sua dissertação e tese de doutoramento sobre os “filhos de criação”, no município de Pelotas, centro escravista sul-rio-grandense. Ao ler as não raro terríveis recordações dos depoentes podemos entrever lampejos de maldade classista e racista dignos do Alabama! Depoimentos referentes às primeiras décadas do século 20!

É dali, meu caro Jeferson Tenório, que nasceu, se conformou e escorreu para os nossos dias, onde foi realimentada, a maldade da tradição racista rio-grandense, que penetra renitente nossa sociedade. E não de uma região que se construiu sobre a ética do trabalho camponês e que produziu centenas de milhares de brasileiros euro-descendentes hoje despojados de tudo, a não ser de sua força de trabalho. Gringos, alemães, polacos vivendo lado a lado dos seus companheiros negros de luta pela existência, nas periferias de Porto Alegre, Caxias, etc. Recomendo ao amigo Jeferson Tenório visitar o célebre bairro da Tinga, a talvez mais rica e característica região negra da periferia de Porto Alegre.

A Especificidade Rio-Grandense

Em grande parte devido à excepcionalidade da produção colonial sulina, o Rio Grande do Sul foi o único estado do Brasil que defenestrou as oligarquias latifundiárias quando da República, com destaque para a “Revolução Federalista” (1893-5), espécie de “revolução democrático-burguesa” desde as alturas. O Estado Castilhista desenvolveu as instituições do Estado. Instaurou o concurso público para as funções administrativas. Proibiu roletas e sorteios, etc. Investiu no ensino secundário e formou uma das mais sólidas redes de ensino básico do Brasil, ampliada por Leonel Brizola quando governador.

Nesse processo, o RS se transformou no terceiro pólo industrial do Brasil e, mais tarde, no coração do trabalhismo e um dos pólos da fundação do PT e da CUT, então claramente anti-capitalistas e classistas. Foi ali que nasceu o movimento pela Legalidade, que derrotou os generais golpistas em 1961. Por décadas, os direitos cidadãos tiveram no Sul um maior respeito relativo que no resto do Brasil. Em forma capenga e mais restrita para com a população de origens africana, guarani e charrua, é certo. Uma realidade que vem sendo demolida com afinco nas últimas décadas com o apoio das classes dominantes regionais.

Para os que não conhecem o Sul e suas contradições, positivas e negativas, nascidas de seu passado singular, lembramos que um dos políticos mais consensuais do Estado, o senador Paulo Paim, que sempre se reivindicou como negro, de Caxias do Sul, ex-metalúrgico, teve sua primeira forte base eleitoral nos trabalhadores caxienses e do Vale do Rio dos Sinos, gringos e alemães que lhe foram sempre devotos e fiéis! Porto Alegre e o Rio Grande do Sul elegeram como prefeito e governador Alceu Collares, carinhosamente chamado de “Negrão”, que botou paradoxalmente pela janela seu enorme prestígio, por razões que não cabem aqui discutir.

Nos anos 1980, ao visitar por primeira vez Salvador, vi um policial branco esbofetear um guri negro, em Pleno Pelourinho. Em um ato instintivo, dei um passo adiante, quando fui segurado pelo braço por um querido ex-aluno da Santa Úrsula, um negro baiano, com experiência na terra. Naqueles tempos, um tal ato causaria um quilombo na rua da Praia, em Porto Alegre, com o protesto, creio, mesmo dos gringos e polacos preconceituosos. Hoje, já não sei. Rio de Janeiro Salvador, São Paulo, Minas Gerais foram os grandes centros escravistas do Brasil, onde as ditas elites viveram e se lambuzaram do trabalho escravizado e mantém ainda, fortes, suas culturas racistas anti-negras, irradiando-as, hoje como ontem, para as classes suas dependentes. Se não acreditam em mim, leiam o artigo execrável, publicado em 21 de novembro, “Beto Freitas foi pai precoce, filho presente e marido errático”, de Matheus Moreira, na Folha de São Paulo, um dos dois principais porta-vozes da burguesia paulista.

Pretória, ontem. Porto Alegre, hoje

Não me espanta que na Porto Alegre atual, uma das agora mais violentas cidades do Brasil, o amigo Jeferson Tenório tenha sido abordado diversas vezes. Espanta-me é que isso, segundo ele, não lhe tenha ocorrido no Rio de Janeiro. Ali, nos saudosos anos 1980, meus alunos da USU e da UFRJ, em boa parte negros e pardos, reclamavam de tais vexações, frequentíssimas. Falavam-me da necessidade de levarem sempre comprovação de serem estudantes ou trabalhadores, para apresentar aos policiais. Eu mesmo fui desembarcado, duas vezes do carro e uma de um ônibus, nesse caso junto com toda a patuléia, para ser revistado, sob a mira de metralhadoras, nos quatro ou cinco anos que vive na cidade, mesmo assim, maravilhsa. Menos mal que todas as vezes durante o dia! Isso que sou um branco translúcido, dos que tem horror de praia!

Mas o estarrecedor na entrevista de Jeferson Tenório é a afirmativa: “Existem aqui (Porto Alegre) espaços de prestígio, lugares ou bairros de elite aos quais os negros não têm acesso.” O ficcionista homenageado pela principal acontecimento cultural de Porto Alegre certamente se preocupa em usar as palavras na sua acepção correta. Vejamos – “acesso: ato de ingressar; entrada, ingresso; possibilidade de chegar a”, e por aí vai. Ou seja, haveria, digamos, em Porto Alegre, bairros onde um cidadão negro ou pardo não poderia ingressar, passear e morar. Coisa dos Estados Unidos de antes da Lei dos Direitos Civis de 1964! Certamente Jeferson Tenório nos dirá onde ficam em Porto Alegre esses bairros, quadras, edifícios limpidamente brancos, como nos tempos do racismo institucionalizado da África do Sul ou do meridião estadunidense!

Nos dias 20 e seguintes, em Porto Alegre, manifestações sobretudo de jovens e menos jovens negros apontaram com coragem o caminho correto da luta anti-racista. Apesar da dura repressão, seguiram manifestando contra o assassinato do cidadão João Beto Freitas, por vigilantes a serviço de multi-nacional da distribuição alimentar. Empresa reconhecida, não apenas no Sul, pela tradicional discriminação e tratamento, no mínimo rústico, quando não muito pior, dos consumidores afro-descendentes, ´acompanhados´ não raro como suspeitos de furtarem mercadorias, quando das compras, como registram inúmeros depoimentos.

Mário Maestri

Historiador, autor de: Revolução e contra-revolução no Brasil. 1530–2018.

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