Revolução e utopia

Foto: MPL-SP

Por: Vinicius Xavier – PSOL pela Base / Núcleo Brás

(…) o que se deve dizer é que sem sonhos políticos realistas não existem nem pensamento revolucionário nem ação revolucionária. Os que “não sonham” estão engajados na defesa passiva da ordem capitalista ou na contrarrevolução prolongada.

Florestan Fernandes, O que é Revolução?, p. 116

Durante as duas últimas décadas de sua vida, Herbert Marcuse (1898-1979) concebe um conceito, retirado de Ernst Bloch, e se debruça firmemente nele: utopia concreta. Não era qualquer coisa. Diferente da utopia em sentido abstrato – o não-lugar, o inalcançável –, o conceito de Bloch/Marcuse expõe uma novidade: transformação radical da sociedade, Revolução de baixo para cima – como chamaria Florestan –, é uma possibilidade real. Os meios técnicos estão dados – a libertação das necessidades não é mais uma abstração. Podemos passar ao reino da liberdade como emancipação: em relação às necessidades humanas quanto à natureza externa (em suma, produção para todos, sem que ninguém, no planeta, precise sofrer quaisquer carências) estamos num momento privilegiado; quanto à natureza interna humana, podemos sobrepor quaisquer tipos de repressões, sejam técnicas ou ideológicas, libertando igualmente nosso “caráter” da moralidade burguesa aprisionadora. Trata-se, então, de uma negação determinada: superar a sociedade burguesa capitalista, invertendo suas prioridades, libertar a natureza externa de uma dominação irracional e destruidora e, igualmente, emancipar o ser humano da dominação capitalista sobre suas pulsões de vida.

Defino mudança radical como uma mudança não somente nas instituições e relações básicas de uma sociedade estabelecida, mas também nas consciências individuais em tal sociedade. A mudança radical pode ser profunda a ponto de afetar o inconsciente individual. (…). Em outras palavras, a mudança radical deve envolver tanto uma mudança nas instituições da sociedade, como também uma mudança na estrutura de caráter predominante entre os indivíduos nessa sociedade. (Marcuse, 2018, p. 191).

A Revolução alteraria não somente as formas compósitas das desigualdades da sociedade de classes; transformaria, sobretudo, a sociabilidade e os indivíduos. A sociedade da liberdade emanciparia os indivíduos das mediações sociais que os aprisionam, colocando-os sob outras mediações – estas não mais pautadas na racionalidade tecnológica da dominação social e instintiva. Sociedade e sociabilidades transformadas significam viver para além das amarras das necessidades capitalistas, necessidades, tais, que emanam da forma de produção social capitalista, da divisão do trabalho e das consequentes dominação e opressão da natureza e dos humanos. Acabar com o tipo de necessidade que ata os indivíduos aos meios de satisfação capitalista significa outra sensibilidade, outras formas de relações, não destrutivas, com a natureza (externa e interna); significa, em resumo, outras formas de vida, possíveis e vislumbradas no horizonte, porém ainda não realizadas: utopia concreta

A sociedade sem classes, que suprime a irracionalidade – na qual a produção para o lucro se enreda e satisfaz as necessidades –, também suprimirá o espírito prático, que se faz presente mesmo na ausência de fins da l’art pour l’art [arte pela arte]. Ela supera não apenas o antagonismo burguês de produção e consumo, mas também sua unidade burguesa. Que algo seja inútil não será mais nenhum escândalo. A adaptação perderá seu sentido. A produtividade então, apenas em sentido próprio, não dissimulado, terá seu efeito na necessidade: não na medida em que o insatisfeito se sacie com o que é inútil, mas sim que o saciado consiga se comportar em relação ao mundo sem ser regulado pela utilidade universal. Se a sociedade sem classes promete o fim da arte ao superar tensão entre real e possível, logo ela promete, ao mesmo tempo, o começo da arte, o inútil, cuja intuição tende à reconciliação com a natureza, pois não mais está a serviço do que é útil para o explorador. (Adorno, 2015, p. 234-5).

Contudo, a Revolução não é automática. Quem seria o sujeito revolucionário? Marcuse não fala em classe trabalhadora, em proletariado. Para ele, a “sociedade da abundância” (abundância de mercadorias, de satisfações substitutivas e falsas, ao mesmo tempo abundância de dominação, de não-liberdade como a maior libertação possível, assim por diante) trouxe ganhos à parte das classes trabalhadoras. Elas teriam sido, ainda que de modo alienado e coisificado, integradas à sociedade do consumo de massas. Assim, grande parte dos trabalhadores teria muito mais a perder que somente seus grilhões – e Marcuse poderia ter dito, do mesmo modo, que a burocratização de partidos “contra a ordem” igualmente amarraria seus “quadros” a mesquinharias que impedem, inclusive, suas radicalizações: essa vanguarda que dirige pouco mais, talvez, que o próprio umbigo têm mais a perder que somente seus grilhões… O proletariado, então, teria sido fragmentado e absorvido, em partes consideráveis, pela sociabilidade capitalista e para operar o Estado por dentro sem se opor a ele frontalmente – Florestan falaria, por isso, na vitória da autocracia burguesa. Os sujeitos revolucionários, para Marcuse, são segmentos da sociedade que podem ser compostos por intersecções de classes e frações de classe. 

Marcuse, apontando sua crítica também à burocratização dos países do chamado socialismo real, não apostaria nas vanguardas políticas tradicionais. Não é o moderno príncipe gramsciano, tampouco a vanguarda, de cunho “leninista”, “trotskista” ou seja o que for (que hoje, consideravelmente, mais se assemelha a uma classe de “burocratas” à parte – lembrando Chico de Oliveira em seu Ornitorrinco), que levariam adiante uma transformação radical da sociedade e das relações sociais. 

A luta dos de baixo talvez tenha estado muito tempo em vigília – ou “na resistência”, como gostam de dizer – e, por isso, tenha perdido a capacidade de fechar os olhos e sonhar concretamente. Talvez esteja tão aferrada às árvores com as quais se embate que não consegue enxergar a floresta. Ou talvez esteja num tal estado de cegueira que cada qual veja somente seu próprio umbigo (ou sua organização, seu fragmento irrisório de um suposto poder local que visa alguma inserção na estrutura – em alguns casos, inserção “seja como for”). 

Esquece-se, em tudo isso, o que Marcuse viu, há mais de 50 anos, como “fim último”: a liberdade. 

O marxismo deve ter a coragem de elaborar uma definição do conceito de liberdade, capaz de fazer sentir e reconhecer essa última como um bem jamais gozado pelos homens. E, precisamente porque as chamadas possibilidades utópicas não são absolutamente utópicas, mas antes representam uma determinada negação histórico-social do existente, a tomada de consciência delas – bem como a determinação consciente das forças que impedem a sua realização e que as negam – exigem de nossa parte uma oposição muito realista e muito programática, uma oposição livre de todas as ilusões, mas também de qualquer derrotismo, uma oposição que, graças à sua simples existência, saiba evidenciar as possibilidades da liberdade no próprio âmbito da sociedade existente. (Marcuse, 1969, p. 22).

Com Marcuse, o sonho daquele homem ridículo de Dostoiévski já não é mais um vôo para um lugar distante: a Revolução tem um solo firme na mesma medida em que a utopia põe ambos os pés no chão. Quem fará a Revolução Socialista? Bem, não se sabe. Porém, talvez estejamos tão aferrados a ela como retórica de uma expressão vazia de sentido que, mais uma vez, talvez estejamos remando na contramão e bloqueando sua marcha ao mesmo tempo em que a exibimos oca.


ADORNO, Theodor W. Teses sobre a necessidade [1942]. In: ___. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. Trad. Verlaine Freitas. São Paulo: Editora Unesp, p. 229-235, 2015. 

BLOCH, Ernst. O princípio esperança, v. 1 [1938-1947]. Trad, Nélio Schneider. Rio de Janeiro: EdUERJ; Contraponto, 2005. 

FERNANDES, Florestan. O que é Revolução [1981]. In: PRADO Jr., Caio; FERNANDES, Florestan. Clássicos sobre a Revolução Brasileira. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, p. 45-122, 2012. 

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica [1975]. Curitiba: Kotter Editorial; São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.

MARCUSE, Herbert. O Fim da Utopia [1967]. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969. 

MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional: estudos da ideologia da sociedade industrial avançada [1964]. Trad. Robespierre de Oliveira, Deborah Christina Antunes e Rafael Cordeiro Silva. São Paulo: Edipro, 2015.

MARCUSE, Herbert. Ecologia e crítica da sociedade moderna [1979]. Trad. Fernando Bee. Dissonância: Revista de Teoria Crítica, v. 2, n. 1.2 (Dossiê Herbert Marcuse, Parte 2), Campinas, p. 190-203, jun. 2018.

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista [1972] /O ornitorrinco [2003]. São Paulo: Boitempo, 2003. 
SCHÜTZ, Rosalvo. Dialética da libertação: Crítica e utopia na teoria da emancipação de Marcuse. Dissonância: Revista de Teoria Crítica, v. 2, n. 1.1 (Dossiê Herbert Marcuse, Parte 1) Campinas, p. 125-149, jun. 2018.

Resistência Popular

Núcleo PSOL - Resistência Popular, Brás, São Paulo

Vinicius dos Santos Xavier

Militante marxista desde o início dos anos 2000, Professor de filosofia da rede estadual de São Paulo, integrante do grupo de estudos “Repensando o Desenvolvimento”, do LABIEB-USP no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *