I. B.T. Washington e Marcus Garvey: a alienação como projeto
Passando o bastão
Um ano antes da morte de Booker Tagliaferro Washington, a principal liderança negra estadunidense de sua época, em 1915, um seu admirador, Marcus Garvey [1887-1943], fundava, em 1914, na Jamaica, sua terra natal, a Associação Universal para a Emancipação do Negro, UNIA, sob o lema a “África para os africanos, no país e no estrangeiro!” Superando seu antecessor, ele seria, até hoje, o dirigente político negro com maior repercussão nos USA.
Ainda que sua pregação também fosse conservadora e oposta à luta dos negro-estadunidenses por seus direitos, Marcus Garvey jamais foi apoiado pelas classes dominantes dos USA, como o antecessor. Ao contrário, acusado de populista, de demagogo e de ameaça à ordem pública, foi preso, julgado, condenado e banido dos USA, em 1927. Apesar das convergências, B.T. Washington e Marcus Garvey tiveram origem e trajetória iniciais diversas.
Booker, mulato, nasceu escravizado, no coração do Sul, obtendo a liberdade, dele e da sua família, apenas com o fim da Guerra da Secessão, em 1865. Para se alfabetizar e obter educação sofrível, foi obrigado a cumprir, no mínimo, uma dúzia de “Trabalhos de Hércules”. B.T. Washington propôs aos negros sulinos sob o Apartheid, o que aprendera no Instituto Hampton, escola normal privada para afro-estadunidenses de ambos os sexos, fundado em 1868, na Virgínia, pela Associação Missionária Americana, nortista, branca, protestante e abolicionista.
Volta para a África
A Associação Missionária era solidária com a população negra, mas descrente de suas plenas capacidades. A pregação de Booker centrou-se na apologia do liberalismo capitalista; da importância dos hábitos higiênicos ocidentais; da submissão ao Apartheid, no Sul, e ao status quo, no Norte. Enfatizava o trabalho manual como único caminho de emancipação do negro sulino, a ser obtida em um futuro distante. Ele destacou-se, acima de tudo, pela capacidade em recolher fundos e apoios entre as classes endinheiradas do sul e do norte dos USA. [MAESTRI, 2024.]
Marcus Garvey, negro, jamaicano, pregou a luta pela pureza racial e o retorno, não apenas dos afro-estadunidenses, para a África, programa avançado e organizado originalmente por racistas estadunidenses em inícios do século 19. Revelou singular capacidade de divulgar suas propostas, associada a uma enorme inaptidão para realizá-las, ao contrário de seu antecessor.
B.T Washington se revelou administrador competente e morreu gozando de amplo prestígio, fragilizado pelas críticas à sua contemporização com o Apartheid, no Sul, e com o racismo, no Norte, e por deslizes em sua vida privada. Foi coberto de homenagens pelas classes dominantes estadunidenses após a sua morte, como o fora durante sua vida. Nos anos 1950, o seu prestígio refluiu com o avanço das lutas dos afro-estadunidenses pelos direitos que lhes eram negados.
Marcus Garvey, após ser expulso dos USA, vivenciou, na Jamaica e na Inglaterra, o acelerado declínio de sua liderança e da UNIA, organização que fundara, primeiro na Jamaica e, logo, nos Estados Unidos. Foi semi-esquecido nos USA, com a ascensão de novas organizações e lideranças, como os Muçulmanos Negros, Malcolm X, o Partido Pantera Negra.
Com a vitória neoliberal mundial de fins dos anos 1980, assinalada pela dissolução da URSS, avançou e consolidou-se a hegemonia das organizações negras social-integracionistas e identitárias, em geral, organizadas sob a asa do Partido Democrata. No novo contexto, B.T. Washington e Marcus Garvey voltaram a ser lembrados como lideranças negras positivas e, comumente, como pioneiros do empreendedorismo negro pró-capitalista. E, como tal, como é habitual, exportados para o Brasil.
II. Nascimento, Educação e Formação de Marcus Garvey
País negro
Marcus Mosiah Garvey nasceu, em 17 agosto de 1887, em Saint Ann’s Bay, no litoral da Jamaica, ilha de uns 240 km de extensão por, no máximo, oitenta de largura. Seu pequeno povoado nativo teria uns dois mil habitantes e, toda a colônia inglesa, uns oitocentos mil habitantes. A escravidão fora abolida no Império Britânico, e, portanto, na Jamaica, em 1833. A sociedade jamaicana era constituída por 80% negros, descendentes de cativos, em geral, pobres, vivendo em meio rural. A classe média, uns 18% da população, era formada por mestiços diversos, com destaque para os mulatos. As classes dominantes, uns 2% da população, era integrada por brancos, descendentes de ingleses, de europeus e de jamaicanos, com ancestrais negros mais ou menos distantes.
A contradição sócio-racial dominante dava-se entre os brancos e, até mesmo, os mulatos com a população camponesa negra pobre numericamente dominante. Os mulatos esforçavam-se para superar, por casamento, a “linha de cor” que os separava dos “brancos”, e para não se confundir racialmente com a população negra. A realidade racial jamaicana tinha diferenças de qualidade com a estadunidense, onde se definia como negro a quem tivesse, nem que fosse, apenas uma gota de sangue negro, ou seja, um afro-ascendente mesmo muito longínquo. [DU BOIS, 1923.]
Marcus Garvey frequentou escola integrada, onde crianças negras, brancas e mulatas, de ambos os sexos, conviviam sem problemas. Ele tomou consciência do que era o racismo apenas aos seus quatorze anos. Isso, quando uma sua namoradinha da escola, filha de família vizinha branca e de recursos, foi enviada para estudar em Edinburgh, Escócia, com a proibição de lhe escrever, por ele ser “negro” e, certamente, pobre. Seus colegas e amigos brancos, do sexo masculino, quando cresciam e progrediam socialmente, passavam a desconhecê-lo. [GARVEY, 2017, p. 2; LAWLER, 1990, 30 et seq; JOHNSON, 2019, p.14.]
Negro e Pobre
O menino Garvey cresceu no seio de família negra e pobre. Seu pai, empregava-se como pedreiro, quando havia trabalho, e vivia da agricultura, tendo perdido as poucas terras familiares em disputas judiciais. Diácono da Igreja Metodista local, leitor habitual, possuía uma pequena biblioteca e escrevia cartas para os vizinhos iletrados. Ele teria tido onze filhos, de três casamentos, sendo que apenas Garvey, o caçula, e sua irmã, Indiara, filhos de seu último casamento, sobreviveram à infância. Seu pai teria se deixado levar pelo abatimento e morreria em um asilo. Sua mãe, Sarah Jane Richards, casou-se, aos 42 anos, dois anos após o nascimento de Marcus, e passou, muito cedo, a contribuir, com seu trabalho, ao sustento da família. Os Garvey reivindicavam orgulhosos serem negros puros, descendentes de quilombolas.
A escola primária, Marcus Garvey frequentou no Colégio Metodista de St. Ann’s Bay, e alguns anos de escola secundária, talvez apoiado por um tio, a quem ajudava na contabilidade de seu negócio. Pequeno, baixo, tendendo à obesidade, jamais tido como bonito, tocava órgão em igrejas e entrava escondido na pequena biblioteca do seu pai que, apesar de o tratar duramente, o teria influenciado, com as suas inquietações que jamais conseguiu materializar, em um ambiente social e intelectual opressivo, sobretudo para a população rural negra e pobre. [JOHNSON, 2019, p.6.]
Em 1903, aos quatorze anos, após seu pai ter abandonado sua mãe, para ajudar no sustento da família, Garvey entrou como aprendiz de tipógrafo na oficina de um seu padrinho de batismo, Alfred E. Burrowes, o que influenciou fortemente sua vida. Nas tipografias tradicionais, com o texto manuscrito à mão, o tipógrafo colocava, manualmente, em linhas, parágrafos, etc., as sequências de letras, espaços, etc. moldados em ferro. Apenas em fins do século 19, os tipógrafos datilografavam os textos em máquinas imensas, linotipos, que fundiam, em chapas de chumbo, os textos a serem publicados. [LAWLER, 1990, 17 et seq; DU BOIS, 1923; ; BENJAMIM. 2010. 17 et seq.]
Trabalhadores cultos
O tipógrafo ou o linotipista era um trabalhador alfabetizado, que lia e relia os textos que preparava para a impressão. Produzindo avisos, revistas, jornais, livros, as tipografias e gráficas eram locais aonde acorriam jornalistas, escritores, políticos, intelectuais. Os tipógrafos e linotipistas, até o desaparecimento da profissão pelo avanço tecnológico, eram operários cultos, combativos e, não raro, organizados e politizados, pois, em geral, conscientes e mal pagos.
Em 1922, entre os nove fundadores do PCB, na cidade de Niterói, no Rio de Janeiro, não havia operário metalúrgico ou têxtil, das principais classes proletárias de então. Mas havia um linotipista, João Jorge da Costa Pimenta [1888-1976], inicialmente anarquista, após comunista e finalmente, trotskista. Ele participou da fundação da Liga Comunista Internacionalista, que surgiu, em 1931, com o rompimento de comunistas de esquerda com o stalinismo. A formação profissional de Garvey preparou-o para o jornalismo, para a fundação de publicações, para as questões políticas de sua época.
Desde jovem, Marcus Garvey revelaria alma de andarilho, viajando por não poucos países das Américas, à procura de trabalho. Nesses périplos, empregava-se no que fosse necessário. Em 1904, foi trabalhar na sucursal aberta por seu padrinho em Port Maria, vila de alguns poucos milhares de habitantes, centro administrativo da região em que nascera. Em 1905, com dezoito anos, transferiu-se para Kingston, capital da colônia jamaicana, na costa sudoeste da ilha, então com algumas dezenas de milhares de habitantes. [[JOHNSON, 2019, p13.]
Iniciação sindical e política
Em Kingston, com carta de recomendação de seu padrinho, teria se empregado no departamento gráfico de empresa exportadora – P.A. Benjamin Manufcturing Co. Em 14 de janeiro de 1907, sobreveio um grande terremoto, que degradou as já difíceis condições de vida dos trabalhadores e populares. Em novembro de 1908, eclodiu greve dos tipógrafos, por aumento de salários, da qual Garvey participou. A greve fracassou e ele teria sido despedido, encontrando colocação na Imprensa Oficial britânica local. Em inícios de 1910, fundou uma pequena revista, Garvey´s The Watsch Man, que teria tido apenas três edições. [Historydraft; JOHNSON, 2019, p.20.]
Em março de 1909, S. A. G. Cox, advogado, discriminado, na obtenção de um posto, por sua cor, apesar de ser mulato claro, em associação com H. A. L. Simpson, fundam o Clube Nacional, de curta vida, que tinha, em seu programa, a luta pela independência da Jamaica, ao modo do Canadá e da Austrália; o fim da discriminação racial e da política colonial inglesa; o reconhecimento dos sindicatos; a distribuição das terras públicas entre os camponeses; a proibição de importação de coolies asiáticos, o que deprimia os salários dos trabalhadores. Com sede em Kingston, as propostas do clube repercutiram na América Central.
O Clube Nacional seria restrito aos jamaicanos e seu quinzenário, também de curta vida, “Nosso próprio”, [“Our Own”], publicaria uns três mil exemplares. Garvey teria participado, com destaque limitado, do movimento, até porque viajou, em fins de 1910, para Costa Rica, sempre à procura de trabalho. Estabeleceu, porém, relações com seu fundador e com os principais integrantes do Clube, alguns dos quais se juntariam, mais tarde ao seu movimento. S. A. G. Cox era admirador do movimento nacionalista irlandês, pelo qual Garvey também se interessou. Sua participação como o impressor de “Our Own” teria sido sua primeira experiência com uma publicação essencialmente política. [LAWLER, 25; BENJAMIM. 2010. p.24; JOHNSON, 2019, p.20.]
Na última edição do jornal, em 1 de julho de 1911, S. A. G. Cox, proporia: “Os negros e mestiços na Jamaica somente podem ter esperança de melhorar suas condições quando se unirem aos negros e mestiços dos USA e com os das outras Índias Ocidentais e na realidade, com todos os negros do mundo.” Proposta de união mundial de negros e mestiços pela progressão social e política retomada por Garvey, que deixou, entretanto, os mulatos fora da sua conclamação. [Lewis, apud RABELO.]
Na América Central e do Sul e Inglaterra
Em fins de 1910, com 23 anos, talvez acompanhado por um tio, Marcus Garvey viajou a Costa Rica, para se empregar nas tarefas de administração de uma plantação, contribuindo para uma pequena revista bilíngue “La Nación”, tendo sido preso devido às denúncias que publicou. Na América Central, observou indignado que as condições dos trabalhadores negros eram ainda piores do que na Jamaica. Mudando-se, a seguir, para o Panamá, onde as obras do Canal atraíam trabalhadores de toda a região. Ali, também, encontrou a mesma situação, quanto aos trabalhadores negros. [JOHNSON, 2019, p.22.]
No Panamá, no porto de Colón, teria organizado outra publicação, “La Prensa”. Sempre à procura de trabalho, teria visitado a Guatemala, a Nicarágua, o Equador, a Colômbia e a Venezuela. “Em todas essas repúblicas de língua espanhola, havia trabalhadores das Índias Ocidentais que deixaram suas ilhas super povoadas por causa do desemprego e da pobreza para trabalhar” na América Central e do Sul. [IdentidÁfrica, 07.06.2022.]
Em 1912, Marcus Garvey partiu para a Inglaterra, tendo sua passagem sido paga pela irmã, Indiana, empregada doméstica ou governanta dos filhos de uma família jamaicana rica. Garvey teria trabalhado nos arredores de Londres, em Cardiff e em Liverpool, entre outras atividades, na estiva do porto. Aos domingos, frequentava a famosa “Speaker’s Cornes”, em Hyde Park, onde todos podem discursar sobre o que quiserem, menos ofender o rei ou a rainha, por que, segundo a tradição, eles não podem vir se defender. Matriculou-se em uma escola comunitária para trabalhadores, assistindo algumas aulas de Direito e Filosofia. [JOHNSON, 2019, p.6.]
Marcus Garvey teria assistido a debates da Câmara dos Comuns e frequentado o British Museum. Suas leituras levaram-no a se tornar um grande admirador de Napoleão e, na grande biblioteca, teria se maravilhado com a autobiografia de B. T. Washington, Up from slavery, de 1901. [GARVEY, 2017, p. 2]. Lendo a obra, segundo revelou, teria tomado a decisão de se tornar um líder negro. A vida de B.T.Washington e sua proposta de escolas profissionais apontavam-lhe um eventual caminho de sucesso para ele, negro, sem relações, oriundo de uma família sem recursos. Marcus Garvey é o responsável por boa parte dos dados sobre esse período de sua vida, relatada em um sentido apologético.
Viajando pela Europa
Em Londres, Marcus Garvey trabalhou como auxiliar de escritório na revista “The African Times and Orient Review” [1911-1919], publicação mensal, pan-asiática e pan-africana, dedicada às “pessoas de cor”. O editor da publicação, Duse Mohammed Ali [1866-1945], jornalista e ator egípcio, de mãe sudanesa, escrevera In the Lands of Pharoah: a short history of Egipt from the fall of Ismail to the assassination of Boutros Pasha, de 1911, a primeira história do Egito escrita por um nacional. [ALI, 1911.] Também ele colaboraria, mais tarde, com a publicação “Mundo Negro”, de Marcus Garvey.
Mohammed Ali participara do “Primeiro Congresso Internacional da Raça”, reunido em 1911, na Universidade de Londres, por quatro dias, com, talvez dois mil participantes. No congresso, ele compreendera a urgência de uma publicação pan-africana e pan-oriental, críticando sobretudo o colonialismo inglês e europeu. W.E.B. Du Bois participara daquele evento.
Em outubro de 1913, Garvey publicou o artigo “As Antilhas britânicas e o espelho da civilização”, na revista de Mohammed Ali, onde propunha que “rápido se produzirá uma transformação na história das Índias Ocidentais”, e o povo que nela “habita […] será o instrumento” que reunirá a uma “raça dispersa”, a fim de fundar no futuro um “império no qual o sol brilhe incessantemente”, como no “Império do Norte”, ou seja, a Inglaterra. [TÊTÊVI, 1995, 29; ; BENJAMIM. 2010. p. 26.]
Com a bala na agulha
Na Europa, Marcus Garvey visitou a França, a Itália, a Espanha, a Áustria, a Hungria e a Alemanha. Em 8 de junho de 1914, partiu de volta, de Soupthampton, para a terra natal, onde aportou em 15 de julho. [GARVEY, 2017, p. 3.] Em 1 de agosto, cinco dias após seu retorno, data do fim da escravidão na Jamaica, fundou, com Amy Ashwood, jamaicana, dez anos mais jovem, com quem se casou, em 1919, a “Associação Conservadora Universal para o Progresso do Negro” [“Universal Negro Improvement Association and African (Imperial) League”, [UNIA]. [GARVEY, 2017, p. 3.] Tinha, então, 27 anos. A seguir, retirou a palavra “Conservadora” do nome da associação.Amy Ash wood passa a ser a secretária-geral da UNIA.
A denominação da organização teria sido escolhida durante a viagem, quando se informara superficialmente sobre a realidade africana. Anos mais tarde, propôs que os objetivos da associação eram “organizar todos os povos negros do mundo em uma grande entidade e estabelecer um país e governo [negros] absolutamente próprios”. [BENJAMIM, 2013, p.13; JOHNSON, 2019, p.30.] Com o início da guerra, Garvey teria anunciado a adesão da UNIA ao Império Britânico, ao rei Jorge V e ao esforço de guerra, que ele apoiou ativamente. [HISTORYDRAFT]
O pontapé inicial do projeto de Marcus Garvey, de se transformar em liderança negra, deu-se influenciado, sem reflexão mais sistemática, pela realidade que conhecera em suas viagens e, sobretudo, por sua vivência na Jamaica, como negro. Na construção de seu movimento, se apoiou sobremaneira em sentimentos da comunidade camponesa negra e pobre, discriminada por brancos e, também, por mulatos, ricos ou se esforçando para enricar. Sentimentos aprendidos apenas no plano racial, ignorando-se as raízes sociais. Na Jamaica e nos Estados Unidos, os camponeses negros antilhanos imigrados seriam sua principal base de apoio.
Visão epidérmica
Ao propor a união de todos os negros, Marcus Garvey definiu-os essencialmente em oposição ao branco. Em sua apreensão epidérmica do que vivera e vira, ignorou as múltiplas singularidades entre e no interior das comunidades nacionais afro-descendente das Américas. Quanto à África, a simplicidade de seu “pan-africanismo” tinha raízes no seu e desconhecimento das infinitas riquezas e diversidades das comunidades africanas. Era claro seu euro-centrismo, ao sonhar com uma colonização das populações africanas, vistas por ele como atrasadas, pelos negros americanos. [RABELO, 2013, 499.]
Em geral, as biografias de Marcus Garvey são pobres sobre os dezenove meses que passou na Jamaica, tentando avançar a UNIA que, muito logo, encontrou-se “em dificuldades econômicas”. Em verdade, fracassara na fundação de uma escola agrícola, ao estilo da criada por B.T. Washington e criou animosidade mesmo entre seus seguidores, ao viver, ele e Amy, das doações obtidas para a escola. [JOHNSON, 2019, p.30.] Em um seu escrito biográfico de setembro de 1923, ele propôs que o programa da UNIA foi mal recebido, sobretudo pela comunidade mulata de classe média, que se negava a ser definidas como “negra”, como ele propunha. Ela exigia, ao contrário, que fosse considerava e tratada como ou quase como branca.
Uma realidade que se teria modificado, relativamente, sem motivar adesão a UNIA, quando mulatos foram rejeitados ao se arrolar no exército inglês como oficiais e suboficiais, o que era proibido pelas normas inglesas. Garvey registra ter conseguido desenvolver sua organização apoiado, sobretudo, na “ajuda de um bispo católico, o governador Sir John Pringle; do reverendo William Graham, um clérigo escocês e de vários outros amigos brancos.” [GARVEY, 1917, 5.]
Se os mulatos jamaicanos mobilizavam-se para varar a relativamente permeável “linha de cor”, para serem tratados como brancos, as autoridade e os cidadãos britânicos se interessavam em fortalecer a mesma linha, diferenciando os brancos raízes dos mulatos, mesmo dos mais claros. Não seria a única vez que Marcus Garvey se apoiou em aliados brancos racistas para avançar suas propostas e interesses.
Em busca da Terra da Promissão
Em 23 de março de 1916, seguindo o provérbio de que ninguém é profeta em sua terra, Marcus Garvey partiu para os Estados Unidos. Alguns autores propõem que o objetivo era buscar apoio financeiro para fundar, na Jamaica, um Instituto Tuskegee, coração do império estadunidense de B.T. Washington, como ele já tentara e fracassara. Na Inglaterra, ele teria escrito e recebido convite do líder negro para ir aos USA e discutirem aquele projeto. [GARVEY, 2017, p. 3.]
Propõe-se também que ele viajou para Nova Iorque quando perdia prestígio, acusado de desviar em proveito próprio fundos da UNIA, certamente limitados. Possivelmente, pensava financiar sua pregação e necessidades com a arrecadação da organização que fundara. Marcus Garvey afirmou que partiu com a intenção de retornar à Jamaica.
Com maior pertinência, sugere-se que Marcus Garvey viajou com a decisão de se radicar em Nova Iorque, retomando o papel de liderança negra de B.T. Washington, falecido em 14 de novembro de 1915, quatro meses antes de sua viagem. Nesse momento, ele dispunha de organização e programa político, apontando em outro sentido. Explicação reforçada pela lembrança de alguns autores que Marcus Garvey desembarcara em Nova Iorque com alguns colaboradores. Na grande cidade, visitou lideranças e intelectuais negros conhecidos, como W.E.B. Du Bois, que ele e a UNIA receberam, sem muito tato, quando de sua visita daqui importante intelectual negro a Kingston, na Jamaica, em 1915.
Marcus Garvey empreendeu, a seguir, uma demorada visita de 38, dos então 48 estados do país, onde encontrou outras, segundo ele, ditas lideranças negras [“so-called Negros leaders”], que não teriam programas e viveriam da boa-fé do povo negro. Se propunha como um profeta desembarcado das Antilhas, para divulgar o verbo negro no País da Promissão! Durante o seu périplo, visitou o Instituto Tuskegee, apresentando, mais tarde, explicações variadas para não ter seguido no caminho de B.T. Washington. [GARVEY, 2017, p.5; TÉTÉ-ADJALOGO, 1995, p. 271.]
Sucesso surpreendente
Em fins de 1916, Marcus Garvey abriu, em Nova Iorque, no Harlem, uma sucursal da UNIA, que, devido ao seu sucesso quase imediato, ele afirmou ter abandonado o projeto de retornar à Jamaica. A escolha do Harlem não era aleatória. O antigo bloco de elegantes quarteirões de moradias de famílias brancas se transformara em local de residência de milhares de negros chegados das Antilhas e do sul dos Estados Unidos. Em 1914, viveriam ali em torno de 50 mil negros que, em 1930, já eram 200 mil, dos quais, uns 55 mil antilhanos. Nos anos 1920-30, esse micro-mundo negro conheceu singular desenvolvimento cultural, denominado de “Renascimento do Harlem”.
Nos primeiros tempos, a UNIA conquistou algumas centenas de aderentes, que deviam pagar 25 centavos de dólar ao mês. Marcus Garvey afirma que seriam entre 800 e mil, “muitos deles imigrantes das Índias Ocidentais”, com destaque para os jamaicanos. Logo, a UNIA cresceu, ajudada pela adesão de outras lideranças e associações negras. Em dezembro de 1917, a UNIA conhece uma cisão, rapidamente superada, em janeiro de 1918, quando teria alcançado 1.500 aderentes. Garvey manobrou com habilidade e foi eleito presidente da sede UNIA de Nova Iorque, deixando claro que não pretendia retornar à Jamaica. [GARVEY, 2017; BENJAMIM. 2010. p. 32; JOHNSON, 2019, p.42.]
O sucesso da UNIA não se explica pela pregação ou magnetismo de Marcus Garvey. Ela teria desmilinguido e possivelmente desaparecido, se a semente não tivesse sido lançada em um solo então fertilíssimo. B.T. Washington morrera quando já fracassava sua pregação de emancipação da população negra pelo exclusivo trabalho em atividades manuais especializadas, semi-especializadas ou não especializada. Sobretudo, quando o jamaicano pôs os pés na Terra da Promissão, fora precedido por uma imigração em massa de negros jamaicanos, antilhanos, sulistas, devido à expansão da oferta de trabalho e o envio de operários brancos para a I Guerra Mundial.
Em 1919, após o fim do conflito, centenas de milhares de soldados negros estadunidenses retornam ao país, desgostosos com o tratamento que haviam sofrido, antes, durante e após o fim da guerra. Os antilhanos emigrados, desraigados, comumente analfabetos, com os prejuízos trazidos de seus países contra os brancos e mulatos, teriam sido os mais fiéis seguidores de Marcus Garvey nos Estados Unidos. [DU BOIS, 1923, p. 541.]
No mesmo ano, com a UNIA com vento em popa, com milhares de membros e simpatizantes, Marcus Garvey fundou, em Nova Iorque, o semanário “The Black World”, pedra de toque da UNIA nos anos seguintes. Ele escreve que trabalhou gratuitamente para o semanário, nos primeiros tempos. [GARVEY, 2017, p. 6.] No final do seu primeiro ano, a revista publicaria umas dez mil cópias. E num arrojo singular, o jamaicano avançou a explosiva proposta da fundação de uma companhia marítima, que denominou de “Black Star Line”, e de uma corporação de empresas “Negro Factories Corporation”. Sem parar para retomar o fôlego, a UNIA comprou, no Harlem, uma velha igreja, criando um auditório para seis mil pessoas, o “Liberty Hall” [Salão da Liberdade]. Se seguiram, porém, poucos anos de vacas gordas. [JOHNSON, 2019, p.46.]
Expansão portentosa
Em outubro de 1919, George Tyler, um membro da UNIA, fere Marcus Garvey, com um revólver de calibre 38, na cabeça e na perna, em seu escritório, em Nova Iorque. Autores propõem que, nesse momento, era forte a luta pela direção da organização. Pouco sabemos sobre as razões precisas do atentado, já que George Tyler teria se suicidado ou sido executado na prisão. Em 1920, as propostas da UNIA começam a sair do papel. Nesse então, ela já teria umas trinta secções e, segundo Marcus Garvey, dois milhões de associados. Du Bois, cientista social negro de enorme destaque, propôs que, em 1920, a UNIA contaria com uns oitenta mil associados, com uns trinta a vinte e cinco mil pagando mensalmente suas cotizações,. [GARVEY, 2017, p. 6; DU BOIS, 1923.]
Em 1921, a UNIA alcançava o pináculo do seu sucesso. Marcus Garvey reivindica, sem travas no seu otimismo, para esse ano, seis milhões de aderentes em todo o mundo. “Estudos indicam que entre 1925 e 1927, nos Estados Unidos existiam entre 719 e 725 divisões [da UNIA], e se haviam disseminados por outros 41 países, 271 dependentes.” Uma “divisão” da UNIA podia se reunir em uma sede, com dezenas e mesmo centenas de associados, ou em uma casa particular, com alguns poucos membros associados. [BENJAMIM, 2013, p.35.]
Se estimarmos, em média, cinquenta membros pagantes por divisão, teríamos os 35 mil membros pagantes propostos por Du Bois. O certo e indiscutível é que Marcus Garvey se transformara, nesse processo, no dirigente político negro mais performático entre as classes populares estadunidenses, ainda que, como proposto, os camponeses negros jamaicanos e antilhanos imigrados fossem seus mais irrestritos apoiadores. [TÉTÉ-ADJALOGO, 1995, p.268 et seq.; BENJAMIN, 2013; DU BOIS, 1923.]
III. Convenções internacionais
Em 20 de agosto de 1920, Marcus Garvey promove, sempre no Harlem, durante um mês, a “Primeira Convenção Internacional dos Povos Negros”, com delegados dos mais variados pontos dos Estados Unidos, da América Central, das Antilhas e mesmo, alguns poucos, da África. Antes daquele encontro, haviam ocorrido outros, de diversas naturezas. Entre 23 e 25 de julho de 1900, em Londres, reuniu-se a Primeira Conferência Pan-africana, chamada pela African Association, que contara com a presença de W.E.B. Du Bois. [TÉTÉ-ADJALOGO, 1995, p.56 et seq; JOHNSON, 2019, p.13.]
Em 1911, também em Londres, se reuniu o “Primeiro Congresso Internacional das Raças” que, mesmo não sendo centrado na questão negro-africana, reuniu lideranças pan-africanistas, entre elas, W.E.B. Du Bois, que se destacaria no evento. [Idem, 64.] De 17 a 19 de abril de 1912, ocorrera uma “Conferência Internacional sobre o Negro”, realizada no Instituto Tuskegee, no Alabama. O encontro, com uns cem delegados, muitos deles teólogos e missionários, tinha como objetivo estender à África Negra a rede de escolas impulsionadas por B.T. Washington, que patrocinou o encontro [PARQUE, 1912, p. 117-120.]
“Primeira Convenção Internacional dos Povos Negros” foi chamada e dirigida pela UNIA e por Marcus Garvey que, nela, foi entronizado como soberano de seu breve e fantasioso reinado, que propunha materializar, em pequeno, o que ele sonhava fazer, em grande, na África Negra. Foi destaque na Convenção o desfile, pelas ruas do Harlem, de 1 de agosto, das diversas legiões militares da UNIA, a saber, a “Legião Africana Mundial”; o “Exército Motorizado” e a “Cruz Negra”; o “Corpo Juvenil” e o “Corpo voador da Águia Negra”. Os integrantes dos destacamentos vestiam vistosos uniformes, com os oficiais, à frente, portando espadas.
Marcus Garvey participou do desfile como um soberano, no banco de trás de um automóvel aberto, cingido de um chapéu emplumado, vestindo pesado uniforme militar azul, com rendas e cordões douradas, portando uma espada. No peito, levava uma medalha. No mesmo dia, foi ovacionado no Madison Square Garden II, portando uma toga aos ombros, púrpura, verde e ouro. Diante de alguns milhares de ouvintes, prometeu libertar cada centímetro do território africano à frente de exército de quatrocentos mil homens. Em 1927, ele escreveria que, com a Convenção, o “nome de Garvey começou a ser conhecido como líder de sua raça”. O que motivou, também segundo ele, que lideranças, com destaque para os “negros de cor clara”, conspirassem para sua queda. [GARVEY, 2017, p. 7, 8.]
Catarse liberatória
O público e os seguidores de Marcus Garvey eram formados sobretudo por antilhanos imigrados e negros chegados do Sul, não raro analfabetos e desterrados. Um povo humilhado e diminuído, desde sempre, pelas instituições civis, pela cultura dominante, pelas condições de existência e, no caso dos afro-sulinos, pela violência das instituições, dos patrões, dos supremacistas brancos, sintetizada no Apartheid.
O desfile da UNIA, com suas coortes uniformizadas, liderada por um potentado negro, garboso e vistosamente vestido, transmitia aos participantes e assistentes ao evento, orgulho da raça e sentimentos de força e pertencimento a um poderoso movimento em marcha. Viviam catarse liberatória coletiva, ainda que sem desdobramento e continuidade, que invés de apontar para o futuro, imobilizava-os. Marcus Garvey prometia-lhe como solução de seus sofrimentos uma fantasiosa transferência para a África Negra, conquistada por suas coortes.
A marcha triunfal da UNIA não foi o primeiro e, nem de longe, a mais numerosa, quando aos participantes e expectadores negros. Em 17 de fevereiro de 1919, a parada de regresso do 369 Regimento Negro do exército estadunidense, chegado da Europa, teria reunido, segundo alguns autores, até um milhão de assistentes. Em outras grandes cidades, se repetiram paradas congêneres. Nelas, desfilavam ex-soldados negros, ´´marcados com suas experiências de guerra e com o seu tratamento no pós-guerra”. [DU BOIS, 1923.] Todas essas demonstrações de força, como a da UNIA, não produziram maiores desdobramentos sociais e políticos.
Estado Africano Semi-absolutista
A ordem que Marcus Garvey pretendia criar, na África, e impôs, na UNIA, era autoritária e anti-democrática. Em 1937, enquanto Mussolini invadia a Etiópia, ele registrou a sua admiração pelo Duce, a se propôs como precursor do fascismo. [GARVEY, 1967, p. 12 e 72; RABELO, 2013, p.505.] Segundo ele, o “Governo deveria ser absoluto e o chefe […] completamente responsável por si e pelos atos de seus subordinados”. Defendia que um presidente eleito “deveria ser dotado com absoluta autoridade para nomear” os responsáveis de seu governo. [GARVEY, 1967, p. 74; RABELO, 2013, 508.]
Na “Convenção”, Marcus Garvey se fez aclamar como o primeiro Presidente Provisório da África, à frente de um governo no exílio, pronto para assumir o poder quando da libertação da África pelos exércitos negros da UNIA. Africanos presente protestaram pelo presidente provisório da África ser um jamaicano, e não um africano nato. A população africana, é claro, não fora consultada quanto à designação de seu primeiro presidente.
E como as personalidades do movimento a serem honorificadas eram muitas, criou-se, uma ordem nobiliária para o futuro império africano. Entre outros, foram criados e ungidos o “Duque do Nilo”, o “Conde do Congo”, o “Visconde do Niger”, o “Barão do Zambeze”. Os enobrecidos foram, mui raramente, africanos. Criaram-se as ordens nobiliárias da “Etiópia”, do “Ashanti”, do “Moçambique” e um “suserano da Uganda”, com as respectivas capas e vestimentas vistosas e coloridas.
Sua Grandeza, o Potentado
Marcus Garvey, presidente da África, com o título de “Sua Grandeza, o Potentado”, passou a dirigir um Alto Conselho Executivo, de dezoito membros. Uma “Declaração dos direitos dos povos negros no mundo” foi votada e aprovada. Lideranças afro-estadunidenses
mobilizadas em prol da educação e da organização da população denunciaram duramente Marcus Garvey pela manipulação rústica, carnavalesca e populacheira que inebriava o povo negro simples e o desviava da luta por seus direitos desrespeitados.
Entre essas organizações criticas a Garvey se destacava a “Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor” [NAAPC], onde militavam negros, brancos, mulatos, judeus. W.E.B. Du Bois era o editor da principal publicação daquela organização. Marcus Garvey rebatia as críticas definindo-as sobretudo como provenientes de segmentos elitistas do movimento negro. As “Convenções” da UNIA seguiram sendo realizadas, já sem o brilho inicial, com sucessos e repercussão decrescentes. Mesmo antes da morte de Marcus Garvey, sucederam-se rupturas e dissidências na organização. [TÉTÉ-ADJALOGO, 1995, p. 271.]
A segunda “Convenção Internacional” se reuniu, durante todo o mês de agosto de 1921, sem o esplendor da primeira. Nesse momento, como veremos, a perda sucessiva e inexplicável de navios da “Black Star Line” feria o prestígio do fundador da UNIA. Repetiram-se os desfiles, os comícios e foram criadas novos títulos de nobreza masculinos e femininos. Realizaram-se sessões noturnas de fervorização dos presentes sobre a doutrina da UNIA e a direção e os ensinamentos de Marcus Garvey.
Irmandade de Sangue
O grupo negro radicalizado pan-africanista, o “African Blood Brotherhood” [“Irmandade de Sangue Africana”] foi expulso do encontro, como “bolchevista”, por denunciar a contradição entre a grandiloquência de muitas propostas da UNIA, com a ausência de orientação política para a população negra. Denunciou também a proposta de Marcus Garvey de que se podia ser fiel a uma bandeira de uma nação opressora e lutar, ao mesmo tempo, contra ela. Na Jamaica, Marcus Garvey apoiara a adesão da população negra aos exércitos ingleses, quando da I Guerra Mundial, como vimos.
O BBB fora fundado, em 1919, por Cyril Valentine Briggs, mulato claro, caribenho, radicado nos USA, que defendia -e promovera- a defesa armada da comunidade negra no Sul. O BBB propunha, também, a formação de um “grande exército pan-africano” para a libertação da África Negra, programa avançado retoricamente por Marcus Garvey. Cyril Briggs [1888-1966] confluiria, em 1921, no Partido Comunista dos Estados Unidos, por apoiar a política bolchevique das nacionalidades na URSS.
O Partido Comunista dos Estados Unidos, nos primeiros tempos, sem se confrontar com a UNIA, apoiava a proposta da expulsão dos imperialistas da África, de defesa da autodeterminação dos povos africanos, sem, porém, interromper a luta dos povos negros nos Estados Unidos e em todo mundo por seus direitos. [BRIGGS, 1921; TÉTÉ-ADJALOGO, 1995, p.75; The Liberator, outubro de 1924.]
IV. Black Star Line: o Titanic de Marcus Garvey
Capitalismo negro
Em 1919, à espera e para preparar a pátria africana, Marcus Garvey propôs a fundação de uma “Corporação Negra Industrial”, que consolidaria múltiplas iniciativas de “capitalismo negro”, com destaque para lojas de alimentos; lavanderias; hotéis; restaurantes; sorveterias; salas de diversão, editoras, manufaturas, etc. Os recursos foram obtidos vendendo ações aos militantes e simpatizantes da UNIA, no valor de cinco dólar cada uma, ou seja, uns 120 dólares atuais. A venda das ações foi amplamente publicizada no semanário “O Mundo Negro”. [BENJAMIN, 2013,p. 40.]
A “Corporação Negra Industrial” não se tratou de uma ação pioneira de “empreendedorismo negro”, como tem sido proposto. Desde o século anterior, haviam surgido e se consolidado milhares de negócios, pequenos, médios e mesmo de grande porte, de todos os tipos, de propriedade de afro-estadunidenses, sobretudo nas grandes cidades do Norte. A UNIA almejava consolidar um núcleo corporativo comercia-industrial negro, no seio da ordem capitalista geral estadunidense, tendo como mercado a população negra.
Para além de sua retórica nacionalista e racista negra e a fantasia de fundar uma nação poderosa na África, era o caráter nitidamente burguês-capitalista que organizava o programa proposto por Marcus Garvey. Ele declararia que o “capitalismo é necessário para o progresso deste mundo e aqueles que são insensatos e só desejam se opor ou lutar contra ele são inimigos do avanço humano”. Na UNIA, Garvey sempre se desdobrara para reprimir qualquer deslize sindicalista, socialista ou esquerdista. [RABELO, 2013, 505.]
Muito fumo, pouca lenha
Também o sucesso da proposta da fundação de uma Corporação negra foi pífio, apesar de alavancado pelas doações de militantes e admiradores do movimento. As iniciativas se restringiram à fundação e administração de alguns super-mercados, restaurantes, barbearias, uma editora, etc., comumente deficitárias.
Confiando no racismo das classes dirigentes estadunidenses, Marcus Garvey esperava que a repatriação do negro estadunidense fosse financiada pela população branca e pelo Estado. Também em 1919, como proposto, anunciou a fundação de uma companhia de navegação, a Black Star Line Incorporation. Segundo ele, a companhia de navegação facilitaria a migração em direção da Libéria e estabeleceria trocas econômicas e sociais entre os negros de todo o mundo. As poucas viagens dos navios da Black Star partiram dos Estados Unidos em direção ao Caribe, para a alegria extrema dos seus apoiadores daquelas regiões.
O lançamento da Black Star Line e, sobretudo, a compra do primeiro navio “deixaram seus críticos e oponentes sem fôlego”. “O anúncio foi eletrizante mesmo para quem não acreditava em Garvey”, nas palavras de Du Bois. [DU BOIS, 1923.] A operação desmedida e voluntarista, foi um verdadeiro Titanic para Marcus Garvey e a UNIA.
Afundação geral
A compra de navios velhos e superfaturado, uma gestão inepta, esbanjamento de recursos e falcatruas de assessores negros e brancos, mergulhou a companhia em uma sequência de fracassos estrondosos e de perdas milionárias, que deprimiu o prestígio de Marcus Garvey e facilitou o ataque do FBI a ele e à UNIA.
Em 27 de junho de 1919, a Black Star Line foi incorporada, no pequeno estado de Delaware, com um capital inicial de quinhentos mil dólares, dividido em cem mil ações de cinco dólares cada. O baixo valor unitário da ação permitia que os militantes e simpatizantes da comunidade negra pobre comprassem os papéis, para apoiar a iniciativa e não como investimento. Ações foram vendidas no Caribe e, mesmo, na África, com destaque para a Nigéria. Marcus Garvey assumiu a presidência da companhia. [GARVEY, 2017, p. 6.]
Em setembro de 1919, os administradores da Black Star Line compravam por 165 mil dólares um velho carvoeiro, SS Yarmouth (1887), que se pretendeu rebatizar como SS Frederick Douglas. Ele não valeria a metade do pago, sendo o seu comandante negro, responsabilizado a seguir pela falcatrua. Após três viagens, em três anos, para o Caribe, semi-inutilizável, imobilizado, penhorado, foi vendido em leilão, em 1921, por US$ 1.625! Raras vezes tanto resultou em tão pouco. Em fevereiro de 1920, o capital da Black Star Line foi elevado a dez milhões de dólares, a ser integralizado com a venda de novas ações. [JOHNSON, 2019, p.75.]
Excursões fluviais
Em abril de 1920, foi comprado, por 65 mil dólares, um pequeno iate a vapor, SS Kanawha (1899), construído para um magnata, utilizado durante a guerra mundial, outra vez superfaturado. Igualmente velho, ele exigiu quase o valor de compra em equipamentos para navegar. Batizado de SS Antonio Maceo, o herói mulato cubano da luta pela independência, o iate a vapor partiu finalmente, em junho de 1920, para o alto-mar! Ele naufragou ou foi abandonado nas costas cubanas. Em fevereiro de 1922, ficou para sempre imobilizado.
Com o dinheiro já curto, optou-se pela compra de uma chata fluvial, SS Shadyside, por 35 mil dólares, para ser utilizada, durante o verão, em viagem recreativas no rio Hudson. Como uma andorinha não faz um verão, ela também naufragou e foi abandonada, em março de 1921. Até esse momento, a Black Star Line contabilizava talvez uma perda, em valores atuais, de até um milhão e duzentos mil dólares. [JOHNSON, 2019, p.78.]
Em 1921, a Black Star Line avançara 25.500 dólares pela aquisição do navio a vapor Orion, por US$ 250 mil dólares, de propriedade da United States Shipping Board. O depósito inicial foi perdido, já que não foi possível completar o pagamento. Em dezembro de1921, The Black Star Line suspendeu suas atividades comercias, entrando em estadofalimentar, com uma perda, em valores atualizados, de uns dez milhões de dólares. [FOHLEN, 1973: 54-57; DU BOIS, 1923.]
A Ressaca
A reunião de Marcus Garvey com a KKK, em Atlanta, repercutiu negativamente na própria direção da UNIA. O reverendo James Eason, da direção máxima do movimento, com o título de “Líder dos negros americanos”, criticara internamente a quela aproximação, tendo Garvey iniciado campanha de descrédito contra ele, acusando-o, entre outros pecados, de alcoolismo e de assédio sexual.
Em agosto de 1922, pouco mais de um mês do encontro de Atlanta, na “Terceira Convenção”, James Eason denunciou Garvey por aquela reunião, por incompetência administrativa e por promover o ódio racial. Entretanto, Garvey obteve a demissão de Eason, forçando a renúncia de toda a direção. Obteve, assim, o direito de designar os dirigentes da UNIA, antes eleitos. Alguns meses mais tarde, Eason foi assassinado, em uma igreja, denunciando, antes de morrer, os atacantes como garveystas. Acredita-se que estivesse preste a denunciar irregularidades de Garvey à Justiça. [JOHNSON, 2019, p.78.]
Na “Convenção” daquele ano, Marcus Garvey obteve, igualmente, o apoio para a fundação de uma nova empresa marítima, a “Companhia Marítima e Comercial da Cruz Negra” [“The Black Cross Navigation and Trading Company”]. Em janeiro de 1925, o quinto navio, rebatizado como SS Booker T. Washington, partiu para uma primeira viagem comercial em direção às Antilhas. Com o novo navio, esperava-se enterrar o literal naufrágio da companheira e dos navios anteriores.
Fracasso total
O SS B.T. Washington lançou-se ao mar mas a viagem não se concluiu, ao SS Booker T. Washington ser sequestrado pela Justiça para pagar dívidas da nova empresa. As razões do fracasso retumbante da Black Star Line foram diversas. Marcus Garvey, presidente da companhia, não tinha nenhuma experiência comercial e se servia da companhia como instrumento de propaganda. O lançamento da empresa não se deu a partir de um planejamento sério.
Os administradores das duas companhias, assim como o presidente, todos eles remunerados, eram inábeis e, comumente, corruptos. A gestão do negócio continuou até que o valor obtido pela venda das ações terminou. Marcus Garvey não teve pruridos em mentir aos acionistas sobre a situação da empresa. [JOHNSON, 2019, p.78.] Em 1923, Marcus Garvey escreveu que, com a Black Star Line, seu nome passou a ser conhecido nos “quatro continentes”, e a UNIA, a contar com quatro milhões de associados. A primeira afirmação era verídica, a segunda, fantasiosa. [GARVEY, 2017, p. 6.]
As empresas marítimas foram lançadas com objetivos publicitários, obtendo um sucesso para além das expectativas. Porém, o tamanho do fracasso da campanha naval da UNIA revelou, no mínimo, a inabilidade administrativa de Marcus Garvey e dos diretores da operação por ele escolhidos. O que respingou fortemente no comandante geral da operação e na sua organização. A depressão tornou-se maior com o naufrágio concomitante da operação “Back to Liberia”, como veremos a seguir. Mas, o que já é ruim, pode sempre piorar.
Em 1923, Garvey e três outros membros da direção da Black Star foram acusados de fraude postal, ou seja, de distribuir, através do correio estadunidense, propaganda mentirosa, para arrecadar fundos, vendendo ações da Black Cross Navigation. A publicidade era ilustrada por um navio que não pertencia à Companhia e não alertava aos eventuais compradores a situação semi-falimentar da empresa. Punha-se em marcha a máquina judiciária que enviaria para a prisão e expulsaria Marcus Garvey para sempre dos Estados Unidos. Toda a operação foi comandando pelo futuro FBI.
V. “Back to Africa”: Marcus Garvey, o Moisés Negro
Voltando para onde não se partiu
A UNIA e Marcus Garvey, o seu dirigente incontestável, consolidam-se quando o nacionalismo autoritário iniciava sua ascensão na Europa, com repercussão ainda limitada através do mundo. Mussolini e o fascismo triunfaram na Itália, em 1922, movimento pelo qual Marcus Garvey expressou admiração. Primo de Rivera governou ditatorialmente a Espanha de 1923 a 1930. Foram nesses anos, igualmente, que, após a Revolução Russa, de 1917, o comunismo e o marxismo espraiaram-se através do mundo.
O nacionalismo negro era uma pulsão antiga entre a população afro-estadunidense. A grosso modo, a principal bandeira da UNIA era a união mundial da diáspora negra e de seu retorno à África, onde se fundaria uma poderosa nação negra. Em 1929, um folheto da organização propunha: “A culminação de todos os esforços da UNIA. deve finalizar em uma nação negra independente no continente africano”. O “objetivo final” era de “ter uma nação poderosa para a raça negra. O nacionalismo negro é necessário. Significam o poder e o controle político.” [BENJAMIN, 2013,p. 35.]
Para dar algum conteúdo a essa pregação, Marcus Garvey propôs a consigna central de “Retorno à África” [“Back to Africa”]. A conquista de território africano para fundar o poderoso Estado negro seria realizado, como vimos, pela “Legião Africana Mundial”, pelo “Exército Motorizado” e a “Cruz Negra”, pelo “Corpo Voador da Águia Negra”. Esses destacamentos luziram-se sobretudo nos desfiles e tiveram oficiais nomeados, também uniformizados e distinguidos com condecorações diversas.
Libéria, Haiti, Canadá
Um retorno à África era proposta discutida pela população livre afro-estadunidense, desde inícios do século 19, se não antes, sendo por ela pouco acolhida, ao saberem que a África lhe reservava condições de vida ainda inferiores às que gozavam nos USA. Devido a essa certeza, Garvey propôs que, primeiro, partissem como pioneiros homens e mulheres instruídos e capazes de preparar, na África, comodidades mesmo limitadas para a população negra dos Estados Unidos. Por facilidade e tradição, Libéria foi o país escolhido, por Marcus Garvey, para fundar a poderosa nação negra.
Entre os destinos pensados por escravistas e abolicionistas racistas para livrar a nação estadunidense de sua população negra livre, vista como naturalmente inferior e fonte de agitação social, estavam sobretudo a Libéria e, em um grau menor, Serra Leoa, onde eram despejados os africanos de tumbeiros capturados pela Marinha Real inglesa, quando da repressão do tráfico transatlântico no século 19. Também foram propostos, como territórios-despejos dos negros indesejáveis, as Antilhas, o Haiti, o México, o Canadá e as terras selvagens do oeste estadunidense.
Desde inícios do século 19, em vez da Libéria, uma parcela muito minoritária da comunidade negra livre estadunidense optou, como eventual terra de liberação, pelo Haiti, pela América Central, e, sobretudo, pelo Canadá. Após o fim da Guerra Civil, em 1865, negros livres migraram para o Kansas e Oklahoma, fugindo da discriminação racial institucionalizada, que muito logo os alcançou. [TÉTÉ-ADJALOGO, 995, p.145 et seq.]
USA para os anglo-saxões
A Libéria foi iniciativa da “Sociedade norte-americana para enviar o povo livre de cor dos Estados Unidos colonizar terras no exterior”. A sociedade foi pensada, em 1816, e fundada em 1818, nas dependências do Congresso, em Washington D.C., apoiada e financiada por ricos escravistas sulinos. Em 1820, o primeiro presidente da Companhia tinha uns oitenta escravizados, que jamais libertou e os enviou para a África. [U.S. Federal Census for Truro Parish, Fairfax County Virginia p. 15.; CLEMENTI, 1974, p. 24.]
Em inícios do século 19, 250 mil negros livres viviam nos USA. Temia-se que eles liderassem a enorme massa de escravizados. O sonho de alguns escravistas ideológicos era que, após uma vida na escravidão, os negros livres partissem de volta para a África, transformando gradativamente os Estados Unidos em uma nação exclusiva dos anglo-saxões protestantes. Uma colônia afro-americana permitiria também bons negócios. [American Colonization, s.d.]
Em 1821, a “Sociedade Americana” comprou, sob coerção, de chefes africanos, por trezentos dólares, porção de terra na costa ocidental, onde surgiu a cidade de Monróvia, capital da colônia da Libéria. A região, em geral, insalubre, de clima equatorial, conhecia chuvas torrenciais na costa, seguida de estação seca e ventosa. No interior, dominam densas florestas equatoriais. A população nativa muito logo se opôs, como pode, à iniciativa.
É melhor o Haiti e o Canadá
Apenas uns doze mil negros livres partiram para a Libéria, de 1821 a 1867 – em média, poucos mais de 200 por ano, com muitos retornos ao país. A “Sociedade Americana” promoveu algumas poucas viagens coletivas e sobretudo pagou passagens para a África para quem para lá quisesse ir. A proposta foi duramente combatida por lideranças negras.
Em janeiro de 1817, uma reunião pioneira de três mil negros livres na Filadélfia, cidade nortista de forte população afro-estadunidense, se pronunciou cabalmente contra o retorno à África e se organizou para combater qualquer iniciativa para “desterrar” a população negra dos Estados Unidos. [DRAPER, 1969: 26] Entretanto, considerou que o Haiti e, sobretudo, o Canadá, fossem destinos possíveis, ainda que não aconselháveis. Alguns poucos milhares de negro-estadunidenses livres partiram para aqueles dois países. Durante a escravidão, o Canadá foi também refúgio de cativos escapados.
A colônia da Libéria marcou passo devido ao clima, à insalubridade, à falta de estruturas de acolhimento e à resistência dos africanos locais que viam suas terras invadidas pelos recém-chegados e pela “Sociedade Americana”. E foram, como vimos, poucos os negros estadunidenses que se decidiam a partir para o continente dos ancestrais. Em Monróvia, seguiram sendo desembarcados africanos libertados pelos navios da armada inglesa, de língua e nível cultural diversos.
Os primeiro colonos negros estadunidenses conformaram uma oligarquia que se perpetuou no poder, desprezando e explorando os nativos. Em algumas plantações comerciais que organizaram, serviram-se do trabalho escravizado. A República Livre da Libéria, formalmente independente em 1847, manteve-se sob o domínio econômico ianque, da Europa e da “Sociedade Americana”, dirigida por brancos, dissolvida apenas em 1964. [FOHLEN, 1973: 54.]
A UNIA vai à África
Marcus Garvey enviou, em 1920, 1923 e 1924, delegações da UNIA para a Libéria a fim de explorar a possibilidade da operação e de negociar, com Charles D.B. King (1920-1930), presidente do país africano. Foram prometidos o estabelecimento de relações comerciais, o envio de levas de colonizadores negros estadunidenses, a fundação de fábricas no país. A iniciativa contava com o apoio do governo estadunidense racista interessado na partida voluntária de estadunidenses negros para a África.[BENJAMIM. 2010. p. 41.]
Em 1920, um primeiro emissário, Elie Garcia, estabeleceu relações promissoras com as autoridades da Libéria e produziu um relatório público, extremamente positivo, e outro, secreto, para Marcus Garvey e dirigentes da UNIA. No segundo documento, propunha que as autoridades governamentais liberianas eram ineptas e preguiçosas. Recomendava, portanto, que, após se consolidar no país, devido àquela realidade, negros estadunidenses, sob a direção da UNIA, deviam comandar a fundação da nova nação na Libéria. [JOHNSON, 2019, p.65-8.]
Em 1923, a UNIA abriu uma embaixada simbólica em Monróvia, capital da Libéria. Garvey lançou coleta, de grande sucesso, de três milhões de dólares na época, para subsidiar a operação “Back to Liberia”. O governo liberiano e os representantes da UNIA escolheram Cap Palmas como o primeiro ponto de chegada dos imigrantes estadunidenses e um terreno de duzentos hectares foi doado pelo governo liberiano para que a UNIA iniciasse a operação.
Águas abaixo
O apoio que a operação recebera no Senado e motivou a oposição de lideranças negras estadunidenses e de governos coloniais europeus, assustados com a grandiloquência de Marcus Garvey, e temendo que os Estados Unidos estivessem por detrás da operação. Marcus Garvey primou pela enorme falta de tato diplomático. Pensava e verbalizava as intenções da UNIA de servir-se da Libéria como uma cunha na conquista da África Negra, através da implantação de empresas industriais que se alastrariam pelo continente, como uma mancha de óleo.
A UNIA começou a enviar técnicos, algumas máquinas, nomear funcionários. Prometeu transferir, em janeiro de 1922, sua sede central para a Libéria. Marcus Garvey já portava o título de presidente interino da África. O plano de conquista do continente registrava, por um lado, fantasia desvairada sobre as reais forças da UNIA e, por outro, desconhecimento monumental sobre a dimensão e complexidade do Continente Negro. Entretanto, as divagações de Marcus Garvey em conferências e artigos sobre a conquista da África inebriavam seus seguidores.
Os governos coloniais teriam inquirido o governo da Libéria sobre os planos de Marcus Garvey e, certamente, facilitado que o relatório secreto de 1920 chegasse às mãos do presidente liberiano. Em 26 de outubro de 1924, os dirigentes da Libéria declarou a oposição com o projeto da UNIA. Com o relatório, ele teria compreendido melhor as verdadeiras intenções de Marcus Garvey e da UNIA em relação à Libéria. Contribuiu para a ruptura da parceria o interesse dos membros do governo liberiano em obter vantagens da UNIA e de dirigentes dessa organização em realizar bons negócios particulares, entre eles, Marcus Garvey que buscou comprar terras no país africano. [JOHNSON, 2019, p.70.]
Fim da festa
Em fins de 1924, a UNIA vivia em plena ressaca, noticiada pelos grandes jornais e pela imprensa negra. Naquele momento, como veremos, a “Black Star Line”, a grande iniciativa da UNIA, encontrava-se em situação falimentar e Marcus Garvey, já condenado, recorria em liberdade de uma condenação de cinco anos de prisão. O governo liberiano retirou a concessão do terreno outorgada a UNIA, se apoderou das máquinas e materiais enviados para construir em Cap Palma o alojamento para a primeira leva de emigrantes da UNIA.
Com a ruptura das relações entre a UNIA e o governo liberiano, a operação “Back to Africa”, tendo como destino a Libéria, naufragou, como os navios da Black Star Line. O descrédito se apoderou de boa parte dos seguidores de Marcus Garvey, que viajara frequentemente pela Europa, mas jamais visitara África Negra. [BENJAMIN, 2013, p. 40.]
A profunda dissociação do negro-estadunidense com as instituições do Estado e da Nação, facilitava uma adesão meramente simbólica ao convite de reconstruir uma vida em uma terra livre, não racista, nesse caso, na África Negra, em geral, e na Libéria, em especial, região sobre a qual não se conhecia quase nada. A população negra tinha, entretanto, raízes entranhadas em suas regiões natais e nas comunidades em que haviam nascido e vivido, nos Estados Unidos.
O “Retorno à África” [“Back to Africa”] era uma proposta e um objetivo escapistas, mágico-fantasiosos, que seduzia a imaginação de uma população negra urbana, radicada no Norte, proveniente das Antilhas ou separada recentemente de suas raízes culturais, familiares, históricas natais, no Sul. O movimento da Grande Imigração, em direção ao Norte industrial, faminto de mão de obra, fora impulsionado pela militarização da economia, e pelos postos de trabalho deixados livres, transitoriamente, po centenas de milhares de trabalhadores brancos, mobilizados.
VI. Dormindo com o Inimigo: Marcus Garvey e a Ku Klux Klan
Contubérnio racialista
Marcus Garvey apoiava sua proposta de desterro voluntário do negro estadunidense na concepção de que a comunidade negra não tinha relação de pertencimento com sua terra natal. Seria, ao contrário, parte de uma comunidade negra internacional imaginada com raízes nacionais na África Negra, vista como um todo uniforme. Portanto, ele não deveria participar de partidos estadunidenses ou reivindicar direitos cidadãos em uma nação que não era sua, mas preocupar-se com sua transferência para o Continente Negro.
Uma política, por um lado, duramente atacada por lideranças negras que lutavam pelos direitos civis e sociais e, por outro, altamente valorizada pelos gestores do Apartheid, no Sul, e pelos racistas do Norte. Esses últimos designavam os membros da comunidade negra de “africanos”, um povo e uma raça em tudo estranhos a um país criado pelos anglo-saxônicos e a eles pertencente. Uma nação que, para além das elucubrações supremacistas, sobretudo quanto ao Sul, fora literalmente construída pelos trabalhadores africanos e afro-descendentes escravizados e livres. Por esses tempos, a comunidade negra oposta à emigração, começou a abandonar a designação de africanos pela de “negros”, para também registrar o pertencimento à terra em que haviam nascido, os Estados Unidos.
Em 25 de junho de 1922, Marcus Garvey levou ao extremo sua proposta de estranhamento da comunidade negra ao país em que nascera, encontrando-se, com Edward Young Clarke, o chefe máximo da Ku Klux Klan, no escritório daquela organização em Atlanta. A reunião amigável com o dirigente máximo da mais conhecida sociedade racistas estadunidenses, foi amplamente midiatizada, não apenas pela mídia negra. Mesmo que a Klan jamais tenha apresentado relato sobre as negociações, acredita-se que se pactuou a abertura do Sul para a Marcus Garvey em troca do combate da NAACP, a maior inimiga do Apartheid, pela UNIA. [JOHNSON, 2017, p.94-103.]
Explicando o inexplicável
Em 9 de julho de 1922, dias após se reunir com o chefe máximo da Ku Klux Klan, Marcus Garvey empreendeu ensaio de explicação para seu público, no Liberty Hall, em New York. No dia 15, a intervenção foi publicada no “The Negro World”, principal publicação da UNIA. A justificativa da esdrúxula reunião, para não dizer mais, é pobre, circular e se apoia em uma rústica e consciente distorção da realidade. Ela é, porém, informativa sobre a visão de mundo e objetivos de Marcus Garvey. [GARVEY, 2017, p. 74.]
Foi proposto que Marcus Garvey e a UNIA, em dificuldades econômicas, olhavam gulosos para o Sul, onde se encontrava a esmagadora maioria da população negra estadunidense, fortemente analfabeta e semi-analfabeta. Com o contubérnio midiatizado entre os chefes da UNIA e da Klan, Marcus Garvey procurara deixar clara a enorme concordância entre os dois movimentos.
Sobretudo, Marcus Garvey apontava para a importante colaboração e legitimação que a doutrina da UNIA podia prestar ao Apartheid e às classes dominantes sulinas. Ele esperava, assim, o apoio da Klan para o financiamento da Black Star Line, em dificuldades econômicas. Ao igual de B.T. Washington, que se movia entre os supremacistas brancos sulinos como um peixe na água, Marcus Garvey queria e pedia licença para nadar na piscina racista sulina.
Em busca da Terra da Promissão
A implantação da UNIA no Sul era econômica e politicamente imprescindível, para a consolidação do movimento. Marcus Garvey propunha no artigo citado: “O maior número de negros nos Estados Unidos da América vive abaixo da Linha Mason e Dixon […].” Três em cada quatro afro-estadunidenses viviam nos estados sulinos sob o tacão do racismo institucionalizado, mantidos na mais profunda exploração, incultura e opressão. Era ali onde penetrara mais fundo a vontade de buscar em outra região melhores condições de existência. [GARVEY, 2017, p. 74.]
Em torno de 1916, quando Marcus Garvey desembarcou em Nova Iorque, se processava a Grande Imigração da comunidade negra sulina em busca de trabalho no Norte. Como também vimos, boa parte dos seguidores de Garvey havia chegado do Sul à procura de trabalho. Entretanto, mesmo sofrendo o racismo institucional não sempre soft e pogrons terríveis que se sucederam nas cidades industriais do Norte, a comunidade negra criava raízes, aproveitava-se de todas as oportunidades que se abriam ou que abriam, sonhando e exigindo o que lhe era devido, nos Estados Unidos, e não em alguma região miserável da África Negra. Queria progredir, e não regredir. A notícia da reunião entre a UNIA e a Klan causou um escândalo nacional. Correu o boato que Marcus Garvey era membro da Klan. [GARVEY, 2017, p. 8.]
Não se tratava de um mero debate político e ideológico. A Klan teria nascido, imediatamente após o derrota da Confederação, na Georgia, fundada por ex-combatentes sulistas, com o fim de manter na submissão e no trabalho mal pago os cativos apenas libertados. Ela era responsável pelo linchamento e massacre de multidões de negro-americanos e, em menor número, de judeus, de chineses, de nativos e de brancos não racistas ou com laços afetivos inter-raciais.
Distorção da realidade
A aproximação à Klan começara alguns meses antes, com a imprensa da UNIA tentando explicar as ações da organização supremacista branca, já sob o espanto e a crítica de lideranças e a comunidade negra. A entrevista foi a conclusão dessa aproximação e, certamente, de negociações sobre as quais sabemos pouco. As razões da entrevista indecente seriam simples. Segundo Marcus Garvey, a Klan representava praticamente a totalidade da população branca dos Estados Unidos, sendo tão forte no Norte como no Sul. Ela seria o “governo invisível do país”. Duas afirmações falsas.
E Marcus Garvey seguiu, em sua explicação, construindo realidade fantasiosa segundo seus desejos e necessidades. Para ele, a Klan nada teria contra o negro, em especial. Buscava apenas proteger os interesses da raça branca nos Estados Unidos. Mobilizavam-se para que a “America” fosse um “país do homem branco”. No que teriam razão, explicava Marcus Garvey, já que a UNIA queria fazer da “África um país totalmente do homem negro”! [GARVEY, 2017, p. 74.]
O problema era que o desejo de construir uma nação de habitantes exclusivamente brancos violentava, com atos criminosos, os direitos da população negra estadunidense. A Klan era um movimento organizado para impor o terror ao negro através da prática da violência. E, justificar essa realidade, porque Marcus Garvey delirava sobre uma África pertencente aos negros de todo o mundo, sem consultar os africanos, era trocar uma galinha gorda, na mão, por um amontoado de nuvens, que, para Marcus Garvey, era uma revoada de pássaros.
Nada de branco com negra, de negra com branco
Segundo Marcus Garvey, o paralelismo na luta das duas organizações era mais profundo, estrutural. “[…] a UNIA está realizando exatamente o que a Ku Klux Klan está realizando – [perseguir] a pureza da raça branca no Sul”. E a UNIA ia mais fundo que a Klan, ao propor a “pureza da raça negra não apenas no Sul, mas em todo o mundo.” Portanto, nada de negro de namorisco com branca, de branca de namorisco com negro, no Sul, no Norte, no Mundo. Para a felicidade de todos, e a pureza racial, cada macaco em seu galho! [GARVEY, 2017, p. 74.]
As razões apresentadas da aproximação entre a UNIA e a organização racista eram patéticas e falsas. A Klan e os fundamentalistas propagavam a pureza racial do homem branco, pisoteando sobre milhões de negros estadunidenses. Marcus Garvey defendia a pureza racial negra agredindo apenas a inteligência dos que o escutavam e ofendendo, é certo, mulatos e mestiços, como fazia habitualmente. E, mais ainda, corroborava a propaganda dos fundamentalistas brancos, para cair nas suas boas graças.
O negro-estadunidense não podia ficar nos Estados Unidos, segundo Marcus Garvey. Ele propunha que a Klan lhe fizera “entender que a atitude deles se baseia na suposição de que este país foi descoberto pelo homem branco; este país foi primeiro povoado e colonizado por homens brancos” e que a Klan faria todo o possível para que assim continuasse. E Garvey não retrucou a esse argumento furado, calando, mais por oportunismo do que por ignorância, que a participação do africano e do afro-descendente na construção dos Estados Unidos, em graus diversos, se dera desde a chegada dos primeiros colonizadores.
De Braços com o Inimigo
Sendo minoria, e, sobretudo, visitante na terra em que havia nascido, o negro-estadunidense devia, portanto, fazer as malas e partir. Não havia que centrar forças no combate à Klan e ao racismo, ou reivindicar os direitos cidadãos negados. Devia se centrar no “Retorno para a África”, preparado pela UNIA. A consigna “Retorno para a África”, da UNIA, apoiava, nos fatos, a da “América para os brancos” dos supremacistas. Marcus Garvey alienava o que não era seu, pelo direito de ir pescar no Sul. [GARVEY, 2017, p. 74.]
Para avançar seus interesses, Garvey falsificava a realidade, pisoteando os interesses da comunidade negra. A Klan sequer representava a maioria da população do Sul e, menos ainda, do Norte. E as classes dominantes sulinas, certamente favoráveis à “pureza racial”, eram decididamente contra o abandono do Sul pela comunidade negra. Haviam lutado e perdido uma guerra em defesa dos seus negros. A organização sinistra nascera para manter eternamente no Sul o trabalhador negro, submetido e explorado.
Não se tratava de um diálogo diplomático entre as direções máximas do povo branco e negro, como Garvey propunha. Klan e a UNIA representavam apenas parcelas diminutas dos brancos e dos e negros, não possuindo direito em falar em nome da totalidade daquelas comunidades. Entretanto, o estrago fora feito. A UNIA era, não importando o que defendesse, uma organização de destaque da população negra do Norte. Seu principal dirigente fora ao Sul se abraçar, defender e se solidarizar com uma associação terrorista a serviço do Apartheid.
Desde o início.
Garvey propunha que todo branco era um racista visceral desejando e militando pela partida do negro estadunidense. Que o negro era uma minoria sempre à espera de ser ejetada do país em que nascera, mas que não lhe pertencia. Que a única solução era o retorno do negro estadunidense para a África, terra dos africanos, que já vira fracassar rotundamente aquela proposta na Libéria. Mas quando e por que, realmente, nascera essa proposta da UNIA?
A transferência de Marcus Garvey, em 1916, para os Estados Unidos, talvez deva também ser compreendida pela sua necessidade de encontrar um país que melhor se adaptasse, do que a Jamaica, às suas propostas de retorno à África e de separação radical de brancos e negros para manter a pureza racial. Na sua terra natal, após a Fundação da UNIA, em 1914, essa equação não funcionou. Ali, propor a partida dos negros para a África era uma sandice, já que a imensa maioria da população da ilha era negra, e sem mestiçagem.
Na grande ilha, Marcus Garvey deveria, ao contrário, seguindo sua visão racista de mundo, propor a expulsão dos pequenos magotes de brancos. E, se quisesse radicalizar, mandar com eles os mulatos e mestiços. Para tal, bastava seguir o exemplo do Haiti. Uma solução que ensejaria transformações sociais profundas, já que a propriedade da terra e dos bens de produção era monopólio dos ingleses, dos europeus e, mesmo, de mulatos e mestiços ricos.
A pregação da defesa da pureza racial não tinha sentido entre uma população de camponeses majoritariamente afro-descendentes. E a própria luta anti-racistas exigia mediações, em um país em que ele vivera até os quatorze anos sem conhecer o que era o racismo. O próprio Marcus Garvey confessou que sua pregação para estabelecer uma linha divisória mais rígida entre negros e brancos na Jamaica não prosperou entre os mulatos e os mestiços, e que ele encontrou apenas apoio e compreensão entre as autoridades britânicas da ilha, interessadas em fortalecer a “linha de cor”, como vimos.
Garvey Must Go
Após a reunião com a Klan, foi enorme a reação contra Marcus Garvey. Lideranças negras organizaram-se em comitê para agitar a consigna “Garvey Must Go” – [“Garvey deve partir”]. Exigia-se seu retorno forçado para a Jamaica, sua ida para a África ou para onde quisesse, desde que deixasse o país! O movimento se constituiu quando a UNIA realizava seu terceiro congresso internacional. A NAACP, com quase 4.500 seções em 1919, integrou-se àquele grupo de pressão. Marcus Garvey defendeu-se acusando a NAACP de elitista e que ela tentava silenciá-lo por perder milhares de militantes para a UNIA.
Mais tarde, em 1927, a NAACP e importantes lideranças negras apoiaram a ordem judiciária de expulsão de Marcus Garvey dos Estados Unidos. Em sentido contrário, lideranças do supremacismo branco e da Klan o visitavam na prisão e fizeram campanha contra sua deportação e, a seguir, por seu retorno aos Estados Unidos. Não queriam perder o seu valioso aliado.
O movimento negro organizado de oposição a Marcus Garvey contou com a adesão W.E.B. Du Bois, célebre intelectual e militante afro-estadunidense, de orientação socialista e pan-africanista, que quebrara lanças com B.T. Washington, em boa parte pelas mesmas razões. Marcus Garvey tentou desqualificar o seu crítico, acusando-o como um “mulato infeliz que lamenta cada gota de sangue negro nas veias”. Du Bois não participou da campanha “Garvey Must Go” e se declarou contra sua expulsão dos Estados Unidos. [RABELO, 506; TÉTÉ-ADJALOGO, 1995, p. 228 et passim; DU BOIS, 1923.]
Racista científico
Marcus Garvey seguiu mantendo públicas e sólidas relações com os supremacistas brancos que, no Sul, apoiados pela lei, atacavam e reprimiam qualquer ensaio de relações afetivas e matrimoniais inter-raciais, em prol da manutenção de uma população branca racialmente pura, política por ele defendida. A seguir, foi comum o intercâmbio de oradores racistas brancos e garveystas nas reuniões, assembleias e meeting das respectivas organizações.
Marcus Garvey abraçou o racismo científico explicitamente, ao apoiar a sua proposta de solução racial para os problemas sociais e políticos da população negra. Defendia as teorias da excelência das raças puras e a “pureza de ambas as raças”. Era contrário ao matrimônio inter-racial. Propôs, em 1923, que defender a igualdade entre as raças, “como fazem certos líderes de cor, para que negros e brancos se unam”, é “uma doutrina perversa e perigosa”, já que destruirá a “pureza racial” das raças negras e brancas. [GARVEY, 2017, p. 8.]
Marcus Garvey anatematizava a miscigenação racial e desqualificava o mestiço e o mulato, atacando-os comumente. Entretanto, B.T. Washington e Frederick Douglas, que ele apresentava como referências, eram mulatos. E ele, mesmo valorizando ser um negro puro, casou-se, em segundas núpcias, com uma mulata. Nos USA, a pregação racista da UNIA encontrava ampla recepção, sobretudo entre os camponeses emigrantes da Jamaica, onde eram discriminados pelos brancos e mulatos incorporados ou querendo se incorporar aos segmentos sociais superiores. Na nação dos Pais Fundadores, não havia a abertura da Jamaicapara mulatos, por parte de uma população branca majoritária.
Sob crescente pressão
Concomitante com o encontro com o dirigente da Klan, em 27 de julho de 1922, arvey separou-se de sua esposa e fundadora da UNIA, Amy Ashwood [1997-1969], em um divórcio tenso e midiatizado. O divórcio deveu-se à relação que mantinha com sua secretária e, a seguir, sua segunda esposa, Amy Jacques [1895-1973], jamaicana, mulata, nascida em família de classe média, mãe de seus dois filhos.
Durante o divórcio, voaram acusações não apenas de adultério, lançadas pelos ex-esposos. Segundo parece, Marcus Garvey não era muito amigo da fidelidade matrimonial. [GARVEY, 2017, p. 8.] Seu primeiro casamento, com Amy Ashwood fora o acontecimento social do ano no Harlem, celebrado por cinco ministros e com três mil convidados. Seu segundo casamento deu-se discretamente.
Seus desmandos político-ideológicos, o desastre econômico de suas iniciativas empresariais, seu atormentado divórcio, a acusação de mandante da morte do reverendo James Eason teriam iniciado a corrosão tendencial do apoio que ele e a UNIA gozavam. Sob pressão, Marcus Garvey teria passado a lançar mão de seus guarda-costas e do serviço de informação da UNIA para dirimir questões internas e externas. [JOHNSON, 2019, p.70; TÉTÉ-ADJALOGO, 1995, p.280.]
VII. A Estrutura da UNIA
A UNIA possuía bandeira vermelha, negra, verde e assumiu um caráter aparentemente paramilitar, o que deve ter assustado as autoridades estadunidenses, fortemente racistas. Seus núcleos locais reuniam-se em sedes alugadas ou em casa de algum membro, em geral, aos domingos à noite. Os núcleos deviam se autofinanciar e enviar uma colaboração para a sede central, sediada na Liberty Hall, em Nova Iorque. Os grupos novos deviam ser reconhecidos pelo centro. “As atividades incluíam debates; conversações com marinheiros, mercadores, profissionais, estudantes, reuniões itinerantes; campanhas de recrutamento; aulas de costura; bailes e concertos.” [BENJAMIN, 2013, p. 37.]
A UNIA possuía diversas organizações. A principal era a “Legião Universal Africana”, como vimos, na qual seus integrantes recebiam instrução militar sumária como futuros soldados da libertação africana. Nos Estados Unidos, o treinamento era feito com armas de fogo. Havia um corpo de guarda-costas, tendo como uniforme uma calça com listas vermelha e verde, que realizava a segurança de Marcus Garvey e dos atos da UNIA. Foi constituído um serviço secreto de informação, ligado diretamente ao dirigente máximo do movimento.
Mulheres jovens e adultas, integrantes do “Corpo Motorizado Pan-africano”, reuniam-se para treinamento militar e, sobretudo, para aprender a dirigir. Elas conduziriam os “carros, táxis e ambulâncias” quando das previstas guerras de “libertação na África Negra”, que permitiram fundar o futuro Estado negro. A “Black Cross Nurses” [Enfermeiras da Cruz Negra], criada e dirigida por Amy Ashwood, primeira esposa de Garvey. Durante a I Guerra Mundial, a Cruz Vermelha não aceitara enfermeiras negras. Semanalmente, enfermeiras negras ministravam cursos sobre os “primeiros socorros e cuidados médios” para as associadas leigas.
Águia sem asas
Foi criado um “Corpo Juvenil” e um “Corpo Voador da Águia Negra“ [“Black Eagle Flying Corps”], que não se materializou, por falta de aviões e pilotos. Para todos esses corpos eram designados oficiais, com os respectivos uniformes supercoloridos, condecorados habitualmente, o que fortalecia a adesão a UNIA e, sobretudo, a Marcus Garvey. [BENJAMIN, 2013,p. 38; RABELO, 515; TÉTÉ-ADJALOGO, 1995, p. 318.]
A UNIA organizava-se para regular as mais diversas esferas da vida pessoal e doméstica de seus militantes, dando-lhes um forte sentimento de pertencimento. Ela incentivava o casamento entre os membros da organização e seus filhos, apenas nascidos, recebiam certidão de nascimento do movimento. Eles eram chamados de “filhos da UNIA” e de “filhos de Garvey”, e enquadrados em todo uma programação.
As crianças e pré-adolescentes deviam decorar um poema de Garvey por semana, e escutavam histórias edificantes do grande chefe e de personalidades negras tidas como destaques. Os pais ralhavam com os filhos desobedientes, dizendo: “Garvey não gosta que faças isso!” A Cabana do Pai Thomás, de Harriet Beecher Stower, era leitura obrigatória. Deviam decorar igualmente o decálogo dos princípios da UNIA. As meninas recebiam para brincar bonecas negras, difusão de tal prática atribuída a UNIA. [BENJAMIN, 2013, p. 39.]
A UNIA jamais se auto-financiou com a rentabilização de seus investimentos – empresas, Black Star Lines, etc. Ela dependia do recrutamento incessante de membros, que pagavam uns 25 reais mensais, da venda de produtos [publicações, ações, etc.] e, sobretudo, das doações quando das reuniões semanais, de conferências, de campanhas de fundos. Seus custos de manutenção eram elevados, já que funcionava como uma empresa, remunerando os administradores, funcionários, oradores convidados, artigos encomendados para as publicações. Personalidades de destaque que se uniam a UNIA recebiam bônus em dinheiro. [JOHNSON, 2019, p.70.] Para Marcus Garvey e os dirigentes do movimento, a UNIA era também um negócio.
Igreja Ortodoxa Africana
A religião era esfera da vida da militância demasiadamente importante para ser deixada à margem do controle imposto pela UNIA. Em 1918, Marcus Garvey impulsionou a fundação de uma Igreja Ortodoxa Africana [“African Orthodox Church”], em função ainda hoje, sem muito brilho, nos Estados Unidos e na África Negra. Naquele ano, o reverendo antilhano George Alexander McGuire [1866-1934] foi nomeado capelão-mor da UNIA e promoveu a reunião de igrejas protestantes negras dispersas dos Estados Unidos, Canadá e Cuba que confluíram na Igreja Ortodoxa Africana, fundada em 2 de setembro de 1921.
George Alexander McGuire foi consagrado bispo pela Igreja Ortodoxa Grega e, mais tarde, arcebispo e, finalmente, patriarca, com o título de Alexandre I. Apesar da referência à ortodoxia, a pregação era essencialmente anglo-protestante. A Igreja garveysta, sob o controle negro, dirigia-se prioritariamente à população negra e africana, mas não rejeitava fiéis de outras cores.
Na nova Igreja, e no interessante catecismo universal que produziu, deus pai, Jesus, a Virgem Maria e os anjos eram negros e o demônio, logicamente, branco, em repetição do proposto por Chimpa-Vita, jovem profeta e nacionalista do Reino do Kongo, queimada viva pelos portugueses, em 1 de julho de 1706. [MAESTRI, 2022, p. 125.] A Igreja Ortodoxa Africana fundou um periódico, “The Negro Churchman”, que manteve o contato com as igrejas que fundou ou que aderiram a ela, nos Estados Unidos e no exterior.
A Igreja Ortodoxa Africano fundou um seminário teológico e se estabeleceu em alguns países da África. Já antes de sua fundação, havia enorme variedade de igrejas negro-estadunidenses protestantes, o que parece ter entravado o desenvolvimento da Igreja garveysta, que não teria superado, nos melhores tempos, os trinta mil fiéis. Não ter abraçado qualquer culto de matriz africana, mas privilegiado um credo cristão em negativo, é outro registro de que Marcus Garvey via a marcha em direção da terra de seus ancestrais também como um movimento de civilização ocidental da África Negra. [RABELO, 2013, 521.]
Jornais e Revistas
O destino conspirou em favor de Marcus Garvey quando, aos quatorze anos, ele foi enviado como aprendiz de tipógrafo. Formação profissional que lhe permitiu participar da produção de todo tipo de impressos. Sem jamais ter sido um escritor de talento, ele se distinguiu pela sua capacidade como editor de jornais e revistas, que permitiram levar até muito longe suas propostas políticas e ideológicas.
Marcus Garvey declarou pretender fundar uma rede de publicações, sob a direção da UNIA, que, em dez anos, abarcaria as “principais cidades dos Estados Unidos, Europa, África Ocidental e do Sul e em todas as Ilhas mais importantes das Índias Ocidentais”. Entre os seus sonhos, a divulgação de seu movimento por jornais e revistas com audiência internacional foi aquele que alcançou uma maior realização. [BENJAMIN, 2013, p.46.]
Em 17 de agosto de 1918, Marcus Garvey fundou o semanário “O Mundo Negro” [“The Negro World”], principal veículo de divulgação da UNIA, publicado em inglês, mas com artigos em francês e espanhol. O semanário se propunha expressar “unicamente os interesses da raça Negra”. Com de dez a dezesseis páginas, tinha uma editoria internacional e uma feminina, esta última de responsabilidade das esposas de Garvey. [FOHLEN, 1973, p. 55.] A publicação possuía uma discreta distribuição em alguns países da África.
Ao ser fundado, “O Mundo Negro” não aceitava publicidade de produtos para alisar o cabelo e clarear a pele, como a maioria das publicações negras. Posição abandonada, mais tarde, devido a problemas de caixa. Marcus Garvey pediu inutilmente que Du Bois escrevesse para o jornal, que abordava questões referentes à África, à diáspora negra e aos Estados Unidos. Na primeira página, publicava-se um editorial de Garvey.
O grande salto para adiante
O semanário participava ativamente das campanhas de venda de ações das empresas impulsionadas pela UNIA e da divulgações de seus encontros internacionais. Distribuindo inicialmente alguns milhares de exemplares, em 1920, alcançaria uma circulação de dezenas de milhares de unidades. A proposta de uma tiragem de 200 mil exemplares é possivelmente outro exagero. O alcance da revista era superior à sua distribuição, já que passava de mão em mão.
Devido à proposta de “A África para os Africanos”, a circulação de “O Mundo Negro” teria sido proibida nas colônias francesas, italianas, portuguesas e belgas da África, escapando da interdição apenas em algumas colônias inglesas, mas não em todas. Nos anos 1919 e 1920, foi proibido na Guiana e nas Antilhas inglesas. “O Mundo Negro” deixou de aparecer em 1933, após quinze anos de vida.
No Harlem, de 1922 a 1924, Marcus Garvey publicou o “Daily Negro Times”, diário afiliado a agência de notícias United Press. Na Jamaica, de 1929 a 1931, publicou o diário “Blackman”, que apoiava o Partido Político do Povo, fundado por ele, que, de volta à Jamaica, abandonou a interdição de participação política que pregara nos USA, tendo chegado a ser eleito como vereador da capital.
Em 1929, “Blackman” publicava 15 mil exemplares. Em 1930, se transformou em semanário e, em fevereiro de 1931, interrompeu a circulação, fortemente endividado. Em 1932-1933, Marcus Garvey dirigiu o “New Jamaican”, e, em dezembro de 1933, a revista “Black Man”, transferida da capital da Jamaica para a Inglaterra, onde se manteve até 1939. A revista tinha leitores nas Américas do Norte e Central, nas Antilhas e na África Ocidental e do Sul. [BENJAMIM. 2010. p. 47.]
Pan-africanismo ao sabor estadunidense
Em inícios do século 20, os fortes sentimentos pan-africanistas influenciaram Marcus Garvey, que os absorveu de múltiplas fontes. Entre elas, Edward Blyde [1832-1912], intelectual afro-descendente nascido nas Índias Orientais Dinamarquesas, de pais livres. Em 1850, ele migrou para a Libéria, casando-se com uma mulher das classes dominantes locais, descendente de afro-estadunidenses. Seguiu seus estudos na África e tornou-se pastor presbiteriano. Trabalhou como jornalista, teve um papel destacado no governo e na diplomacia da Libéria. Sua principal consigna era a “África para os Africanos”, retomada por Marcus Garvey.
Edward Blyde visitou a Palestina e apoiou as implantações sionistas, décadas antes da II Guerra Mundial, do genocídio hebreu, da estruturação do Estado de Israel e de sua política de limpeza étnica dos territórios palestinos. Embora continuasse sendo cristão, propôs ser o islamismo uma religião mais africana que o cristianismo e, assim, mais própria para os negros nos Estados Unidos e fora dele. Seu principal livro seria Cristianismo, islamismo e a raça negra, publicado, em Londres, em 1887. Ele morreu em 1908. [RABELO, 2013, p. 503.]
Entre tantas outras influências pan-africanista de Marcus Garvey estava S. A. G. Cox, fundador do Clube Nacional, que desenvolveu a proposta de união necessária da diáspora africana. Em 1 de julho de 1911, na última edição do jornal daquela organização, ele proporia: “Os negros e mestiços na Jamaica somente podem ter esperança de melhorar suas condições quando se unirem aos negros e mestiços dos Estados Unidos e com os das outras Índias Ocidentais e na realidade, com todos os negros do mundo.” Proposta retomada por Garvey excluindo, porém, os mestiços do pacto internacional proposto, ao defender a pureza da raça negra. [LEWIS, apud RABELO.]
VIII. A Agonia do Moisés Afro-Estadunidense
A Mão de J.E.Hoover
Na mira de J.E. Hoover, na chefia da repressão federal interna estadunidense, Garvey e três outros seus prepostos foram julgados em 1923, por fraude postal, ao terem enviado, por correio, publicidade mentirosa para a venda de ações, com uma foto de navio que não era da Black Star Line e sem declarar que a companhia estava em situação falimentar. A acusação não era pesada, mas teria sido agravada pela megalomania e inabilidade de Marcus Garvey, que realizou, ele mesmo, sua defesa diante do tribunal. Pretendia transformar o julgamento em plataforma de divulgação de sua liderança e ação. Desconhecendo os ritos e a lei, avançou de tropeço em tropeço, facilitando sua condenação.
Marcus Garvey foi condenado e seus três assessores absolvidos. Quando, após o retorno dos jurados, o juiz anunciou que ele era o único culpado, Garvey passou a proferir insultos ao tribunal, chamando o juiz, o promotor distrital e jurados
de “judeus sujos”, o que teria aumentado sua pena – cinco anos de prisão e uma multa de mil dólares. Posto em liberdade, sob fiança, por primeira vez, Marcus Garvey abandonou o apoliticismo e apresentou candidatos da UNIA, em geral, em oposição a candidatos sustentados pela NAACP, o que interessava igualmente à Klan. Seus candidatos não obtiveram maiores resultados, o que registrou a então fragilidade da UNIA ou que sua penetração na comunidade negra fora epidérmica.
Em 2 de fevereiro de 1925, a pena foi confirmada e ele foi encarcerado, em fins de março, em prisão de baixa segurança, em Atlanta, onde foi visitado por racistas brancos de extrema-direita e da Ku Klux Klan, seus amigos fiéis. Garvey entregou a direção da UNIA para sua segunda esposa. Na prisão, escreveu poema épico sobre as maldades do homem branco, que circunscreve sua visão da história ocidental e mundial, desde uma ótica racista negra rústica. Ele certamente superestimava seus dotes como poeta. [GARVEY, 2020.]
De Volta ao Passado
Movimento por sua libertação, da parte dos militantes da UNIA, apoiado pela direção da Klan, que jamais alcançou a se massificar, levou a um perdão presidencial, quando já cumprira boa parte da pena, sob a condição de seu abandono do país, tendo com destino a Jamaica. Em verdade, era o que desejava o governo estadunidense.
Em 18 de novembro de 1927, em liberdade, Marcus Garvey partiu para a Jamaica, sem direito de voltar aos USA. Retornava ao ponto de partida, de onde iniciara a construção do mais importante movimento negro estadunidense organizado conhecido até hoje. O abandono do país, após três anos de prisão, consubstanciava derrota da qual jamais se recuperaria. [TÉTÉ-ADJALOGO, 1995, p. 279-285.]
Marcus Garvey e sua esposa se estabeleceram em um bairro nobre da capital da Jamaica, onde compraram uma moradia de prestígio, com a ajuda que receberam dos USA, de onde foi enviado, a seguir, seus objetos de arte e uns 18 mil livros de sua biblioteca. Na sua terra natal, fundou um partido e publicações, como vimos. Sem conseguir relançar seu movimento em recuo acelerado, transferiu-se para a Inglaterra.
Em Londres, Marcus Garvey, separado da esposa, seguiu dirigindo a UNIA e organizando as convenções internacionais, com um número sempre decrescente de participantes. Após a sua morte, em 10 de junho de 1940, a UNIA, transitoriamente sob a direção de seu filho, Marcus Garvey Jr., sofreu sucessivas crises e dissidências, se mantendo apenas apoiada no sucesso que tivera no passado.
Bibliografia citada
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BRIGGS, Cyril. The Negro Convention. Published in The Toiler [New York], v. 4, whole no. 190 (Oct. 1, 1921), pp. 13-14.
BENJAMIM, Sistah Luísa. Markus Mosiha Garvey: A Estrela Preta. Agosto de 2013. Projeto Omega Nyahbingh.
DOMINGUES, Petrônio. O “Moisés dos pretos”: Marcus Garvey no Brasil, Novos Estudos, . Cebrap, São Paulo, V. 36.03 p.129-150, novembro 2017
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HAAS, Ben. Ku Klux Klan. São Paulo: Dinal,1966.
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LAWLER, Mary. Marcus Garvey: black nacionalista leader. Los Angeles: Melrose, 1990.
MAESTRI, Mário. Booker T. Washington, A Terra é Redonda, 13.07.2024, https://aterraeredonda.com.br/booker-t-washington/
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Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.