Parece ter se tornado ponto pacífico que a disputa pelo socialismo é de narrativa, não de ação. Igualmente, é pacífico que há soluções possíveis e todas passam pela inclusão – seja a inclusão com algum tipo de reforma e adequação, seja a inclusão de alguma particularidade na ordem do dia dos debates políticos.
O que parece ponto fora da curva – algo completamente deslocado e sem sentido – é a crítica sem medos, sem entraves e que, astuta, percebe quando é engolfada pelas regras do jogo da sociabilidade capitalista e com ela trava, incansável, sua luta de vida ou morte. Se não há crítica – que tem por função mostrar o sinal negativo de tudo que vendem como positive vibrations e afirmação –, parece não caber mais o debate sobre binômio reforma ou revolução. Debate ultrapassado por sua dualidade; também, por não ter contexto. Falar em revolução seria uma “ideia fora de lugar”, qualquer modismo sectário que remetesse ao século passado e àquilo que já não mais existe – talvez sequer tenha existido, dizem. Culpa-se a conjuntura e o “momento histórico”; culpa-se a falta de maturidade e a necessidade, à “esquerda”, de “esperar crescer o bolo para o repartir”. Nunca é tempo e sempre o momento já passou.
Esquece-se que o socialismo não é para ontem – é para amanhã. Idem, esquece-se que o socialismo é horizonte e guia – não por acaso, como o Galo Gaulês, canta às seis da manhã, anunciando o dia. O horizonte – o futuro, a efetivação do humano como humano – nos guia para a descoberta do novo mundo. Sem ele, o que há é abismo: a Terra plana da crítica é a falta de perspectiva de ruptura.
Mesmo quando se fala em reformas, não tratam de conduções que alterem o processo histórico, que modifiquem instituições e costumes, que mexam profundamente no “equilíbrio” da composição de classes, desestabilizando-o e o recompondo. Antes, são adequações mais ou menos simplistas para que a miséria real seja suportada, para que a criatura oprimida suspire – e continue vivendo sob opressão, esperando aquele dia que não chega, o dia de sua redenção. Que, como o “Homem-de-lata”, fique no aguardo de um coração. É o ópio do povo: anestesia e dá alento (ilusório) para que prossiga, tal como o moribundo que agoniza esperando seu dia do juízo final.
“Um interesse dominante das burocracias é o do controle. Elas atuam de acordo com a máxima: ‘Confiança é bom, controle é melhor’. O controle do poder só se exerce quando as formas de comportamento dos indivíduos são levadas a um denominador comum, ou seja, quando as diferentes possibilidades de expressão individuais forem reduzidas a posições previsíveis (…, previsíveis segundo mecanismos que a burocracia dispõe). No fundo, isso corresponde ao horizonte de direito burguês, à generalidade da lei; esta necessidade de controle não é, assim, nenhuma particularidade das organizações burocráticas, senão uma característica de qualquer estruturação abstrata da sociedade. (…). De forma nenhuma se trata aqui da deformação terrorista da burocracia, senão na sua forma típica, ou seja, operante.” (Negt; Kluge, 1988, p. 135).
Uma questão: para controlar é preciso ter minimamente alguma consciência do funcionamento do todo, dos meandros do processo político e social. O atual espectro à esquerda – espectro como fantasma mesmo, pois se acha real sem nunca ser realmente – parece ter sido engolido por aquilo que deveria dominar à rédea curta. A burocratização não é fruto de racionalização; ao contrário, ela se dá pela naturalização do dinamismo social: re-encantamento, recaída no mito.
Em contrapartida, tal enfeitaçamento não toma conta somente de quem deveria (em tese) dirigir alguma parte do processo histórico e, nele, apontar saídas: a magia está no todo e se embrenhou tanto nas relações e nos indivíduos que se torna quase segunda natureza: “As burocracias da classe trabalhadora não poderiam impor às massas esta tendência de controle se não houvesse nos indivíduos uma necessidade correspondente de liberdade.” (Negt; Kluge, 1988, p. 135).
A revolução sai de cena, amansada, ao mesmo tempo em que o giro em falso que promete reformas sem reformadores e sem propostas ganha o primeiro plano. Lenin está morto e enterrado! Contudo, não só ele: Celso Furtado e os cepalinos, os “intelectuais orgânicos do Estado” do período desenvolvimentista (1945-1964) e quem mais quer que seja que tenha pensado profundamente um outro Brasil, seja pelo prisma de Reformas – com “R” maiúsculo –, seja pelo da Revolução – idem.
Não por acaso, uma das primeiras e mais eficientes formas de dominação de classes, ainda que de forma não-visível, abstrata, é a colocação de novas e rígidas regras do jogo: reestabelecem as linhas-limites do campo de possibilidades. Submetem todos à sua linguagem, ou se apropriam de palavras-chave dos oprimidos – e delas tiram todo o peso histórico, esvaziando-as – ou impõem para todos palavras e termos novos, pelos quais, a partir de então, deve-se operar (e os que não o fizerem que sejam social e politicamente anulados). A “esfera pública” da classe trabalhadora, que poderia se formar para a ruptura da sociabilidade capitalista – em última instância, ruptura da produção de tudo e todos como mercadoria –, é abortada antes mesmo da consumação de sua concepção: “Os trabalhadores se submetem à influência desta comunicação burguesa, que é manifestada particularmente em situações de crise. Os elementos dela penetram nas organizações da classe trabalhadora e não são lá reconhecíveis como manifestação pública burguesa.” (Negt; Kluge, 1988, p. 137).
As aparentes múltiplas narrativas à esquerda são variações de um mesmo tema de fundo. O grito rebelde não se rebela contra a sociabilidade capitalista – sociabilidade, esta, que é alma das opressões diversas, racismo, machismo e etc. –; antes, revolta-se contra si mesmo: espancam-se espantalhos, reflexos próprios distorcidos.
Se no Brasil, tal como desenvolve Chico de Oliveira no Ornitorrinco, a pobreza funcionaliza a acumulação e a concentração de capital e “harmoniza” a ultradesigualdade de classes e rendas, as “lutas inclusivas” e por “reformas” e o esquecimento da necessidade da utopia concreta (diria Marcuse) funcionalizam as opressões, mas com sinal invertido, tal como numa câmara escura.
No fim, o medo se naturaliza, cria e funcionaliza bloqueios. Ao naturalizar, as transformações profundas dão lugar a compensações irrisórias. Quem teme Revolução teme Reformas, e vice-versa. Parece que tudo não passa de palavrório – satisfação substitutiva. Querem que calemos onde devemos falar; querem que fiquemos em posição de defesa no corner onde devemos destruir os limites do tablado. Aí é que a crítica (práxis) é mais que nunca necessária: à contrapelo, ela desperta para que o dia da ressureição seja anunciado com o cantar do Galo Gaulês.
BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história. In: _. O anjo da história. São Paulo: Autêntica.
FERNANDES, Florestan. O que é Revolução [1981]. In: PRADO Jr., Caio; FERNANDES, Florestan. Clássicos sobre a Revolução Brasileira. 4ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2005, p. 45-122.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: _. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 145-157.
NEGT, Oskar; KLUGE, Alexander. A ideologia de blocos. Esfera pública da classe trabalhadora como sociedade dentro da sociedade. In: MARCONDES FILHO, Ciro (org.). A linguagem da sedução: a conquista das consciências pela fantasia. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 129-146.
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
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