A pergunta parece inusitada porque a resposta parece óbvia. Porém, só parece. A obviedade, a imediatez do significado ofusca, esconde atrás de si um imbróglio tanto mal gestado quanto mal resolvido.
Mal gestado na medida em que ninguém, em absoluto, esclarece de onde surgiu a necessidade de um “Lula livre”. É óbvio demais, não precisa de maiores explicações: Lula foi preso injustamente, num complexo golpe de Estado perpetrado pela direita, e, portanto, que justiça seja feita. O movimento da maré, visível já que por cima de tudo, justificaria correntes marítimas profundas. Contudo, a Realpolitik petista tem menos realidade quanto mais oculta e inverte intenções profundas.
A quintessência puritana e ética que clama, de alma cândida, por justiça é a mesma que lapida a história recente, tal como bons revisionistas, refazendo-a e vendendo a preço ideológico mas módico um passado glorioso, com céu límpido da conciliação de classes e da desigualdade amortizada — tal como os juros da dívida pública: o “Lula livre” esconde um projeto político de volta a um passado feliz, bucólico, que, como passado, não existe mais; e que, como pintam tal quadro, jamais existiu.
O projeto político ocultado detrás do mote “Lula livre” revela-se nefasto na medida em que mente sobre os feitos do ex-governo. Pintam-no Ulisses de Ítaca ao mesmo tempo em que querem nos entregar um cavalo de madeira — ao menos ficam no plano homérico. Ocultam e revisionam ao dilapidar o passado, retirando-lhe as arestas ruins e realçando positivamente as “glórias” meia-boca, como se tivessem sido o sétimo céu. Tal como a memória do indivíduo comum — neurótico quase sempre –, inverte o peso do drama, das perdas e dos momentos ruins transformando-os ao bel-prazer, sem nenhuma conexão com o real da história: inventa-se o passado para poder retornar a ele.
Disso extraem-se duas consequências: 1) o “Lula livre” é, politicamente, um projeto reacionário — no sentido de querer voltar a um passado glorioso que sequer existiu; 2) partindo de uma interpretação que manipula a história ao bel-prazer e desconsidera seus movimentos e momentos — em suma, sem considerar devidamente o contexto histórico –, deixam de perceber o quão sem sentido seria um retorno do lulismo ao poder: a primeira como tragédia — ainda que pintada com cores semivivas de uma falsa glória –, a segunda como…
Lula livre para quê? A pergunta retorna e já temos uma resposta negativa no horizonte: não se trata somente de justiça, há um projeto político por trás que não se mostra como tal à luz do dia, tampouco se compõe com forças reais — vide o blefe de resistência nos famigerados 5 e 6 de abril de 2018 no sindicato dos metalúrgicos do ABC. Mal gestado, até para lulistas de plantão, o “Lula livre” empaca em si mesmo pela forma traiçoeira com que trata a si próprio.
Porém, qual problema de haver projeto político por trás? Aparentemente, nenhum. Mesmo oculto, com medo da luz do dia, nenhum. O problema está nas consequências dessa falta de clareza.
Em política, em tempos de “paz” nada fica completamente evidente nem fica completamente oculto. Somente em momentos extremos se evidenciam ou se ocultam os motivos, objetivos, táticas e estratégias, ainda que momentaneamente. Por sua vez, em política nada deve ser ocultado de maneira em que confunda até mesmo os atores engajados na coisa. Isto só provoca uma consequência: inação. Consequência nefasta para si mesma e para a sociedade em que se deveria agir politicamente. Aqui, “agir” politicamente pela inação, gestada pelo êxtase do incompreendido, causa seu revés: a política (pequena e confusa) torna-se bloqueio para a Política.
Como consequência, não produzimos, como projeto de classe, nada de propositivo para a sociedade: nenhum programa coletivo, nenhuma alternativa real, à esquerda, radical. Aqui está o nó mal resolvido. Em todos os âmbitos o “Lula livre” obstruiu a formulação de um programa político — radical à esquerda –, de tática e estratégia. O mote — “Lula livre” — tomou de assalto todas as manifestações de rua, todo movimento político popular, obliterando qualquer proposição e na intenção, sem sucesso, de hegemonizar discursos. Não criou hegemonia, pois não tem programa. Fomos enredados numa trama complexa de resistência infértil.
O “Lula livre” impede a própria libertação de Lula (1) . Se Lula morre, vira mártir e seu fantasma rondará o cérebro dos vivos com uma força tal que impedirá, talvez com mais força, sua superação e uma construção alternativa. Se fica tal como está, continuaremos girando em falso em inação. Se conquistar a liberdade, trará consigo um programa pronto, na sua cabeça, como o Pai redentor que levará todos para o pretérito Jardim do Éden.
Esquece-se, nesse quiproquó, que a redenção se dá para frente, “a poesia da revolução versada a partir do futuro”, não para trás, num passado ilusório e ideológico no qual só existe escombro a ser superado: “os mortos devem enterrar seus mortos”.
Adendo: Este texto foi escrito três dias antes da “sexta-feira santa”, dia da libertação de Lula da prisão. Não se trata, claro, de premonição, de “espírito da situação” que ronda e assola o cérebro dos vivos, como intuição mistificada. Ainda assim, é interessante ver que, desde a decisão do STF, um êxtase geral tomou conta das redes sociais. Cegos de todos os lados, não veem a floresta por conta da “Árvore da Sabedoria” que assola o Brasil há tempos. Os fatos, isolados, totalizam-se e impedem qualquer consideração dos processos históricos. O êxtase — que é, em verdade, estase — já evidenciou, em poucas horas, duas coisas: a) o cavalo de Tróia chegou trazendo as imensas belezas da Caixa de Pandora — esperemos anoitecer para que de lá saiam monstros, como no sueño de la razón de Goya; b) a história mostrará a inação completa, pela crença no Pai Redentor, e suas consequências. O Jardim do Éden pretérito mostrará que nosso Dante decadente vai somente até o segundo livro: a viagem pelo inferno e seus grandes círculos começa agora. Peguem suas duas moedas de ouro para entregar ao barqueiro. Desejamos-lhes boa viagem.
1 — Este texto foi escrito 3 dias antes do famigerado 08.11.2019, 2 dias antes da “decisão” oportuna do STF — decisão, diga-se, política, já que “prisão após trânsito em julgado” é cláusula pétrea da Constituição Federal de 1988. Ainda assim, neste texto a “libertação” de Lula não é entendida apenas como “libertação física da prisão”: como mostra as entrelinhas do parágrafo, Lula se liberta da prisão mas está preso a algo maior que ele, que é ele mesmo totemizado e elevado à categoria de… mito.
Vinícius Xavier, Núcleo Brás, PSOL-SP
Pingback:Estado Democrático de Direito ou Protoestado de sítio? - Contrapoder