Nem Milei nem Bolsonaro são zebras do jogo do bicho

Araraquara, 12 de novembro de 2023

A surpresa com a ascensão meteórica do candidato Javier Milei na Argentina corre por conta do histrionismo que permeia a pequena política institucional do Cone Sul, e que funciona como cortina de fumaça das transformações profundas nas formas de dominação do capital. No caso da Argentina, emplacava o enredo da “grieta”, algo assim como “rachadura” na política, entre peronistas e antiperonistas. Entre ambos, porém, prevalecem consensos de fundo: o da intensificação e ampliação do extrativismo, a matriz econômica que prioriza a exportação de commodities e a flexibilização das relações de trabalho. Essas escolhas, que aumentam a pobreza, vêm sendo apresentadas como imperativo para manter a governabilidade. Na segunda metade da década de 1990, o Banco Mundial recomendou políticas sociais compensatórias para aliviar essa miséria crescente. Desde então, essas políticas vêm sendo implementadas não apenas pelos governos peronistas, mas também pelos antiperonistas. 

Há diferenças? Sim. Os governos peronistas, grosso modo, vêm integrando em sua gestão movimentos sociais que operam como mediadores entre demandas populares e essas políticas públicas. Eles são, de longe, mais eficientes nessa tarefa do que os funcionários de carreira e, até mesmo, do que as organizações não governamentais. No entanto, se os antiperonistas têm recorrido com mais frequência à repressão, também a gestão de Mauricio Macri aplicou políticas compensatórias, fundamentais para prevenir explosões sociais como a ocorrida em 2001. Essa dinâmica de governos pendulares, porém, está se esgotando, à medida que também se reduzem cada vez mais as diferenças entre uns e outros. 

Isto resulta muito familiar aos brasileiros. E é nesse contexto de conjuntura de médio prazo que ascenderam eleitoralmente personagens como Jair Messias Bolsonaro e Javier Milei. Talvez as diferenças entre os dois pareçam muito grandes. Afinal, enquanto Bolsonaro, vinculado a designações religiosas conservadoras, surge de camadas das forças armadas jogadas para escanteio com a passagem para o governo civil, Milei vem do ultraliberalismo. Porém, à medida que os armados eleitorais avançam, a composição final de seus apoios tende a se assemelhar. E observando o que eles têm em comum podemos nos aproximar do cerne de seu ascenso eleitoral meteórico. 

Ambos se apresentam com um discurso disruptivo da coreografia ou simulacro republicanos. Falam contra a “casta política”, como gosta de dizer Milei, essa casta que permanece qualquer que seja a cor da gestão do executivo. E ambos terminam se aproximando dessa “casta” para ganhar estabilidade, como aconteceu aqui com o “centrão”. Milei, que bate no peito dizendo que é ultraliberal, escolhe como candidata a vice-presidenta Victoria Villarroel, filha de um repressor e vinculada à justificação da ditadura, com tudo o que isso carrega. 

Para além do envoltório propagandístico, há um denominador comum de fundo. Por um lado, ambos se apresentam aos grupos de poder econômico como capazes de pular todos os marcos legais e todos os escrúpulos morais para que esses grupos aproveitem as oportunidades que as cadeias de commodities oferecem. Por outro lado, ambos se apresentam perante os trabalhadores flexíveis, hoje maioria na população, como aqueles que não enganam sobre a crueldade das novas relações de trabalho. É seu momento de ultrassinceridade, em que a população pode ver explicitado o que comprova no próprio quotidiano, para além das promessas vãs de reassalariamento e de aumento do salário real que os políticos tradicionais, de ambos lados da “grieta”, apregoam rotineiramente. Mesmo porque, primeiro, o aumento real de salários seria engolido rapidamente pela inflação crescente, e, segundo, o aumento de salários só atinge um setor minoritário da população trabalhadora. Os direitos e a suposta defesa do público são corroídos por uma privatização molecular da vida. 

Na Argentina, lembremos, as reformas neoliberais aconteceram durante o governo peronista de Carlos Saúl Menem. E, se foi o governo Macri que contraiu a dívida de 57 bilhões de dólares com o Fundo Monetário Internacional (FMI), recursos que foram em grande medida evadidos imediatamente do país, e que o próprio FMI considera um escândalo de corrupção da gestão anterior da instituição (já que não havia indícios de que tal dívida pudesse ser honrada), foi o governo peronista de Alberto Fernández que acertou seu pagamento. E, para isso, chamou, justamente, Sergio Massa, um político que surgiu fora do peronismo. O presidente Fernández converteu Massa em um superministro para que pudesse fazer acordos “livremente” com o FMI. É esse o atual candidato do peronismo para enfrentar Milei no segundo turno. E virou candidato porque ele é a principal garantia de respeito ao establishment. No Brasil não se chegou a tanto: afinal, Geraldo Alckmin é apenas vice-presidente. 

À medida que a candidatura de Milei foi ganhando corpo, ele foi se aproximando à direita da coligação que apoiava no primeiro turno a candidata macrista Patricia Bullrich e que sustentou o governo Macri. E, até antes do primeiro turno, vinha costurando acordos com o baixo clero peronista de direita do interior do país. Por outro lado, a Unión Cívica Radical, partido tradicional antiperonista, de centro-direita “democrático”, que também estava na coligação macrista, votará em Massa. Nesse sentido, o “baralhar e dar de novo” do ballotage reacomodará os números, e nada indica que a vantagem do 36% de Massa contra o 30% de Milei no primeiro turno será mantida. 

Um efeito correlato desse processo é a implosão dessa coligação da direita (diz que) republicana, assim como no Brasil aconteceu com o PSDB. Talvez esse seja um indício desse processo mais profundo, que tende a destruir os pactos conciliatórios, já que o simulacro de república (velha ou nova) virou uma casca esvaziada de polpa. As instâncias republicanas, nos Estados do extrativismo, deixaram de ser instâncias em que os grupos de poder dirimem suas pendências.

Voltando à vaca (ou à zebra) fria, ganhe quem ganhar, a tendência dura, não artificial, que levou ao aumento anual de 138% no índice de preços ao consumidor, a corrida ao extrativismo cada vez mais destrutivo e a flexibilização acelerada das relações de trabalho… nada disso será interrompido. 

O que mais preocupa é que a ação dos movimentos populares acontece prioritariamente no campo das lutas defensivas, destacando-se aquelas que demandam ininterruptamente mais políticas de alívio à pobreza e defesa dos direitos adquiridos, como os obtidos pela luta das mulheres. No entanto, os combates às causas dessa dinâmica que amplia, aprofunda, intensifica e acelera a catástrofe, as lutas contra o extrativismo (que é o que realmente ordena as forças reacionárias), não são suficientemente fortes e coordenados. Enquanto essas lutas permanecem em segundo plano, as falsas soluções distraem energias e reforçam o teatro de uma “grieta”, deslocada cada vez mais à direita. 

Silvia Beatriz Adoue

Professora da Unesp e editora do Contrapoder

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