Estado Democrático de Direito ou Protoestado de sítio?

Um dos temas clássicos da esquerda é a possibilidade de associação de classe e do acirramento da luta de classes. Isso visa pautar, cada vez mais, a necessidade da transformação da sociedade em suas raízes, extirpando a exploração e a dominação de classes, tendo como objetivo último a superação das classes sociais. Para isso, o Estado (burguês) não é o mediador, mas um dos ponto-chaves para a derrubada da classe opressora e das opressões propriamente ditas. A função da esquerda revolucionária não é alimentar a esperança de um “Estado Democrático de Direito” – democrático para quem?; direito para quem? Antes, como dizia Lenin, desgastar o Estado e seu superpoder sobre a sociedade civil é umas das tarefas da esquerda1. Se pensarmos no Brasil, isso é mais patente: o Estado não é só aparelho da burguesia para opressões, mas de uma classe oligárquica que se arrasta desde o Império2. O Estado, no Brasil, não faz somente a mediação com a sociedade civil. Antes, ele mais se assemelha a um Leviatã pelo seu gigantismo3. Não o gigantismo que a direita tanto clama – “temos que enxugar o Estado” e blá blá blá, como se o problema fosse somente de finanças e gastos. Outro tipo de inchamento: que aloca e suporta parasitas de todos os tipos, uma classe política que se beneficia desse Estado e de seus superpoderes4. Nosso horizonte deve ser a superação das classes e do capitalismo como sistema explorador e criador de uma dada sociabilidade que o sustenta; nossos passos devem ser o desgaste do Estado e desta “democracia” limitada, que nada tem de demo (povo) mas muito de kratia (poder) das elites parasitárias. 

Sem uma ruptura com essa forma de Estado que remonta, pelo menos, aos inícios do século XX, sem o aprofundamento de uma democracia radical e sem termos reformas de base sérias, como defender Estado democrático de direito? Qual direito? Qual democracia? Qual Estado? Por conseguinte, qual o papel da esquerda nisso? Será que nosso papel, como atores de primeira ordem, é ratificar as mazelas – que às vezes passam invisíveis como se fossem nada – desse Estado? Ou será que, ao contrário, é denunciar, resistir, evidenciar as contradições, propor outros caminhos?  

Resistir é lutar até o fim. E é mais que isso: é ser intransigente na defesa dos oprimidos e apontar para o horizonte, propor saídas, caminhar em direção à Revolução5

Assim, o papel de um partido de esquerda não é somente se opor àqueles que estão no poder; mais que isso, é se opor, intransigentemente, às estruturas, historicamente constituídas, do poder que vige no Brasil. Este prisma fortalece nossa visão para que percebamos como as formas de dominação aparecem nos detalhes, de forma sutil e, no mais, acabam sendo encampadas pelo campo “progressista” como se indicassem quaisquer avanços6

De tal maneira, os princípios da esquerda não devem ser relegados. Claro que não quer dizer que sejam sempre os mesmos, estanques. Mas suas perdas e, o que é pior, a negociação de tais princípios pode nos levar a algo nefasto: encamparmos as pautas opressoras, o fortalecimento deste Estado como se fosse algo benéfico à toda sociedade. No limiar, tal forma de fazer política pode significar o contrário de fortalecimento democrático e das liberdades: pode estar abrindo caminho para um estado de sítio sem a necessidade de uma ditadura autoritária que corresponda a tal autoritarismo tornado norma. 

São os detalhes, a proposições de leis e emendas constitucionais, por exemplo, que vão, paulatinamente, fechando o cerco, tanto para as liberdades e suas expansões, quanto para as lutas sociais que poderiam reivindicar sua esfera própria de organização e de realização da superação necessária do capital e de sua sociabilidade7

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O aprofundamento da crise econômica brasileira, junto à crise gerada pela pandemia e uma crise social e econômica global, o discurso de privatizações, seguido da destruição das riquezas naturais e de direitos, que visa, no fim, ao aumento da exploração do trabalho e das relações sociais, evidencia que estamos ladeira abaixo no que diz respeito à realização de uma sociedade mais justa e humana. Tais ataques ao patrimônio humano – e não do Capital –, no Brasil, remontam, especialmente, ao segundo governo Dilma. Os que vieram depois se beneficiaram da senda ali aberta e aprofundaram, com mais ligeireza, todos os ataques, velados ou explícitos. 

Há formas de não impedir que a crise se alastre e, mais que isso, colaborar com ela. Em primeiro, os partidos de oposição fazem o jogo do sistema: já que o Estado é democrático, pensam, basta impedir que os parasitas lá se aloquem. Esse primeiro ponto possui, pelo menos, dois equívocos: a) consideram o Estado uma “instituição neutra”, estabelecida e imutável – como a realização plena da Razão humana e como se a Razão não tivesse problemas8; b) ao se limitarem a jogar de acordo com as regras dos outros, acabam por fazer as mesmas jogadas e facilitam a absolutização de tais regras, como se fossem em defesa da categoria abstrata “povo”. Em segundo lugar, colaboram com a crise quando assumem a linguagem e as formas autoritárias veladas (o pacote “anticrime” que foi dado como uma vitória por Marcelo Freixo, pois era “mais brando que o proposto por Sérgio Moro”, atesta isso). Por conseguinte, quando os partidos de oposição passam a defender as estruturas de poder como tais, eles não avançam na defesa de direitos. Antes, retrocedem na afirmação do passado glorioso que, no entanto, jamais existiu9. Por último, não há projeto de Nação nem de sociedade por parte da esquerda: o que queremos?; o que somos?; o que propomos como alternativa? Ficamos à deriva exatamente quando precisaríamos de alguém para nos guiar, enquanto população e enquanto militantes, nesse mar aberto. Contudo, se temos muitas estrelas atualmente na esquerda, não temos nenhum Copérnico…  

Se o segundo governo Dilma ratificou o projeto “antiterrorismo” – sabemos bem para quê e para quem serviu e servirá –, agora Paulo Teixeira (PT-SP), supostamente à esquerda no espectro político, propõe um Projeto de Lei reacionário. Explicamos: numa primeira leitura parece ser benéfico, já que, aparentemente, aprofunda o respeito democrático às liberdades individuais e limita as expressões fascistas (?) na sociedade; numa leitura mais atenta, vê-se que o PL, de número 3864, colocado em pauta este ano (2020), joga contra a possibilidade de manifestação do contraditório na sociedade, contra as possibilidade de luta e organização da classe trabalhadora e dos oprimidos em geral. Eleva à primeira categoria o fetiche do “antiterrorismo”. Contraditoriamente, o petista joga em favor do Terrorismo de Estado e contra as poucas sendas ainda abertas para o combate direto dos oprimidos organizados que visam a destruição da opressão.

Esse projeto aponta para um estado de sítio (cerceamentos), com mecanismos de controle total, no qual uma pessoa não possa ter certeza de que sua comunicação é confidencial; que cada passo, ação e atividade praticados dentro do território nacional sejam minuciosamente monitorados; que cada discussão feita via internet seja monitorada e “legalmente” utilizada contra militantes políticos que tentem se levantar contra direções que se recusam a lutar (e dizem que Eduardo Bolsonaro é o único a querer delatar antifascistas); ou, ainda, contra os que tentam se organizar para impedir os ataques profundos que vimos sofrendo. Tais medidas de controle se desdobram, justamente, para manter a população submissa e atacada, sem que para isso seja necessária a intervenção direta dos militares. 

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O PL 3864/202010 – que está aguardando despacho do Presidente da Câmara dos Deputados –, do Deputado Paulo Teixeira (PT-SP), é uma ode ao Estado Democrático de Direito – como se tal Estado existisse conforme a ideia Iluminista de racionalidade salvadora. No cerne, o “medo” de conspirações e “golpes”, que deveria gerar a contestação dessa estrutura nada sadia, gera o reverso de sua intenção. A proposta se dá em cercear cada vez mais todo tipo de manifestação contra o atual estado de coisas. Se, de um lado, tal proposta se dispõe a limitar a extrema direita tresloucada, por outro, como consequência direta, põe um nó nas possibilidades de manifestações à esquerda, criminalizando aqueles que lutam contra a opressão, seja de qual modo for. O medo aponta arma para a cara dos “companheiros”, achando que ataca inimigos. O que se encontra nesse PL é punitivismo com o aumento (autoritário) dos poderes do Estado. Será que o Sr. Paulo não percebeu quem está no poder do Estado atualmente? Ou será que ele é ingênuo ao ponto de acreditar na salvadora solução do Barão de Münchhausen, que sai da lama puxando a si próprio, para o alto, pelos cabelos? Além do mais, o paternalismo vigente no Estado brasileiro desde sempre reaparece sem cerimônias no art. 6 do referido PL: “Os movimentos sociais em defesa do Estado Democrático de Direito constitucionalmente estabelecido, bem como dos direitos humanos, fundamentais e sociais, deverão ter especial proteção do Estado.” (grifos nossos). 

Como se não bastasse o referido Sr. ser de um partido de “ex-querda” com sua “ilibada defesa incondicional e irrestrita do povo”, como um Pai Salvador, o PL3864/2020 está interligado a gama de outros que, olhados em conjunto, evidenciam uma ação coordenada na qual os argumentos vão da defesa dos direitos e das liberdades – como se eles existissem de fato – ao “combate ao terrorismo” (?), e tudo isso, por sua vez, cria, na verdade, senão uma abertura para um estado de sítio inteiramente novo e “hitech”, pelo menos um Espírito de morte que paira sobre os corpos dos vivos – ou dos que ainda ousam viver. O PL 443/201911, do Sr. Gurgel (PSL-RJ), acrescenta inciso à lei “Antiterrorismo” e visa punir quem atentar conta agentes de segurança pública e à ordem pública. O PL1595/201912, do Sr. Major Vitor Hugo (PSL-GO) “combate” o “terrorismo” (ou o fantasma que assola a mentes desses tolos, que lhes dão esse nome da moda pós-11 de setembro de 2001) num viés superpunitivista. Aliado a estes, o PL 2418/201913, do Sr. José Medeiros (PODE-MT), “Altera a Lei nº 12.965/2014, para criar obrigação de monitoramento de atividades terroristas e crimes hediondos a provedores de aplicações de Internet e dá outras providências.” Nesse mesmo âmbito, o PL3389/201914, do Sr. Fábio Faria (PSD-RN), visa estabelecer “a obrigatoriedade de fornecimento do número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) ou Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) para cadastro em aplicações de internet”, que, por sua vez, se conjuga ao Decreto nº 10.046, de 9 de outubro de 2019, da Presidência da República15, que “Dispõe sobre a governança no compartilhamento de dados no âmbito da administração pública federal e institui o Cadastro Base do Cidadão e o Comitê Central de Governança de Dados.”

Por todos os lados e de diversas formas, os projetos de lei convergem para um único objetivo: aumentar o poder do Estado e diminuir o campo de movimentos dos indivíduos, dos grupos (organizados: movimentos sociais e etc.), daqueles que ousarem lutar por uma vida que valha a pena ser vivida. Em uma palavra, criminalização da vida que não se enquadre nesse sepulcro. Desde os inícios dos anos 2000, principalmente, abriu-se mão, paulatinamente, da luta política por uma judicialização sem limites – não é por acaso, portanto, que o STF, as operações em torno de “combate à corrupção” da PF, os TRFs e etc. tenham se tornado protagonistas dos processos políticos e sociais nos últimos tempos; da elevação à herói nacional de Joaquim Barbosa à chegada de Sérgio Moro ao poder ministerial (entre outros muitos exemplos possíveis) há uma linha-mestra contínua. A judicialização da política cria, ideologicamente, a ideia e a imagem de que “todos são iguais perante a lei”, isto é, anula-se, no céu estrelado de onde caem raios, a contradição, a divisão, a exploração de classes; aceita-se a ordem burguesa (oligárquico-burguesa no caso brasileiro) como natureza social e ponto culminante da história humana – realização plena das potencialidades humanas e sociais. Contudo, uma ordem assim só faz, como mostram os PLs, o movimento de guilhotina: ceifa vidas e possibilidades de cima a baixo. Tal judicialização, da forma como caminha a passos largos no Brasil, tem em seu horizonte um estado de sítio sem a necessidade da autoridade pessoal ou militar: as formas de controle vão, paulatinamente, se interiorizando nas pessoas e nas instituições e se tornando a forma natural de existência social da vida. Nesse quadro, a esquerda que chega ao poder e se enquadra na “defesa” dos direitos e etc., aceita de bom grado aquilo que deveria criticar e destruir; aceita os termos e regras desse jogo da morte. O PL do Sr. Paulo Teixeira, ainda que cause algum mínimo espanto, somente ratifica as diversas ações que se dizem à esquerda, porém, aprofundam o projeto autoritário da classe dominante, depurando-o da pecha “autoritarismo”, floreando e diluindo o controle e a dominação social e os vendendo como se fosse o caminho para o Paraíso – mesmo enquanto avançamos para o sétimo círculo do Inferno dantesco. 


Juliana Pires Magalhães | Núcleo Brás
Vinicius Xavier | Núcleo Brás


1 – Quanto a isso, veja: LENIN, V. I. Duas táticas da socialdemocracia na revolução democrática. Lisboa: Editorial Avante!, 1977, t.1, p. 381-472; LENIN, V. I. O Estado e a revolução. Trad. Edições Avante!. São Paulo: Boitempo, 2017; LENIN, V. I. O que fazer? Trad. Edições Avante!. São Paulo: Boitempo, 2020. Além disso, veja a belíssima e instigante Apresentação de Florestan Fernandes à edição de O que fazer? da Editora Hucitec: FERNANDES, Florestan. Apresentação [1978]. In: LENIN, V. I. O que fazer? São Paulo: Hucitec, 1988; também veja, deste autor: FERNANDES, Florestan. O que é Revolução[1981]. In: In: PRADO Jr., Caio; FERNANDES, Florestan. Clássicos sobre a Revolução Brasileira. 4 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2005. Igualmente, veja a explanação de Vladimir Safatle sobre o Estado brasileiro: https://www.youtube.com/watch?v=CCgL60UJTck&t=40s&ab_channel=TVBoitempo

2 – Veja: FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. 5 ed.São Paulo: Globo, 2006.

3 – Veja: “Neoliberalismo”: Estado mínimo? https://contrapoder.net/colunas/neoliberalismo-estado-minimo/

4 – Quanto à “nova classe” como sujeito da sociedade brasileira, veja o Ornitorrinco de Chico de Oliveira: OLIVEIRA, Franscisco. OLIVEIRA, F. de. Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2013, especialmente p. 146-150.

5 – Caminhar em direção à Revolução ainda que ao custo de ser taxado de “louco”. Quanto a isso, veja o belo texto de Michael Löwy sobre uma parte decisiva da trajetória de Lenin e sua relação com a Revolução: LÖWY, Michael. Posfácio – Os Cadernos Filosóficos e a Revolução de outubro. In: LENIN, V. I. Cadernos filosóficos: Hegel. Trad. Paula Almeida. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 359-76. E, também, veja: LENIN, V. I. Teses de Abril. In: ŽIŽEK, Slavoj (org.). Às portas da Revolução: escritos de Lenin de 1917. Tradução dos textos de Slavoj Žižek: Luiz Bernardo Pericás e Fabrizio Rigout; Tradução dos textos de Lenin: Daniela Jinkings. 1ª ed. revista. São Paulo: Boitempo, 2011.

6 – No que diz respeito ao campo epistemológico e à crítica propriamente dita, suas contradições internas na atualidade, veja o debate sobre os modos de “apropriação” de uma parcela da esquerda de formas de “crítica conservadora”, que relega a totalidade e se furta, por isso, de propor qualquer tipo de ruptura com o status quo: FLUSS, Harrison; FRIM, Landon. Aliens, antissemitismo e a academia [14.09.2020] Trad. Everton Lourenço. In: https://jacobin.com.br/2020/09/aliens-antissemitismo-e-a-academia/

7 – Veja: Reforma e Revolução ou Quem tem medo do socialismo? https://contrapoder.net/colunas/reforma-e-revolucao-ou-quem-tem-medo-do-socialismo/

8 – Quanto à “crise da Razão” e seu lado nefasto – racionalidade irracional –, tal como largamente tratada pela Teoria Crítica da primeira geração de Frankfurtianos, veja o livro – mais emblemático desse desenvolvimento e talvez central: ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. G. A. de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

9 – Veja: Lula livre para quê? https://contrapoder.net/colunas/lula-livre-para-que/

10 – https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2257960. Além disso, o PL do Sr. Paulo Teixeira visa revogar a Lei de Segurança Nacional, de 1983, que, mesmo naquele contexto da “ditatura falida”, mas ainda em pé, era “menos pior” que a atual proposta petista. Veja: Lei nº 7170, de 14 de dezembro de 1983, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7170.htm.

11 – https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2191116.

12 – https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2194587.

13 – https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2198750.

14 – https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2207075

15 – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D10046.htm.

Resistência Popular

Núcleo PSOL - Resistência Popular, Brás, São Paulo

Vinicius dos Santos Xavier

Militante marxista desde o início dos anos 2000, Professor de filosofia da rede estadual de São Paulo, integrante do grupo de estudos “Repensando o Desenvolvimento”, do LABIEB-USP no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

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