O ascenso das direitas é funcional à aceleração da espoliação

Texto escrito em 6 de fevereiro de 2023

A flexibilização das relações de trabalho e o empreendedorismo de si mesmo não apenas propiciam a fragmentação social e o afrouxamento dos laços de solidariedade, mas também estimulam sentimentos de competição, descompromisso com os outros e uma certa atitude predadora perante as magras e voláteis possibilidades que os mercados de trabalho oferecem.1 Ao mesmo tempo, entre muitos se espalha o desespero, ao verem ruir o mundo conhecido e aparentemente seguro, predominando uma sensação de naufrágio, de desorientação e, em consequência, de medo. Essa é a paisagem social na qual cresce a direita e sua perspectiva de mundo ganha adesões.

Mas não vou tratar nesta matéria da direita do ponto de vista ideológico, nem de sua destreza e oportunismo para capturar a indignação de grande parte dos de baixo perante uma “democracia” e um “progressismo” que, com retórica democrática, popular e até anti-imperialista, fazem avançar a espoliação sobre as gentes e seus territórios, integrando-os às cadeias extrativas. Vou me ocupar da funcionalidade da direita para a aceleração desses processos de despojo, os quais o progressismo não rejeita.

A pergunta que vale um milhão é, então, por que o grande capital prefere, em algumas ocasiões, governos de direita, se o progressismo também participa do consenso das commodities. Talvez o exemplo brasileiro, com suas particularidades, ajude a entender essas afinidades eletivas entre direitas políticas e ideológicas, por um lado, e extrativismo, por outro.

O modelo de acumulação

Cada vez que um modelo de acumulação do capital começa a dar sinais de que já não pode garantir a taxa média de lucro, ocorre um salto discreto de acumulação por despossessão, para compensar o incumprimento da expectativa de lucro. Esses saltos discretos podem ser incorporados ao nível de acumulação permanente, que, no dizer de Rosa Luxemburgo, acompanhou toda a história do capital. Porém, estamos diante de uma nova situação. A pronunciada tendência à queda da taxa de lucro, intensificada desde a década de 1970, demanda um igualmente acelerado aumento da espoliação, também de caráter permanente.

Novas formas de espoliação se juntam às já conhecidas. E distribuem-se pelas cadeias ou redes flexíveis de acumulação de alcance planetário. Essas cadeias, com elos intercambiáveis e descartáveis, têm numa ponta fundos de investimento de diferentes procedências e, na outra, os territórios de extração. Cada vez mais elos dessa cadeia, habitualmente os mais próximos aos territórios, mas nem sempre, operam a extração de riquezas por espoliação.

Para esse veloz aumento da extração por despossessão, os marcos regulatórios dos Estados, mesmo aqueles que sofreram as alterações neoliberais da década de 1990 em diante, resultam um obstáculo. As repúblicas, inclusive as que já eram simulacros republicanos, de América Latina, revelam-se uma casca vazia. Inúteis até como instância para as classes dirigentes dirimirem seus pleitos.

Para essa aceleração da espoliação é necessário um Estado de exceção, que não apenas desative os marcos regulatórios, mas também opere, até preventivamente, contra resistências dos territórios. Algo parecido a um Estado de guerra permanente.

Se isso é verdade em nossa região, o é especialmente no Brasil, país que possui a maior porção da Amazônia, área mais dinâmica de avanço da fronteira extrativa de minérios que são insumo para a indústria 4.0.2

Brasil e o avanço extrativista

A Amazônia teve uma integração relativamente tardia à extração de valor. Após um breve ciclo da borracha, de 1880 a 1910, apenas se integrou à produção de matérias-primas de exportação a partir do golpe de 1964. A área da Amazônia controlada pelo Brasil foi militarizada e mapeada pelas forças armadas. Durante e depois da transição para o governo civil, na década de 1980, vigorou um acordo tácito que mantinha a Amazônia militarizada. E as forças armadas sempre a consideraram uma área de reserva de riquezas sob seu controle.

A ampliação da demanda dos minérios do subsolo amazônico é considerada uma oportunidade para grandes lucros. Oportunidade desperdiçada se respeitados os marcos regulatórios para sua exploração. Para superar os escrúpulos legalistas, era preciso uma ação no terreno político que passasse por cima do papel fiscalizador do Estado. O despojo operado nos últimos quatro anos no Brasil não se realizou mediado por uma modificação da legislação. Para lançar grandes áreas ao mercado de terras para uso flexível era necessário destruir os territórios, o que foi feito por meio de milícias incendiárias e terror sobre as populações. Foi o caso do território Yanomami, agora matéria de exposição pública, com invasões de mais de 20 mil garimpeiros irregulares para retirar ouro e cassiterita, com organizações criminosas levando adiante a segurança interna desses elos da cadeia. São toneladas de minério irregular, regularizado na própria região para entrar na cadeia legal de exportação, na qual participa diretamente o capital financeiro, que não tem escrúpulo para fazer operações com mercadorias de qualquer procedência.

As brutalidades cometidas, porém, não poderiam ser realizadas sem o respaldo ou a indiferença da sociedade. Sem práticas predadoras normalizadas por um grande número de pessoas comuns. Sem uma perspectiva de mundo que sustenta um olhar colonialista, bélico e de domínio patriarcal sobre os territórios e suas gentes. É a afinidade eletiva entre essa modalidade extrativa e as direitas ideológicas. Uma estrutura de sentimentos necessária à espoliação.

O ex-presidente Jair Messias Bolsonaro foi muito explícito. No início do mandato, em 17 de março de 2019, num banquete oferecido na embaixada brasileira em Washington, advertiu aos empresários convidados: “Brasil não é um terreno aberto onde iremos construir coisas para nosso povo. Nós temos que desconstruir muitas coisas”3. Isso explica o apoio obtido então do grande capital. Mas Bolsonaro nunca agiu por si próprio, nem em relação direta com o grande capital. Seus vínculos diretos com o empresariado sempre foram com setores marginais, que rapinaram aproveitando-se das oportunidades que o limbo legal de fato que imperou no país nesses quatro anos oferecia. Por trás de Bolsonaro estavam os militares. Eles sim, com poder real e decididos a aumentar as condições para a extração de commodities, contornando os obstáculos que a ordem republicana apresentava.

Porém, essa “desordem” oficializada resulta onerosa. Alternar governos de direita e progressistas pode ser de interesse do grande capital. O que importa é blindar a atividade extrativa contra dispositivos de controle social que porventura alguém pretenda ativar.

Resta perguntar que tipo de acordos serão feitos entre as mesmas forças armadas e o novo governo de “frente democrática amplíssima”. Certamente, o consenso das commodities permanecerá. O Instituto Brasileiro de Mineradores (IBRAM) declara seu apoio à demarcação de terras indígenas e à exploração mineral nessas terras em convênio com as comunidades.

Vemos, inclusive, o caso de Bolívia, onde a mineração ilegal assumiu, durante o governo de Evo Morales, o status de cooperativas (de fachada) de garimpeiros artesanais. Atrás delas esconde-se o contrabando de ouro extraído ilegalmente no Peru e exportado como ouro legal, livre de impostos, já que as cooperativas mineiras gozam desse benefício. A extração de ouro deu um salto desde 2014. Essas cooperativas operam em áreas de conservação ambiental, como o Parque Nacional Madidi, e em territórios indígenas, cujos habitantes têm sua saúde afetada por níveis de mercúrio que superam até uma média de seis vezes os admitidos pela Organização Mundial da Saúde.4

Algumas tendências vêm se perfilando em nosso continente para atribuir novos papéis às forças armadas. Em particular, na recente proposta do presidente do México, Manuel López Obrador, e da Venezuela, Nicolás Maduro. Eles atribuem às forças armadas a função de construir e explorar infraestrutura logística, e de comercializar minério, respectivamente.5 E tudo de maneira legal. Prepara-se o Foro de Países Amazônicos, para fazer acordos sobre a política ambiental e social na região. O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, já adiantou que, sendo seu país membro da OTAN, pediria à aliança uma contribuição tecnológica e operacional para a defesa ambiental da Amazônia. Ao mesmo tempo, acordos já foram realizados pela Venezuela com a China, para a cooperação tecnológica e de defesa, assim como vemos sinais do presidente brasileiro, que viajará para a China em breve, que apontam para outro lado. A cobiça das grandes potências que miram os minérios estratégicos ameaça tornar a região um cenário de disputas globais. Consequentemente, os acordos para a militarização, com justificativas sociais e ambientais, estão em pauta.

Enquanto isso, a população da região, com suas práticas milenares de equilíbrio e reciprocidade, já está sendo bombardeada com propostas de integração à extração de valor, ou reduzidas à condição de objeto de políticas de Estado. Os territórios raras vezes são vislumbrados como sujeitos de sua própria história. Eles e sua resistência ao despojo, seu ímpeto de autonomia, são a única força que pode parar a destruição. 

Referências

  1. Ver Raul Zibechi, em “Extractivismo como cultura”: <https://democraciaglobal.org/el-extractivismo-como-cultura/>
  2. Ver: <https://contrahegemoniaweb.com.ar/2022/10/30/en-dos-compases-para-el-abismo/>
  3. Ver: <https://www.youtube.com/watch?v=Q0GtNa-VHqM>
  4. Ver: <https://www.youtube.com/watch?v=u82E_BPRPww>
  5. Ver: <https://contrapoder.net/colunas/mexico-um-novo-papel-para-as-forcas-armadas/>

Silvia Beatriz Adoue

Professora da Unesp e editora do Contrapoder

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