Sempre que se fala em “neoliberalismo” algumas imagens de personalidades veem fortes e de imediato à cabeça: Margaret Thatcher, Ronald Reagan, George W. Bush. Mais recentemente, Trump e o excelentíssimo atual presidente tupiniquim.
O que esses personagens têm em comum? Eles representam a figura do Estado. E tomam todas as cenas não por terem sido grandes estadistas, mas pela forma do Estado que estiveram à frente: um Estado que tomou de assalto a sociedade em todos seus âmbitos, emergindo em cada detalhe das vidas pública e privada.
O engodo dos séculos se deu em estabelecer, quase sem espaço para contestações, uma relação intrínseca entre “neoliberalismo” e Estado mínimo. Aquelas personalidades-presidentes são as primeiras e mais fortes imagens que se nos apresentam não por acaso. Representam um Estado forte — Thatcher, por exemplo, era chamada de “Dama de Ferro”. Um Estado que flerta a todo momento com autoritarismos, com violências.
O “neoliberalismo” — entre aspas, pois este que nos vendem como conceito pronto, abstratamente, sequer existe ou existiu –, é Estado poderoso, controlador, que se sobrepõe à sociedade e a reorganiza. Ele se dá quando o Estado assume o que é de fato, sem ideologia encobridora: aparelho de classe — para repressão e opressão dos que “não são” Estado e privilegiamento e manutenção da classe de capitalistas e do capital, seja do país ou multi/transnacional.
Não é, portanto, uma forma corriqueira de “administração” do Estado: é Super-Estado — tanto em gigantismo, para a classe dos ricos, quanto em “heroísmo”. Como nos filmes de super-heróis estadunidenses, destrói-se a cidade para salvar a cidade. Este Estado relacionado equivocadamente com o adjetivo “mínimo” desorganiza, ordenadamente, a sociedade; sobrepõe-se a ela, como um Titã saído das profundezas — um Kraken –, para pô-la “em ordem”.
Não é por acaso, então, que flerta com autoritarismos e ditaduras, seja em terra própria ou no estrangeiro (como faz os EUA patrocinando todo tipo de atrocidade pelo mundo afora visando garantir o estabelecimento da “democracia”). Veja-se bem: nas décadas de 1970 e 1980 se dão a explosão e a consolidação desse modo de poder de Estado que se deu o nome de “neoliberalismo” (bem mais que política econômica, simplesmente); diversos países da América Latina estavam sob ditaduras de extrema-direita ou sofriam golpes — como o caso do mais covarde golpe, no Chile em 1973; aumento expressivo das contradições de classes, da distância entre ricos e pobres, da exploração; ampliação substancial da pobreza e da miséria. Tensionamentos que poderiam — e podem — levar a explosões populares, ao revolucionamento social combatidos com dura repressão pelo braço armado e pelas ações indiretas visando aparelhar — destruir e reconstruir para comandar de cima — todos os demais âmbitos da sociabilidade.
Esse Estado forte age sempre com violência. Precisa disso. Operando normalmente, o Estado capitalista liberal “permite”, dentro de certos limites, que a sociedade tenha certa liberdade em domínio próprio: sociedade civil e Estado não se confundem. Ao contrário disso, o Super-Estado entra e sai por todos os poros da sociedade, ele a reorganiza depois de desorganizá-la: tudo é Estado; ele está em todos os lugares como protagonista — ou, ao menos, como fantasma que ronda, assombra e desestabiliza propositadamente. Por isso, intervém coercitivamente em diversas dimensões: cultura, educação, costumes e etc. Não intervém somente, por exemplo, em questões orçamentárias ou legislativas: o Estado aparelha tudo; em tudo brota truculência, já que tudo se torna reflexo e extensão deste tipo de Estado autoritário. Ele precisa ser violento: “a liberdade do mercado só pode ser implementada calando todos os que não acreditam nela, todos os que contestam seus resultados e sua lógica. Para isto, é necessário um estado forte e sem limites em sua sanha para silenciar a sociedade da forma mais violenta. O que nos explica porque o neoliberalismo é, na verdade, o triunfo do estado, e não sua redução ao mínimo.”[1]
O Estado “neoliberal” precisa ser violento em diversos âmbitos e de formas diferentes em cada momento. Em momentos extremos, toda violência desaba em bloco — e é aqui que aquelas personagens têm caráter comum. O período FHC, que muitos dizem ter sido o nosso primeiro “neoliberal”, parece ser exceção; mas é uma que confirma a regra. A violência ali se situou na distensão máxima da exploração de classe, na supermiséria que assolou o país; na privatização de tudo a preço de banana — e consequente avacalhação de todo serviço público e etc. Matar por deixar à míngua é tão pernicioso e cruel quanto matar à bala. Em momentos extremos, tal qual o que vivemos — e parecido com Thatcher, Bush e etc. –, o Estado penetra na sociedade e a desorganiza, tensiona-a ao máximo, eleva as contradições ao nível da explosão social, que poderia colocar em xeque os fundamentos do Estado e da classe que o opera ou que dele se beneficia direta e exclusivamente. A solução: superviolência direta e simbólica. Não por acaso os mais pobres são altamente criminalizados; não por acaso a morte violenta, operada pelo braço repressivo do Estado é liberada, ainda que não legalizada — que é outra característica deste Estado: operar na margem da legalidade, no aparelhamento; não por acaso surgem diversos grupos truculentos, grupos de revisionistas históricos e sociais; grupos da “boa famiglia brasileira” que perseguem todos e tudo que contradiga a “moral” reacionária que eles trazem. O Estado cria uma contradição insolúvel na sociedade e, milagrosamente, a resolve na pancada. Porém, não há como evitar: quando o último véu que encobre a dominação cai, as contradições se revelam cruas. Só há uma forma de operar caso se queira manter este tipo de poder.
O tipo de democracia que tanto clamamos aos quatro ventos como a forma suprema da vida em sociedade leva a esses extremos. O autoritarismo não é a contradição da democracia burguesa: é sua realização, sua forma mais acabada. O Estado autoritário não é um déficit moral nem um desvio de caráter do “Estado democrático de direito”: este, como ideologia, realiza-se em perfeição com mão de ferro — alguns dizem “invisível”, por sarcasmo — e em sua presença em cada detalhe da vida privada e da sociedade civil, como um Leviatã com milhares de tentáculos, todos eles portando cassetetes ou fuzis.
A liberdade que pregam é a do capital, para que ele se realize de forma organizada; não simplesmente, como ideologicamente dizem, liberdade de mercado e de circulação de capital, com Estado “mínimo” que em nada ou muito pouco interfere; menos ainda a liberdade das pessoas, especialmente as “comuns”, não privilegiadas. A movimentação mais veloz, “racional” e organizada do capital tem sua contrapartida na desorganização da sociedade, na tensão levada ao extremo. Alguém precisa reorganizar para o fluxo tranquilo da coisa. Alguém precisa “levar democracia” aos rincões: de Paraisópolis ao Irã, às reservas indígenas, à Amazônia, à Síria, aos negros. Sem a “democracia do big stick” o capital, nesse atual estágio, não flui tão bem.
De tal modo, as múltiplas e incansáveis violências impostas por este Estado visam reorganizar aquilo que elas mesmas, as violências, desorganizam: um movimento circular inacabável. “Neoliberalismo” nada tem a ver com “mínimo”: é a forma de Estado mais voraz, que engolfa cada âmbito da sociedade, não deixando que nada escape, e impõe toda sua truculência sem filtros e sem tréguas.
Quando alguém lá do alto gritar “Estado mínimo!”, protejam as cabeças.
[1] Vladimir Safatle. A ditadura do sr. Guedes, 05 dez. 2019. https://bit.ly/358AkYe.
Vinícius Xavier, Núcleo Resistência popular — PSOL — Brás.
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