O cavalo de Troia da Educação 5.0: edtechs e (su)pressão do trabalho docente?

Coluna em coautoria com Allan Kenji Seki1

“Míseros cidadãos, que tanta insânia! De volta os Gregos ou de engano isentos Seus dons julgais? Desconheceis Ulisses? Ou este lenho é couto de inimigos, ou máquina que, armada contra os muros, vem cimeira espiar e acometer-nos. Teucros, seja o que for, há danos ocultos; no bruto não fieis. Mesmo em seus brindes temei os Dânaos. […]” (VIRGÍLIO, 2005, p. 45-46)

Iniciou-se no dia 15 de julho de 2022 a etapa nacional da Conferência Nacional Popular de Educação (CONAPE), em Natal (RN). Nesta ocasião, a Confederação Nacional dos Trabalhadores de Estabelecimentos de Ensino (CONTEE) realizou um espaço autogestionado intitulado “Educação 5.0: uma cadeia produtiva para a educação brasileira”2, cujo documento-base, divulgado pela CONTEE, é assinado por Gilson Luiz Reis, coordenador-geral da Confederação.

No documento, a Confederação parte da tese de que vivemos um processo de desmonte da educação pública nos últimos seis anos, iniciado “com o golpe de Estado de 2016” e agravado pela pandemia da Covid-19 e pelo projeto trágico para a educação do governo Jair Bolsonaro (2018-2022). Parte, ainda, do diagnóstico de que, se nada for feito com a urgência demandada pelo presente, as consequências serão enormes e profundas para as futuras gerações e, por isso, seria necessário “retomar de forma consistente e adequada um Novo Projeto Nacional de educação, ajustado aos novos tempos”. A partir desse quadro inicial, o documento explora diversos temas conexos, ao defender a tese de que está em construção hoje no mundo uma “territorialidade digital” que engloba, na educação, as diversas formas de ensino a distância, plataformas digitais e outros tipos de serviços de comunicação e informação.

Para a CONTEE, o principal problema seria de ordem estratégica-nacional: tal territorialidade seria dominada, hoje, pelo cartel internacional das chamadas Big Techs, capazes não apenas de extrair lucros e rendas que são, então, transferidas às matrizes nos países de origem dessas empresas tecnológicas, mas também de controlar informações, conceitos ideológicos, e determinar conteúdos na formação da juventude. Decorre daí a tese principal defendida no documento de que a construção de plataformas digitais, com caráter técnico nacional, seria um elemento estratégico a ser alcançado em nosso país, com vistas na “eliminação de intermediários internacionais no processo de transmissão digital que se dá entre professores e alunos” (CONTEE, p. 3). Assim, o manifesto não apenas expressa a defesa de que as plataformas e processos pedagógicos digitais sejam desenvolvidos para que o país tenha controle sobre os mesmos, como também considera importante que esses se caracterizem como uma indústria dinâmica, ou seja, que a criação e a expansão de serviços e plataformas digitais para a educação sejam propulsores do desenvolvimento de tecnologias de conectividade, comunicação e informação, redes e cabeamentos, centros de processamentos de dados e servidores, software livre, telecomunicações e outros subsetores dessa nova “cadeia produtiva” da educação brasileira (componentes eletrônicos, circuitos eletrônicos, plásticos, aço, plasma etc.).

No documento, saúdam-se todas essas novidades tecnológicas, pois sua elaboração de “e-books, de conteúdos pedagógicos, de conhecimentos polididáticos” cria “milhares de possibilidades” com “enorme potencial de inclusão” de “milhares de jovens que terão a oportunidade de desenvolver seus potenciais técnicos e criativos nesta novíssima indústria do conhecimento”. O atributo de positividade diante das plataformas digitais e da tecnologia na educação é patente: “esse novo mundo que se abre com as novas tecnologias digitais poderá transformar a educação e principalmente o país”. E não é apenas a essas “novas” tecnologias que a Confederação rende homenagens e dedica expectativas, é também ao modo específico e contingente de produção destas: “a indústria local, regional e nacional de produção de conteúdos educacionais, pedagógicos e de formação constituirá uma ampla cadeia de produção e reprodução de conhecimento que serão desenvolvidas pelas centenas de startups destinadas à educação nacional” (CONTEE, p. 4, grifos nossos).

O encantamento da Confederação parece estar centralmente articulado a duas ideias relativas às novíssimas tecnologias elencadas: a primeira é de que tais tecnologias oportunizariam a inclusão escolar e digital de parcelas crescentes da juventude; e a segunda é de que seriam implicitamente democratizantes, não apenas no sentido da inclusão mas também pelo suposto caráter distributivo entre os diversos capitais locais, regionais, na produção e distribuição de conhecimentos, “democratizando o desenvolvimento nacional do conhecimento e inovação”, o que, em tese, inviabilizaria “os monopólios e cartéis dos grandes grupos educacionais (Kroton, Estácio, Anima, Objetivo etc.) e de fundações (Ford, Roberto Marinho, Itaú, Lemann etc.)”.

Na realidade, as expectativas sobre as tecnologias e as plataformas digitais como propulsoras dessa novíssima cadeia produtiva na educação brasileira são tão fortes e decididas que no documento é proposta, até mesmo, a criação de uma “universidade pública digital”, com o objetivo de “ampliar a oferta e o alcance, em território nacional, de cursos e programas de educação superior, por meio da educação a distância amparada nas plataformas digitais” (CONTEE, p. 8). E, ainda, tal proposta é arrematada colocando-se como seu aspecto central a formação de professores para o trabalho com tais tecnologias nas escolas brasileiras, e defendendo-se a descentralização do trabalho:

Estabelecida no Território do Digital, esta modalidade de universidade, fomentadora do programa de desenvolvimento da cadeia produtiva para a educação brasileira, objetiva formar professores, pesquisadores e profissionais para os mais diversos campos do conhecimento, com especial cuidado às novas dinâmicas sociais, econômicas e produtivas proporcionadas pelo ambiente digital. Além da formação para a produção de novas linguagens, competências e análises sobre a dinâmica de trabalho e construção do conhecimento, com as novas gerações, buscará oferecer formação inicial a professores em efetivo exercício na educação básica pública, ainda sem graduação, e formação continuada àqueles já graduados para uma apropriação autônoma e pedagógica, inovadora, das ferramentas e ambientes digitais de ensino. Também ofertar cursos a dirigentes, gestores e outros profissionais da educação básica da rede pública e privada com foco no uso das novas tecnologias. E buscando reduzir as desigualdades na oferta e acesso ao ensino superior e desenvolver um amplo sistema nacional de educação superior a distância, a Universidade Pública Digital, funcionando como hub de uma rede pública de pesquisa e inovação para o desenvolvimento nacional, permitirá o fomento e articulação de polos locais de trabalho vocacionados territorialmente e interligados, promovendo maior descentralização do Trabalho (CONTEE, p. 8-9).

O documento encerra-se de forma taxativa e ameaçadora – “nações que abdicarem desse instrumental científico e tecnológico ficarão definitivamente na periferia do sistema produtivo internacional” –, atribuindo a esse “grande empreendimento histórico” o estatuto de chave para o futuro.

Primeiro embuste: a (su)pressão do trabalho docente

Em todo o documento da Confederação, há apenas cinco menções aos professores (quatro para professores, uma para docentes) e nenhuma referência à categoria de trabalho docente. Em todas essas passagens, analisamos que o papel atribuído ao magistério é apassivado, como quando caracteriza a relação de transmissão que se dá (ou ocorre) entre professores e estudantes, ou entre escolas (sic) e alunos (p. 3); ou, de forma ainda mais evidente, quando trata de propor produtos, serviços e materiais a serem disponibilizados para professores – entre outros trabalhadores da educação (p. 5); ou de postular os objetivos da universidade digital na formação inicial e continuada aos professores na modalidade de ensino a distância (p. 8). Não obstante, de modo inversamente proporcional está a defesa das plataformas digitais, de startups e da “cadeia produtiva” que essas tecnologias podem criar ao tomar a educação nacional como nicho de bens mercadejáveis (GRANEMANN, 2007).

Tomada como pressuposta a positividade geral das tecnologias educacionais, também conhecidas como Edtechs, o documento defende a tese de que sua incorporação pela educação está dada e que cabe somente às diversas nações a criação de cadeias produtivas a elas relacionadas e lhes conferir o caráter de indústrias dinâmicas. A problemática é grave, especialmente por se tratar de documento de uma Confederação de trabalhadores. Evidências preliminares de pesquisa3 indicam que essas “novíssimas” tecnologias educacionais operacionalizam a ampliação das frentes ofensivas contra o trabalho docente na medida em que seus lócus se situam no campo de funções especificamente intelectuais e político-pedagógicas dos professores (avaliação de ensino-aprendizagem, observação, registro, planejamento, organização pedagógica e curricular, conteúdos de ensino). Tais ênfases parecem também corroborar a hipótese de que a difusão em larga escala de tecnologias educacionais e plataformas digitais na educação pressupõe necessariamente a padronização das atividades relacionadas ao ensino e, consequentemente, ao trabalho docente. Isso porque, para que sejam comercializáveis para o maior número de escolas públicas e privadas, é necessário que os currículos ocorram em identidade e coincidência temporal, em negação à autonomia das instituições educativas para propor projetos pedagógicos próprios ou experimentais, de acordo com as características da comunidade e dos territórios.

Quando essas tecnologias oferecem a gestão dos tempos e conteúdos de forma articulada, é nítido o processo de padronização industrial e fabril do ensino, visto que a informatização e digitalização desses procedimentos permitem que os proprietários da plataforma digital, a gestão da escola e até mesmo os gestores das redes de ensino os acompanhem de forma milimetrada. Potencialmente, é possível examinar cada passo realizado pelos professores simultaneamente em dezenas ou centenas de escolas, de forma a checar a ordem, a frequência e a eficiência do trabalho dos professores nos conteúdos. Se, por exemplo, o serviço vendido pela plataforma envolve a avaliação da aprendizagem em larga escala, a plataforma pode produzir métricas e indicadores para a tomada de decisão de gestores e burocratas das redes de ensino. Se as datas dessas avaliações coincidirem, pode então exercer um controle objetivo e subjetivo sobre o trabalho docente. Desaparecem as dimensões de criatividade, expressão e autonomia do professor ante as turmas pelas quais é responsável, visto que até os exemplos e os comentários feitos nas salas de aulas podem se desviar dos conteúdos considerados efetivos, úteis ou, no limite, politicamente permitidos.

A digitalização do controle de frequência de alunos e professores, a criação e distribuição de aplicativos que permitam às famílias e aos responsáveis acompanhar em tempo real as atividades e o desempenho escolar de crianças e adolescentes (e, portanto, de professores) de forma impessoal, burocrática e desconsiderando o contexto especificamente educativo, são questões sensíveis que precisam ser estudadas, analisadas e refletidas pelos educadores, pesquisadores, pelos órgãos de representação das categorias profissionais e pela sociedade brasileira antes de se tomar como pressuposto que tais tecnologias sejam pertinentes, relevantes e, até mesmo, passíveis de adentrar as escolas e a educação como um todo.

Paulatinamente, essas relações, que denominamos de fabricalização da escola, implicarão a redução das esferas de intervenção dos professores e de suas autonomias políticas, didáticas e administrativas no processo pedagógico. Isso porque as plataformas supõem não apenas a disponibilização de materiais e conteúdos de apoio, mas também as formas e métodos pedagógicos e a administração dos principais marcadores escolares, como o tempo e o espaço, da ação docente.

Não se conhecem suficientemente os efeitos sobre as crianças e adolescentes desse tipo de exposição aos recursos informacionais, nem mesmo as reais implicações em termos de efetividade de tais tecnologias – ainda que situadas como recursos – nos processos de ensino-aprendizagem. Nem conhecemos os efeitos político-pedagógicos dessas tecnologias como meios de interveniência e controle sobre o trabalho de professores, aspecto que deve ser especialmente relevante em uma sociedade marcadamente autoritária como a brasileira. E, ainda, não podemos, justamente diante da descentralização e desigualdade do trabalho docente no Brasil, pressupor que a introdução de plataformas digitais na educação induzirá a processos democráticos de organização do trabalho nas escolas.

Afinal, verdadeiramente graves e urgentes são as resoluções de problemas estruturais na base do trabalho docente nacional: a eleição de diretores é irregular em muitos estados; a política movida pela racionalidade econômica de fechamento de turmas e escolas nas redes de ensino, o que implicou acentuada taxa de alunos por professor; o aumento da intensidade e precariedade do trabalho do magistério; o adoecimento docente por razões ligadas ao trabalho; parte significativa dos estados sequer cumpre a lei nacional do piso salarial do magistério; enorme contingente de professores temporários nas redes estaduais, e assim por diante (VENCO; ADRIÃO, 2022; VENCO, 2021; VENCO et al., 2022). Diante desse cenário, parece-nos arriscado transformar teses correntes hoje entre os Aparelhos Privados de Hegemonia, tais como sindicatos patronais, fundações, organizações sociais e organismos multilaterais, de que a tecnologia e a educação seriam as chaves para um futuro democrático e menos desigual, em pressupostos para a ação política e estratégica da Confederação na CONAPE.

Segundo embuste: privatização da educação, formação de oligopólios e Edtechs

A segunda armadilha na qual incorre a CONTEE é separar a relação social na qual as edtechs – entre as quais as plataformas digitais – são produzidas dos capitais oligopólicos de ensino tais como a Cogna, Estácio de Sá, Ânima, Ser Educacional etc. A Confederação afirma que, pelo caráter inclusivo e democratizante que tais tecnologias teriam, especialmente por pulverizar a propriedade sobre capitais, isto inviabilizaria “os monopólios e cartéis dos grandes grupos […] de produzirem e compartilharem conteúdo para o setor educacional”. O que não é verdade. A produção social de tecnologias, longe ser fácil, envolve, necessariamente, a concentração de vultosos recursos socialmente disponíveis em termos de força de trabalho técnica e científica, disponibilidades financeiras, recursos de infraestrutura e robusta colocação de fundos públicos. Isso porque a forma de ser da tecnologia não se desvincula jamais do modo de sua produção, que, nas sociedades capitalistas, só pode ser a forma social de produção de tecnologia capitalista.

Longe do mito difundido por meio de grandes empresas de comunicação e publicidade, tais como Uber, Google, Amazon, Paypal, esses capitais não se erigiram nas mãos de jovens esperançosos construindo software em suas garagens nas horas vagas. A produção deste tipo de processo social só ocorre quando se encontram concentrados territorialmente enormes contingentes de capitais financeiros disponíveis para colocações, alta densidade de formação técnico-científica difusa, recursos de processamento de dados e articulações produzidas no âmbito do Estado. Do contrário, produzir tecnologia de ponta seria o resultado de vontades individuais e coletivas e nada explicaria as razões da concentração mundial tanto da ciência, como de seus principais produtos, em determinados países do capitalismo central – e no interior destes, em regiões territorialmente bem definidas (Seul, New Songdo, Tokyo, San Francisco, Nova York, Estocolmo, Tel Aviv, Berlin, Paris, Londres, Barcelona).

Os maiores oligopólios de capitais de ensino, como a Cogna, são precisamente o resultado da conjunção de bancos e fundos de investimentos com uma série de fatores produzidos dentro e fora do âmbito do Estado, em sentido estrito. Trata-se de bancos e fundos como BlackRock, Advent, Alaska, Capital Group, Morgan Stanley4, mas que em certos momentos somaram mais de 1.600 investidores institucionais apenas na Cogna. Portanto, como imaginar que a produção industrializada de plataformas digitais, startups educacionais e Edtechs, de modo geral, poderia surgir fora dos domínios dos maiores, mais concentrados e centralizados capitais de ensino do mundo?

É fundamental que se estabeleçam estudos aprofundados sobre como se constituem as condições materiais para a criação de plataformas digitais na educação e mapeamentos consistentes sobre as relações entre capitais financeiros, capitais de ensino e tais processos em andamento. É precoce e em antinomia com as evidências apontadas pelas pesquisas de diversos grupos de investigadores (entre os quais vale mencionar aqueles agrupados no GT11 da Anped e na Rede Universitas) a tentativa de desarticular a (1) a tecnologia educacional, (2) as condições de sua produção material e histórica e (3) seu uso, suas finalidades e consequências sociais. Em sua base de manifestação está caracterizado em abstrato em que consistiria tal uso das tecnologias e o fito de ocultar, intencionalmente ou não, as relações propriamente capitalistas nas quais ele é feito. E o risco mais evidente, tratando-se da Confederação de trabalhadores (e não do patronato dos capitais de ensino), é confundir as necessidades e tarefas históricas da classe trabalhadora diante da educação, seu direito à cultura, à ciência e às tecnologias com os interesses dos capitais.

Terceiro embuste: destruir a formação docente e fazer o Reuni digital antes que eles o façam

Não há como não nos espantarmos com a proposição da CONTEE de criação de uma universidade pública digital “amparada nas plataformas digitais”. Por qualquer ângulo de análise, tal proposta representa um equívoco muito grave. Se, por um lado, aprisiona as universidades a tal “cadeia produtiva para a educação brasileira” (CONTEE, 2022, p. 8), por outro deixa à vista seu profundo alinhamento às políticas neoliberais de submissão da formação dos professores, inicial e continuada, à modalidade de ensino a distância. O conceito de universidade defendida pelos sindicatos progressistas e movimentos sociais, entre os quais o histórico movimento estudantil brasileiro, atribui às universidades uma tarefa fundamentalmente crítica e democrática que condensa, por um lado, os conhecimentos sistematizados mais elevados em termos artísticos, filosóficos e científicos, as diversas formas de sua socialização (ensino, extensão e outras intervenções) e, essencialmente, a tarefa de propulsão da crítica social contra tudo e todos, independentemente dos interesses que possa atingir.

As universidades são as únicas instituições do Estado, portanto, cuja existência tem como tarefa definidora criticar os fundamentos da própria ação estatal – e, no limite, a natureza e a forma social do Estado. É a única instituição que tem como função criticar governos, partidos, sindicatos, movimentos, relações sociais, religiões. Não por acaso, não há sequer uma universidade que não esteja em algum momento de sua história marcada por episódios ou por sistemática coerção, censura, violência, ameaças e desterritorializações. Ao abandonar essa tarefa, a sociedade abandona parte de sua força democrática capaz de criar ou impulsionar reflexões, dinamismos, mudanças sobre as práticas e as relações sociais.

Não raro, quando não diretamente ostensivas – como são os cortes orçamentários e os ajustes que não se iniciaram com Bolsonaro, em 2016, mas têm uma trajetória de largo espectro na história da educação, perpassando todos os governos, incluídos aí aqueles da Nova República –, as tentativas de desfigurar a força crítica das universidades revestem-se de pele de cordeiro. Sob pretensas oportunidades inescapáveis de resolver a urgência histórica que atravessou todas as gerações que nos precederam, devemos desfigurar o sentido de ser da universidade e transformá-la em uma escola de terceiro grau, puramente dedicada ao ensino e à profissionalização, ao sabor do Banco Mundial, da OCDE, UNESCO e, por que não, também da Confederação Nacional da Indústria, da Federação Brasileira de Bancos, Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil e da Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior.

O que está embutido nesta tese não é evidente – trata-se do argumento de que a forma histórica da universidade brasileira não pode ser democrática. Há setores, mesmo entre os trabalhadores, que se recusam a massificar a universidade, mantendo seus princípios: a autonomia política, didática e administrativa; a indissociabilidade entre ensino e pesquisa (e, portanto, extensão); como espaço territorial, concreto, objetivo, no qual convivem e se apresentam as oportunidades de experiência democrática com distintas áreas de conhecimento, bem como com seus diferentes métodos e formas de conhecer o mundo. Portanto, a conclusão dessa tese é que essa universidade (onerosa, pesada, paquidérmica) só pode se expandir se colocar abaixo sua forma histórica. Transformar a universidade em “digital”, dar hegemonia ao ensino a distância como forma prevalente de formação inicial, é profundamente elitista e equivocado. A universidade que devemos exigir é aquela que se expande conservando elevado nível de produção de conhecimento crítico, reflexivo e revolucionário em todas as áreas, e isso só ocorre no coletivo, na troca de ideias e distante da falácia de que tal movimento pode ser reproduzido nos ambientes remotos. O povo brasileiro merece uma universidade que caminhe em direção a uma forma histórico-concreta que apenas se anunciou, visto que a autonomia universitária nunca se concretizou – jamais uma escola de certificação massificada e a distância, vilipendiada e que, como inúmeros relatos denunciam, implicam necessariamente relações de sujeição do trabalho docente.

Tal proposta, é preciso dizer, apresenta-se no documento da CONTEE menos de um mês após a divulgação do Ministério da Educação do governo Bolsonaro do programa Reuni Digital, cuja primeira versão foi apresentada em maio de 2021. O programa tem o objetivo de ampliar a institucionalização do ensino a distância nas universidades; fomentar programas e currículos digitais; desfigurar por completo as já vilipendiadas carreiras do magistério superior, e tudo isso sob o pretexto de realizar a “transformação digital” da educação superior. E, ainda, propõe-se – Pasmem! – analisar a criação de uma Universidade Federal Digital. A CONTEE, contudo, mais ousada que o Ministério da Educação de Bolsonaro, propõe que essa universidade digital tenha como tarefa principal a formação de professores “digitais”: seja como formação inicial aos professores já em exercício na educação básica pública, ainda sem graduação, seja como formação continuada para aqueles já graduados, com vistas em “uma apropriação autônoma e pedagógica, inovadora, das ferramentas e ambientes digitais de ensino” e, como não poderia faltar, também “ofertar cursos a dirigentes, gestores e outros profissionais da educação básica da rede pública e privada com foco no uso das novas tecnologias” (CONTEE, 2022, p. 8, grifos nossos).

A proposta da CONTEE lembra em muito um passo a mais sobre o programa Universidade Aberta do Brasil (UAB), instituído no segundo mandato de Lula da Silva (2003-2010), para “o desenvolvimento da modalidade de educação a distância (sic), com a finalidade de expandir e interiorizar a oferta de cursos e programas de educação superior no País”, e cujo sentido na formação de professores foi muito bem definido por Mandelli (2014) como uma fábrica de professores em nível superior. Essa política deu continuidade à expansão, na formação docente, do ensino a distância (EaD), iniciada no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), no contexto da Reforma do Estado e da Nova Gestão Pública (NGP). A pesquisa de Mandelli (2014) indica que o alinhamento desse tipo de política para a formação docente, feita a distância e conforme as recomendações de Organismos Multilaterais para os países dependentes, presume que “os professores não precisam necessariamente ser formados em universidades tradicionais, mas em ‘instituições técnicas’, nos termos da Unesco” (p. 206).5 Assim, a formação inicial dos professores pode ser aligeirada, pragmática, instrumental, voltada às demandas escolares em sentido estrito e pautada apenas no antigo modelo oriundo das empresas, calcado em habilidades e competências. O que está em jogo é a dimensão intelectual da docência, o aspecto mais rico e precioso no trabalho dos professores e educadores.

Luta que segue

Essas políticas, esfaceladoras e padronizadoras sedimentam as bases para um controle ainda maior por resultados, homogeneização das atividades escolares, externalização da racionalidade do ensino-aprendizagem e desvalorização real, concreta e objetiva do magistério. A ideia de formação de professores em fábricas6 e de fabricalização da escola se encontra na hibridizaçãoeadeização e plataformização da educação. Tais políticas buscam se assentar neste tipo de retórica sobre as novíssimas tecnologias, como se a novidade funcionasse nelas para turvar seu verdadeiro sentido: a produção de sucataria.

Nessa peleia, nossas bandeiras devem se conduzir num sentido verdadeiramente humano e emancipador para a educação. Nenhuma estratégia nacional pode gritar por soberania se alinhada aos interesses expressos pelas articulações de frações internas e externas do capital, ao que prescrevem os Organismos Multilaterais, como neste caso. Afinal, dessa articulação de capitais resulta que, também no interior do espaço nacional, existe uma dimensão inconciliável no campo da educação entre o capital e o trabalho. Inconciliação esta que também perpassa as relações propriamente capitalistas, que, desde dentro, produzem e reproduzem a própria condição de dependência. Sem essa percepção, todo discurso sobre desenvolvimento e soberania não é mais que falácia. A verdadeira contribuição das entidades e organizações dos trabalhadores da educação não poderia, compreende-se, jamais devastar nossas instituições e nosso trabalho antes que outros o façam. As armadilhas são muitas e perigosas, pois mais que fraseologias, elas expressam verdadeiros projetos de perfilamento da educação nacional aos interesses do capital no tempo presente.

Fica a esperança de que as reflexões aqui desenvolvidas, que abordam apenas alguns aspectos dos graves problemas expressos no documento analisado, encontrem terreno fértil para a luta. E que o debate fraterno e comprometido, essencial entre os setores críticos e comprometidos com a educação, seja propulsor da formulação e reformulação de estratégias políticas que possam nos escalar para fora do abismo no qual nos encontramos hoje.

Referências:

CONTEE. Educação 5.0: uma cadeia produtiva para a educação brasileira. 2022. Disponível em: <https://bit.ly/3yZFoQ7>. (Acesso em: 12 jul. 2022).

GRANEMANN, Sara. Políticas sociais e financeirização dos direitos do trabalho. Em Pauta, no 20. Rio de Janeiro: UERJ, 2007, p. 57-68.

MANDELI, Aline de Souza. Fábrica de professores em nível superior: a Universidade Aberta do Brasil (2003-2014). 2014. 262 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Florianópolis, 2014. Disponível em: <https://bit.ly/3IBQsWR>. Acesso em: 13 jul. 2022.

SEKI, Allan Kenji. O capital financeiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018). Florianópolis: Editoria em Debate/UFSC, 2021. Disponível em: <https://bit.ly/3Kybmpc>. Acesso em: 12 jul. 2022.

VENCO, Selma. Professores da educação básica rumo à uberização ou ao desemprego? Uma análise das relações de trabalho nas escolas estaduais da região metropolitana de Campinas. Horizontes, v. 39, n. 1, 2021. Disponível em: <https://bit.ly/3O5YOqV>. Acesso em: 13 jul. 2022.

VENCO, Selma; ADRIÃO, Theresa. A corrosão da educação pública no Brasil: privatizações e precariedades. Utopía y Praxis Latinoamericana, ano 27, v. 96, 2022. Disponível em: <https://bit.ly/3P3eqN6>. Acesso em: 13 jul. 2022.

VENCO, Selma; JACOMINI, M. A.; FERNADES, M. J.; BARBOSA, A. Contratação, carreira, vencimento e jornada dos profissionais da educação estadual paulista (1995-2018). Educação & Sociedade, v. 42, p. 1-20, 2022. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/ES.245702>. Acesso em 13 jul. 2022.VIRGÍLIO, Públio. Eneida, Livro II. Tradução de Odorico Mendes. 2005. Disponível em: <https://bit.ly/3avGXw1>. Acesso em: 13 jul. 2022.

Referências

  1. Allan é militante político e pesquisador da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), atualmente é pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional – GREPPE e do  Grupo de Investigação sobre Política Educacional (GIPE-MARX). Desenvolve estudos sobre a Universidade, Educação Superior, Trabalho e Educação, Privatização e Financeirização. Faz parte do Jornal Universidade à Esquerda e da Escola de Formação Política da Classe Trabalhadora – Vânia Bambirra.
  2. A íntegra do documento pode ser lida no site da CONTEE: <https://bit.ly/3yZFoQ7>. Acesso em: 12 jul. 2022.
  3. SEKI, Allan Kenji. A fabricalização da escola: as Edtechs e a reconversão docente no Brasil e na França. Pesquisa em andamento na Faculdade de Educação da Unicamp, financiada pela FAPESP – Processo nº. 19/01552-3, sob supervisão da Profa. Dra. Selma Venco.
  4. Uma amostra da enorme dispersão de bancos, fundos e outros tipos de investidores institucionais, bem como da enormidade de instituições de ensino superior concentradas na Kroton, Estácio de Sá, Ser Educacional, Laureate e Ânima, em 2018, pode ser encontrada no mapeamento realizado por Seki (2021): <http://bit.ly/2P9AHvY>.
  5. Sobre isso, ver Indicação CEE-SP Nº 216/2022, aprovada em 25/05/2022, cujo tema é “Formação de Técnico em Educação para Apoio Pedagógico na Educação Básica”.
  6. O termo “fábrica”, aliás, aparece no Projeto Universidade Aberta do Brasil, como apontado pela pesquisa de Mandelli (2014).

Selma Venco

Professora no DEPASE, Faculdade de Educação da Unicamp; Pesquisadora do Centre de Recherches Sociologiques et Politiques de Paris (CRESPPA) e Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional (GREPPE); Pesquisa A Nova Gestão Pública e as relações de trabalho praticadas no setor público educacional paulista.

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