Lembrança de Paulo Faria: O Semeador

Nota prévia:

Este artigo foi publicado originalmente no número 1 da revista Antítese – Marxismo e Cultura Socialista no ano de 2005, quando se completou um ano da morte de Paulo Faria. “Paulão” foi um dos grandes quadros políticos e teóricos produzidos pela esquerda marxista brasileira no final do século XX. Avesso aos vícios do dogmatismo, do carreirismo e do oportunismo, contribuiu para a luta social desde os anos 60 até sua morte, atuando no movimento sindical, no movimento popular, na organização partidária e no debate teórico e político. No atual cenário de refluxo político, teórico e organizativo da esquerda socialista no país, Paulão faz falta como poucos. Republicamos este artigo em homenagem à sua vida e militância por ocasião do vigésimo aniversário de sua morte. A Revista Antítese foi editada em Goiânia pelo CEPEC, Centro Popular de Estudos Contemporâneos, entidade de formação política e teórica que funcionou entre 1996 e 2013 e da qual Paulo Faria foi um dos principais mentores e organizadores. Apesar de não ter visto o nascimento de Antítese, o camarada Paulão também participou ativamente da concepção da revista e da composição de seu corpo editorial, contribuindo para sua viabilização política.  A Revista Antítese foi publicada entre 2005 e 2012, totalizando dez números.


Em abril de 2004 faleceu Paulo Faria. Vítima de um derrame cerebral em janeiro do mesmo ano, veio a falecer em razão das complicações advindas deste episódio e da imperícia médica em seu tratamento. Em pouquíssimo tempo perdemos um dos militantes mais significativos e representativos de uma parcela expressiva da esquerda brasileira. Referência política e teórica para muitos, semeador de instrumentos e organismos de luta dos trabalhadores, exemplo de militância e coerência política para todos os que, de alguma forma, sonham com uma sociedade socialista, nosso “Paulão” já está fazendo muita falta.

Nascido em Itaperuna-RJ em março de 1940, Paulo Faria iniciou cedo sua militância socialista, ainda nos anos 50, atuando no antigo PCB (Partido Comunista Brasileiro), ao lado de antigos comunistas. No golpe de 1964 chegou a ser preso, mas foi liberado dias depois. Durante os anos 60 atua no movimento sindical de Itaperuna, presidindo o Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro, e na esquerda do MDB (Movimento Democrático Brasileiro), então o partido da oposição consentida pela Ditadura Militar, conforme orientação do PCB na época. Residindo em Nova Iguaçu desde 1969, atua nos movimentos sociais da região da Baixada Fluminense e torna-se assessor do deputado federal Francisco Amaral entre os anos de 1974 e 1978. Nas eleições de 1978 candidatou-se a deputado federal, compondo a chapa dos parlamentares “autênticos” do MDB, recebendo, graças a esta postura, o apoio de correntes de esquerda que participavam das articulações pela criação de um partido dos trabalhadores, como a Convergência Socialista. Durante a campanha eleitoral, Paulo Faria e seus apoiadores são presos por um dia apenas por fazerem panfletagem junto a uma fábrica em Nova Iguaçu. A arbitrariedade do episódio evidencia a preocupação da Ditadura Militar com a ala esquerda do MDB no pleito de 1978. Neste, Paulo Faria tornou-se suplente do deputado Jorge Gama de Barros, obtendo 18 mil votos.

Nesta conjuntura, final dos anos 70, há uma retomada das lutas populares, com a emergência do protesto popular e o fortalecimento dos movimentos sociais das classes subalternas. Paulo Faria preside a seção local do Comitê Brasileiro pela Anistia e promove um redimensionamento de sua militância política e social. Crítico da tática pecebista de fortalecimento do MDB como partido da frente política dos setores de oposição à Ditadura Militar, Paulo defende, já em sua campanha eleitoral de 1978, a necessidade de criação de uma alternativa partidária classista e revolucionária para os trabalhadores, afastando-se do PCB e participando do MEP (Movimento de Emancipação do Proletariado). Neste processo, participa organicamente da criação e construção do PT, chegando a compor a primeira executiva do Movimento pelo PT no estado do Rio de Janeiro. Mais tarde, em 1979, transfere-se para Goiânia, integrando-se no Núcleo Libertação e, posteriormente, no PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), criando um expressivo agrupamento desta organização em Goiás e participando ativamente da construção do PT no estado. Juntamente com o Movimento dos Trabalhadores, organização marxista com forte atuação nos movimentos rural e urbano, O PCBR forma um campo de esquerda marxista que polariza a orientação política do partido no sentido da organização autônoma dos trabalhadores. Além disso, este campo atua decisivamente na criação e organização da Anampos (Articulação Nacional dos Movimentos Popular e Sindical) e da CUT (Central Única dos Trabalhadores). Nesta época, Paulo contribui, juntamente com outros, para introduzir o pensamento de Antonio Gramsci no seio da esquerda marxista do PT, incorporando os conceitos e formulações do comunista italiano na análise da realidade brasileira e no debate sobre as estratégias da revolução socialista. Este dado exemplifica a centralidade da questão teórica na ação político-social de Paulo Faria. Diversamente da tradição taticista e politicista, fortemente presente na esquerda marxista brasileira e valorizadora do ativismo e do voluntarismo, Paulo Faria sempre conferiu à sua militância a preocupação com a discussão teórica e com o estudo científico dos temas e problemas concernentes à luta socialista. Sua atuação neste campo ia desde as iniciativas de formação política e teórica que propôs, como cursos, seminários, fóruns de debate e conferências, até a colaboração ativa em revistas teóricas, como coordenador e autor, e a divulgação de livros e trabalhos científicos. Esta marca da militância de Paulo, que influenciou fortemente aqueles que com ele militaram, se explica por sua compreensão da revolução socialista como processo de conquista de hegemonia e de construção do novo poder a partir da organização independente e autônoma dos trabalhadores. Graças ao peso político da articulação do MT com o PCBR no PT de Goiás, Paulo Faria participa da chapa majoritária às eleições de 1982 como candidato a senador, o que contribui para consolidar o partido no estado.

Entre os anos de 1984 e 1986 Paulo Faria transfere-se para o Espírito Santo para realizar trabalho político junto aos movimentos sociais e à CUT, contribuindo também para a criação do PT na cidade de Serra e região, na Grande Vitória. Na volta para Goiânia, trabalha na criação do Centro de Publicação Popular (1988), entidade cultural e de formação teórico-política que edita a Revista Brasil Revolucionário (1989), órgão de debate e formulação político-teórica, em parceria com a comissão pró-Instituto Mário Alves, ambos com relativa influência no movimento sindical e no PT do estado. No CPP também edita dois livros de interesse para o debate socialista: “Fogo nos Andes” de Rosana Bond, sobre a luta guerrilheira do Sendero Luminoso no Peru e “Marxismo, modernidade e revolução: crítica do pensamento idealista da esquerda moderna” de Eliziário Andrade. Em 1990 ajuda a fundar e também passa a coordenar o Instituto de Estudos Políticos Mário Alves, instalado em São Paulo-SP, que assume a edição da Revista Brasil Revolucionário e organiza uma série de cursos, palestras, seminários etc. Em ambos, Paulo Faria colabora no encaminhamento do processo de abertura e integração orgânica de diversos militantes e intelectuais de outras correntes da esquerda petista e independentes, com vistas a criar um campo de ação política conjunta no interior do PT e a ampliar o debate político. De acordo com esta orientação, transfere-se para Curitiba- PR em 1992, atuando junto à Universidade Popular do Trabalho e promovendo atividades de formação, como a Mostra “Gramsci: pensamento e vida”, em parceria com o Instituto Mário Alves. Neste período, participa da constituição da tendência interna do PT “Brasil Socialista”, contribuindo na elaboração da tese apresentada no I congresso do partido em 1991. Ainda em 1991, colabora ativamente na criação da Revista Teoria & Praxis, revista acadêmica editada em Goiânia por intelectuais de esquerda e professores universitários.

Em 1994 volta à Goiânia, porém com uma postura bastante crítica em relação ao PT. Na verdade, a partir desta época a militância de Paulo Faria passa por uma redefinição, como com muitos daqueles que se afastaram do PT ao longo dos anos 90. A postura cada vez mais moderada do partido diante da ofensiva neoliberal, a centralidade estratégica adquirida pela via institucional em lugar do trabalho junto aos movimentos sociais, a escalada burocratizante e centralizadora no plano das relações internas e os próprios equívocos das administrações petistas, como os que haviam na administração de Goiânia, levaram o companheiro Paulo a concluir pelo esgotamento histórico do PT como instrumento de luta socialista e de construção do poder popular. Após as fracassadas tentativas de articular as correntes da esquerda petista em torno de uma instância de ação comum com vistas à unificação, o Fórum “Na luta, PT”, Paulo Faria se afasta definitivamente do Partido dos Trabalhadores e da tendência Brasil Socialista, juntamente com outros companheiros. Apesar de manter o trabalho junto à Revista Brasil Revolucionário e ao Instituto Mário Alves, Paulo defende que estes instrumentos deveriam extrapolar sua intervenção político-teórica para além do partido, abrindo-se cada vez mais a todos os militantes revolucionários, dentro e fora do PT. A partir de então, e até o final de sua vida, Paulo Faria se movimentará politicamente para fortalecer a construção de uma alternativa classista e revolucionária dos trabalhadores. O fortalecimento dos movimentos sociais numa perspectiva autônoma, independente e não corporativista e a criação de uma nova geração de militantes, comprometidos com esta orientação e isentos dos vícios do aparelhismo, do doutrinarismo e do burocratismo eram considerados por ele como tarefas estratégicas para a retomada da luta revolucionária. Paulo Faria se dedicou organicamente a estas tarefas, intensificando a marca pluralista e criativa que sua militância apresentava desde o início; envolvendo-se tanto na articulação e criação de diversas iniciativas inovadoras, quanto na elaboração e na discussão teórica.

Já em 1996, como fruto desta perspectiva, participa da criação do Centro Popular de Estudos Contemporâneos (CEPEC), em Goiânia, entidade cultural voltada para a formação e o debate político-teórico numa perspectiva pluralista e de defesa da autonomia e da independência de classe. Ainda nesse ano publica, com outros autores, o livro “Ofensiva neoliberal, reestruturação produtiva e luta de classes”, editado pelo sindicato dos Eletricitários de Brasília, onde desenvolve sua proposta política para o novo período. Em 1997 contribui na criação e passa a integrar a coordenação nacional do Movimento de Libertação dos Sem-terra (MLST) – movimento social com expressiva inserção na luta pela terra e com trabalho em diversos estados –, assumindo desde então a área de formação política. Em 2000 organiza e edita o livro “Cadernos do MLST” com textos de Mário Alves e outros sobre a questão agrária no Brasil. Entre os anos de 1999 e 2001 atua como principal articulador do Fórum de Autonomia e Independência de Classe, que reuniu agrupamentos e organizações de diversos estados identificados com esta perspectiva política, em torno do debate sobre as experiências de autonomia e independência de classe desenvolvidas no Brasil e no mundo e sobre as diversas elaborações teóricas existentes sobre esta questão presentes nos movimentos sociais. A partir destes contatos, Paulo se aproxima de agrupamentos políticos com experiências importantes e acumulação teórica na questão dos coletivos produtivos, discussão que ele traz para o interior do MLST e que inspira uma série de iniciativas nos acampamentos e nos assentamentos do movimento. Visando intensificar o debate no seio da esquerda marxista, ao longo do ano de 2002 contribui para a criação do Fórum Socialista de Goiás, que reunia indivíduos, grupos menores, o PSTU e o PCB em torno de uma perspectiva de ação conjunta nos planos político e eleitoral.

Com a conjuntura aberta pela ascensão do PT à presidência da República e a desilusão causada pelo governo Lula, ao longo do ano de 2003, Paulo Faria participa dos debates sobre a criação de um novo partido socialista, que polariza uma série de correntes e organizações no campo da esquerda marxista. Em sua opinião, um novo partido socialista só poderia se tornar uma real alternativa revolucionária para os trabalhadores e um instrumento de largo fôlego histórico se fosse fruto de uma dinâmica de ascenso dos movimentos sociais e não uma simples articulação entre correntes e agrupamentos políticos. Em sua avaliação, tal perspectiva demandaria um trabalho de médio e longo prazo de organização e articulação que extrapolaria a conjuntura política imediata, pois os movimentos sociais vivenciavam um período de refluxo e cooptação frente ao governo e ao capital. Daí a necessidade de, pacientemente, aprofundar o debate e ampliar as iniciativas conjuntas de ação política combativa no interior dos movimentos. Sua última semeadura foi o Centro Cultural Teoria e Práxis, fundado em 2003 em Goiânia, a partir do qual entrou em contato com outros centros para articular uma série de seminários sobre estratégia revolucionária. Destes debates surgiu uma articulação de caráter nacional entre militantes e agrupamentos de diversas trajetórias políticas e teóricas, que Paulo acompanhava com interesse. Também vinha articulando junto à Associação Bernardo Élis dos Povos do Cerrado e outras entidades uma “Mostra Bernardo Élis”, relativa à vida e obra do famoso comunista e romancista goiano, quando foi colhido pela morte, no início deste ano.

Estas breves e incompletas notas político-biográficas, pois baseadas nas conversas que tivemos e na memória de outros companheiros e dos familiares sobre sua vida, e escritas ainda quando estamos tentando entender o que aconteceu, indicam a intensidade com que Paulo Faria se entregou à luta popular e socialista e a enormidade de iniciativas que desenvolveu junto aos movimentos sociais. Ao lado de inúmeros companheiros, mas muitas vezes sozinho, Paulo Faria espalhou pelo terreno nem sempre fértil da revolução social incontáveis sementes da organização e da luta populares. Muitas delas vicejaram e frutificaram, transformando-se em referências para a luta dos trabalhadores, outras nem tanto, mas em todas elas Paulo deixou a marca da defesa da autonomia e da independência de classe, pois achava que a revolução socialista só pode ser obra dos trabalhadores organizados e de mais ninguém. Daí a coerência política e a honestidade que assumiu em toda sua vida, colocando a luta revolucionária acima de qualquer coisa, mesmo de seus interesses pessoais. Como quadro político que era, Paulo Faria poderia muito bem ocupar cargos e funções burocráticas no movimento sindical, no movimento social ou, quem sabe, até mesmo no Estado, caminho percorrido por tantos na esquerda brasileira. Poderia ascender socialmente, usufruindo das benesses e mordomias reservadas aos pretensos representantes políticos dos trabalhadores. Paulo Faria, porém, gostava de pensar pela própria cabeça, sem ter que se sujeitar a processos e orientações dos quais discordava para manter seu emprego. Ao contrário, em todas as situações em que precisou romper com organizações e projetos políticos, o fez sem o menor constrangimento, expondo claramente sua crítica política e teórica e apontando o caminho que achava mais correto, mesmo que viesse a sofrer perseguição política e isolamento. No entanto, quando se envolvia num projeto, dedicava-se a ele totalmente, transformando sua mente numa usina de ideias, propostas e formulações. Nos dias de hoje, quando muitos quadros e intelectuais de esquerda se entregam alegremente às teses do capital, alegando que “não há alternativa” e traindo a luta dos trabalhadores em nome de poder e negócios, a trajetória de Paulo Faria é um exemplo para os que não se renderam ao cretinismo político e lutam por uma nova sociedade e por um novo homem.

Companheiro Paulo Faria, você está presente!

David Maciel

Doutor em história, prof de história, membro da coordenação da escola de formação socialista, membro da editoria de marxismo21, e da coordenação nacional do GT história e marxismo da ANPUH.

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