Volveremos a la montaña!

Sobre o Foquismo e a Luta Revolucionária na América Latina [*]

Ven conmigo
ven conmigo, escóndete.
Nuestro jefe está esperando,
escóndete.
Caminaremos de noche,
galoparemos de noche,
hasta llegar hasta él.

……….

Volveremos
hacia el norte, hacia el sur,
hacia el indio americano.
Yo y tú con el ángel de la guarda,
con la voz de Che Guevara
disparará mi fusil.

Victor Jara

I. O Marxismo e a América Latina

O marxismo defrontou-se com as lutas sociais na América Latina em dois sentidos concorrentes. Por um lado, como corrente teórica, aplicada à interpretação dos fatos sociais, passados e presentes, e, por outro, como corrente prática, dedicada à intervenção na luta de classes, no aqui e no agora, para a superação das contradições sociais no sentido das necessidades dos trabalhadores. Em sentido lato, em importantes regiões do continente, os confrontos entre oprimidos e opressores, a oposição de grupos ou comunidades à espoliação, foram anteriores à conquista do continente pelos europeus, determinando a seguir o próprio impulso colonizador. É impossível compreender a conquista do Peru e do México sem o apoio inicial aos ibéricos de comunidades locais submetidas pelos segmentos dominantes das formações tributárias incas e asteca. [SORIANO, 1985.]

As Américas conheceram rosário de movimentos de resistência, restritos e amplos, explícitos ou não, contra a colonização ibérica, que perderam crescentemente as aparências de luta étnica e nacional para assumir mais e mais o caráter de oposição à exploração social e de classe, sobretudo quando da crise do regime colonial e nos primeiros anos da América independente. Esses esforços de resistência que determinaram a história americana, como nos casos excelentes da confederação dos quilombos de Palmares, no século 17; da insurreição de José Gabriel Condorcanqui [Túpac Amaru II], nos anos 1780, à frente de mestiços, indígenas, cativos e colonos empobrecidos; da Guerra Guaranítica, em 1753-56, no sul da América. [BRUXEL, 1978; LUGON, 1977; SEVERAL, 1995; CARNEIRO, 1988; FREITAS,1984; PÉRET, 2002.]

Nesse processo, as classes subalternizadas jamais obtiveram conquistas substanciais gerais advindas do combate consciente ou semi-consciente às múltiplas formas de exploração. Comumente, as grandes lutas sociais no período colonial foram vergadas e aplastadas e a própria solução da crise do regime colonial deu-se sob o controle das oligarquias crioulas, como na derrota, em 1820, do projeto de independência, de forte cunho social, de José Artigas, na Banda Oriental do Uruguai. [TOURON, TORRE, RODRIGUEZ, 1978.]. Duas grandes exceções foram Saint-Domingues/Haiti, em forma ampla, onde os trabalhadores escravizados derrotaram o Estado colonial escravista e impuseram organização da sociedade baseada no trabalho camponês livre. [GISLER, 1981; JAMES, 1968; SHOELCHER, 1982]. E a República do Paraguai, em forma transitória, onde a organização social surgida da ditadura republicana plebéia do dr. José Gaspar de Francia, de 1814 a 1840, expressou as necessidades sobretudo do campesinato hispano-guarani [chacareros]. Realidade revertida pela guerra liberal-imperialista empreendida pelo Império do Brasil e pela Argentina mitrista, em 1864-1870. [MAESTRI, 2015; MAESTRI, 2017; MAESTRI, 2019; ANDRADA E SILVA, 1978; RIVERA, 2007; SOUSA, 1996.]

Marxismo como Método de Interpretação

A América Latina foi objeto marginal na análise marxiana, apesar da proximidade familiar de Karl Marx com o continente, devida a Paul Lafargue, seu genro cubano. [ARICÓ, 1982.] Por sua vez, o marxismo foi ali internalizado pontualmente, quase como pensamento exótico, momentos após sua constituição como ciência social da classe trabalhadora europeia para a interpretação da história e a conquista do poder, a partir de meados do século 19, momento demarcado pela publicação do Manifesto comunista, em 1848. Uma introdução de escassa consequência teórica e prática, considerando-se à inexistência de condições objetivas necessárias para que aquela visão de mundo se transformasse em práxis. A inexistência ou fragilidade do operariado moderno, no seio de formações sociais americanas ainda dominantemente rurais, apoiadas sobremaneira no trabalho escravizado, servil ou pré-capitalista, entravava a aplicação do método marxista em leitura radical da realidade e, mormente, na construção de programas sociais e políticos ancorados em blocos sociais revolucionários. 

Em realidades dispares crescentemente mercantis, mais e mais determinadas desde 1848 pelas necessidades da produção capitalista inglesa, já em sua primeira fase imperialista, não existiam na América Latina classes trabalhadoras significativas socializadas na produção. Segmentos sociais capazes de sustentar projetos de superação das formas de dominação e exploração vigentes, mesmo em forma embrionária, interpretando as necessidades históricas dos subalternizados. Em 1871, os trabalhadores parisienses tomaram e mantiveram transitoriamente o poder em Paris, um dos maiores centros capitalistas de então. [BOURGUIN, 1947; BRUHAT, 1960; GONZÁLEZ, 1999; LISSAGARAY, 1991; RECLUS, 1905.] No Brasil, nação-continente, no mesmo ano, libertavam-se em forma relativa os filhos das mulheres escravizadas. Como em Cuba, o direito de propriedade do explorador sobre o produtor direto manteria-se ainda por quase duas décadas! [CONRAD, 1975; FRAGINALS, 1987, 1989.] Na Argentina, em 1878-79, procedia-se à “Conquista do Deserto” e ao extermínio das comunidades nativas dos pampas, por exército moderno, e à sufocação das formas gáuchas de viver e produzir, para ampliação das áreas da produção mercantil agro-pastoril ligadas ao porto de Buenos Aires. [EBELOT, 1968; ASSUNÇÃO, 1999; BARSKY, 2003; GIBERTI, 1986.]

Nos anos 1910, os limites sócio-históricos da Revolução Mexicana foram registrados pela ocupação e abandono da capital pelos camponeses armados, que, após vitória militar, mostraram-se incapazes de levantar programa que avançasse além da distribuição de terra, garantindo à sociedade formas superiores de organização e às classes oprimidas maiores garantias sobre suas conquistas. [LANSFORD, 1968; WOMACK JUNIOR, 1980.] Pouco mais de uma década antes, em Belo Monte, no nordeste brasileiro, rústicos sertanejos armados vergaram importantes expedições policiais regionais e militares nacionais, mas foram incapazes de superar as visões mágicas de mundo e articular projeto de reforma radical do direito de propriedade e do Estado. [MAESTRI, MACEDO, 2005; CUNHA, 1911; FACÓ, 1965; MONIZ, 1987.] Ao igual do que aconteceria, em inícios do século seguinte, na fronteira entre os estados de Santa Catarina e Paraná, durante a guerra sertaneja do Contestado. [MACHADO, 2004; BERNADET, 1979; QUEIROZ, 1966.]

Pequenas Ilhas Operárias

Na América Latina, as minúsculas ilhas urbanas de produção capitalista manufatureira ensejaram, sobretudo, organização defensiva dos trabalhadores, sob programa e ideologia anarco-individualista e, a seguir, anarco-sindicalista, que não conseguiram, por razões objetivas, superar os limites estreitos das regiões onde se encontravam. No Brasil, após as importantes vitórias operárias de 1906, parte do programa das organizações dos trabalhadores foi conhecer e coordenar os esforços com os outros núcleos idênticos no país. Iniciativa sem maiores desdobramentos, tendo-se em vista a organização regional da produção manufatureira-industrial, das organizações operárias e o domínio do caráter rural do Brasil da época. [MAESTRI, 2019; BOITO, 2000; CARONE 1996.] Porém, em 1917, ao igual do que ocorreu através do mundo, a Revolução Russa revolucionou amplamente a subjetividade de importantes segmentos dos trabalhadores americanos fabris e manufatureiros urbanos. A vitória soviética materializou diante dos seus olhos a possibilidade objetiva dos trabalhadores das cidades e dos campos, aliados, de conquistar o poder e organizar a sociedade segundo as necessidades e os valores do mundo do trabalho. [BANDEIRA; MELO; ANDRADE, 1980; MAESTRI, 2019.] Um impacto acrescido pela crise da produção capitalista no final da I Guerra Mundial.

Através da América Latina, sob o impulso da revolução soviética, grande parte da militância anarquista migrou para o comunismo e para os partidos comunistas nacionais em formação, não raro sem ter claro o sentido da evolução que empreendiam. A Revolução Russa causou pouco impacto sobre setores médios. Na América Latina, à exceção de casos singulares, como o Chile, que possuía importante setor mineiro, o operariado prosseguiu sendo segmento minoritário, em nações rurais, conhecedoras de múltiplas formas de dominação. [MAGASICH 1970, 2020-24.]

O processo de industrialização, por substituição de importações, em importantes regiões da América Latina [Argentina, Brasil, Chile, Peru, México], com um primeiro impulso importante durante a I Guerra, conheceu forte aceleração, desde os anos 1930, criando as condições para a convergência das condições objetivas e subjetivas necessárias para que os trabalhadores se transformassem nos paladinos das classes exploradas latino-americanas, no processo de construção de sua autonomia política e ideológica. Porém, nesses momentos, o movimento comunista internacional já vivia sob a forte dominação da burocracia stalinista. [TROTSKY, 1963; MARIE, 2009.] Sob a direção do Bureau para a América Latina da Internacional Comunista, o comunismo latino-americano envolveu-se nas aventuras esquerdistas e sectárias do Terceiro Período [1928-1934], como o putsch aliancista brasileiro de 1935, lançado à margem e no desconhecimento dos trabalhadores. Um esquerdismo que se metamorfoseou, logo, em deslavado colaboracionismo com a burguesia nacional-desenvolvimentista, política ditada por visões tacanhas dos interesses diplomáticos da burocracia que se apoderara do poder na URSS. [HERNANDEZ, 1985; MONTAGNA, 1988; OLIVEIRA, 1996; PRESTES, 1997.]

Em forma geral, a subjunção da ação dos trabalhadores à direção nacional-desenvolvimentista burguesa exigida pela direção stalinista moscovita facilitou a entrega da hegemonia da esquerda marxista sobre os setores operários mais avançados para o populismo burguês e pequeno-burguês, no momento em que, em muitos países, o moderno operariado assumia crescente importância. Uma situação que dificultou a construção de interpretações materialistas e de programas operários e revolucionários concretos para o continente, circunscrevendo a forte debilidade teórica marxista continental que vivemos até hoje. No Brasil e alhures, leituras positivistas, salpicadas de categorias e citações marxistas, foram propostas e aceitas como interpretações materialistas históricas. A capacidade interpretativa da realidade por marxismo dominado pelo stalinismo esgotou-se na acomodação à cama de Procusto das necessidades políticas frente-populistas. Em fins dos anos 1950, quando pulsava o desenvolvimento da produção capitalista em países como o Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Venezuela, México, Cuba, produzindo fortes núcleos de trabalhadores em condições de se levantarem como alternativas nacionais, o movimento operário encontrava-se apealado à hegemonia do stalinismo e do populismo pequeno-burguês e burguês.

Sem Alternativas

A oposição efetiva a essa orientação, de um ponto de vista marxista revolucionário, reduziu-se às pequenas organizações anarquistas e sobretudo marxista-revolucionárias [trotskistas]. Essas últimas já envolvidas em processo de dispersão ensejado pela construção da IV Internacional em contexto adverso: vitória do nazismo na Alemanha, em 1933; derrota da revolução na Espanha, em 1936-39; assassinato de León Trotsky, em 1939; prestígio do stalinismo após o fim da II Guerra Mundial; construção do movimento desde fora da classe operária, etc. [ABRAMO, 1984; ALEXANDER, 1973; DESPALIN,1980; CANONON, 2013; MARIE, 1981.] Na América Latina, apenas na Bolívia, o movimento trotskista assumiu caráter de massa [POR boliviano], impulsionando a autonomia operária e determinando a vida nacional. [LORA, 1998.] Os frágeis laços do marxismo-revolucionário com o operariado latino-americano facilitou as fortes derivas políticas das direções trotskistas ditas pablistas, posadistas, morenistas, mandelistas etc.

A política nacional-colaboracionista facilitou enormemente a derrota histórica vivida pelo Brasil, em 1964, com importantes repercussões mundiais, contribuindo para o fim da hegemonia daquela corrente sobre a vanguarda marxista, comunista e operária, não apenas no Brasil. Mais tarde, essa orientação colaboracionista seria retomada, em um contexto estruturalmente diverso, com a vitória da Unidade Popular no Chile, em 1969-73, com resultados ainda mais dramáticos. [MAGASICH 1970, 2020-24.]

 Algumas grandes determinações contribuíram à crise da hegemonia stalinista sobre o movimento comunista latino-americano, a partir da segunda metade dos anos 1960: 1) o avanço da revolução mundial, desde o fim da II Guerra Mundial, com aceleração nos nos 1967-8, quando da crescente crise da expansão capitalista de pós-guerra e da resistência operária à reestruturação capitalista; 2) as vitórias da luta anticolonial, anti-imperialista e, em alguns casos, socialistas, mormente na África e na Ásia – Argélia, Egito, Indochina etc.; 3) a vitória da Revolução Cubana, em 1959, e sua rápida orientação socialista, em 1961; 4) a fragorosa derrota da proposta de revolução por etapas, democrático-nacional, sob a direção da dita burguesia progressista, nacional industrialista no Brasil, em 1964, e na Indonésia, em 1965.

No caso latino-americano, qualquer balanço crítico sobre a ação da esquerda marxista e de suas relações com o movimento social nas décadas determinantes de 1960 e 1970 deve necessariamente considerar dois fenômenos germinais e contraditórios, apesar de sua gênese única. Primeiro: o enorme impulso ao sentimento revolucionário propiciado à América Latina pela vitória popular e socialista sobre a ditadura de Fulgêncio Batista, nas barbas do imperialismo estadunidense, em 1959-61. Segundo: a não menor desorganização e liquidação geral de enorme parte da vanguarda marxista pelas propostas guerrilheiras fidel-guevaristas [foquismo], de luta armada incondicional pelo poder, ou seja, imediata, não importando as condições gerais das sociedades latino-americanas. Proposta nascida e apoiada em arbitrária interpretação e generalização das “lições da Revolução Cubana”, assentadas em visão unilateral que maximizou e extrapolou o papel da luta guerrilheira na Serra Maestra, desconhecendo que sua vitória só foi possível devido à desorganização da coerção estatal pela crise revolucionária geral da sociedade cubana, impulsionada pela rebeldia que se espraiou sobre a ilha. [BAMBIRRA, 1975.]

II. Revolução Cubana: Realidades e Interpretações

A celebração do cinquentenário da Revolução Cubana, em 2011, ensejou importantes balanços sobre os sucessos. Até onde nos foi possível ver, ela não foi aproveitada para realizar um balanço, desde a ótica do mundo do trabalho, da derrapagem guerrilheira ensejada pelas propostas fidel-guevaristas, de consequências dramáticas, sobretudo – mas não apenas – para a vanguarda latino-americana. As críticas contra tal proposta, na época em que eram defendidas, com destaque para os anos 1970, não alcançaram legitimação teórico-prática, desorganizadas pelo enorme prestígio de então da Revolução, transferido indevidamente para as teorias guerrilheiras. A crítica e a autocrítica marxistas revolucionárias, do fracasso rotundo das propostas foquistas e de suas terríveis sequelas, foram dificultadas, a seguir, pelo refluxo do processo revolucionário mundial, a partir dos anos 1980, com ápice na destruição da URSS, em 1989-91, que enfraqueceu crescentemente a própria proposta e ideia de revolução social. [MAESTRI, 1923.]

A gênese e a consolidação das propostas foquistas pela direção fidel-guevarista deram-se através de verdadeira “construção de tradição” sobre a Revolução Cubana. Ela foi efetivada, por um lado, com o silêncio e secularização de sucessos determinantes e , por outro, ênfase, generalização e absolutização de fatos complementares, ainda que importantes.. Entre eles destacam-se o silêncio sobre o caráter inicial pequeno-burguês, desenvolvimentista e anti-socialista do futuro Movimento 26 de Julho e de sua proposta de derrubar a ditadura de Fulgencio Batista [1901-1973], instalada em março de 1952, através de ação militar que desembocasse em greve geral. Esperava-se que o desembarque fracassado de Fidel, associado a outras ações armadas, pelo impacto, motivassem sublevação nacional. De certo modo, como ocorrera quando da queda da ditadura de Geraldo Machado [1871-1839], em 12 de agosto de 1933. Queda da ordem ditatorial determinada por mobilizações e greves sobretudo operárias, que incendiaram a ilha. Quando da revolução de 1933, engenhos foram ocupados, formaram-se brigadas operárias armadas, a sub-oficialidade do exército rebelou-se, sob a direção de um sargento mulato de extração popular. Após a queda do ditador, governo reformista promoveu algumas medidas democráticas e sociais. Porém, logo, com o fortalecimento da crise e das exigências populares, o poder passou a ser exercido por Fulgencio Batista, ex-sargento e ex-revolucionário, o novo caudilho populista das forças armadas, das classes dominantes cubanas e do imperialismo.

Em julho de 1933, sob a orientação sectária do Terceiro Período, o partido comunista cubano não apenas se pôs às greves que levariam à queda do governo, como empreendeu forte oposição ao governo pequeno-burguês reformista que surgiu da queda da ditadura, definido de social-fascista. Na continuação, obedecendo à guinada da Internacional Comunista stalinizada, que passou a exigir a aliança e a submissão dos trabalhadores aos setores ditos progressistas e anti-fascistas da burguesia, mergulhou em deslavado colaboracionismo. Ladeira abaixo, o partido comunista cubano terminou apoiando a Fulgencio Batista, eleito presidente, para o período 1940-44, em aliança com o Partido Socialista Popular, a denominação do PCC desde 1944! Em 13 de julho de 1940, referindo-se a Batista, o jornal comunista HOY escrevia: “Cubano ciento por ciento, celoso guardador de la libertad patria […] prohombre de nuestra política nacional, ídolo de un pueblo que piensa […] hombre que encarna los ideales sagrados de una Cuba nueva […].” [RAMÍREZ, 2008. p. 90-91] Membros do partido comunista cubano seriam ministros no governo de Fulgencio Batista. A love story dos comunistas com a burguesia cubana e o imperialismo terminaria apenas em 1947, defenestrados do agradável convívio com as classes dominantes, por determinação estadunidense, que lançava a dita Guerra Fria. [CASTAÑEDA, 2006. p. 109.]

 São pouco enfatizadas as origens do futuro Movimento 26 de Julho, a partir da fratura, em maio de 1947, do Partido Revolucionário Cubano (Autêntico), nacionalista-burguês, comandada por Eduardo Chibás [1907-1951], político cubano populista, moralista, anti-imperialista e anti-comunista. Do fracionamento nasceu o Partido do Povo Cubano (Ortodoxo), de programa burguês-reformista e moralizador, de crescente prestígio em Cuba – “Prometemos não roubar”. [CASTAÑEDA, 2006.] A possível vitória eleitoral ortodoxa fora impedida pelo golpe militar de Fulgencio Batista, de 1952. Em 26 de julho de 1953, quando dos assaltos dos quartéis Moncada [Santiago de Cuba] e Céspede [Bayano], sobretudo por militantes ortodoxos radicalizados, Fidel Castro, então com 26 anos, ex-candidato ao Congresso, portava o que seria o “último discurso” radiofônico de Eduardo Chibás”, antes de se suicidar, depressivo. Fidel contava levantar com ele a população, através de transmissão por rádio, caso os assaltos vingassem.[CASTRO, 1961. p. 32; FURIATI, 2001.]

 Boa parte dos 160 revolucionários ortodoxos que participaram da operação militar foi massacrada após os combates e Fidel foi preso e condenado a quinze anos de prisão, sendo mais tarde anistiado, em 1955. Transformada em opúsculo, sua defesa foi maciçamente divulgada, em abril de 1954, sob o título “A História me Absolverá”, frase conclusiva dessa proclamação revolucionária diante do tribunal de exceção. O assalto, o massacre, a defesa apaixonada e intransigente transformaram Fidel Castro em referência política nacional. O jovem líder afastaria-se do Partido Ortodoxo apenas em 9 de março de 1956, sem deixar de contar com o apoio econômico e político de importantes lideranças daquela agremiação e de segmentos da burguesia na oposição. [CASTAÑEDA, 2006, p. 127.]

Estratégia Putschista

Como quando dos assaltos aos quartéis Moncada e Céspede, o Movimento 26 de Julho, fundado informalmente em 1955, no México, seguiu propondo a sublevação nacional, após golpe putschista. Para tal, organizou-se o desastrado desembarque em Cuba, igualmente comandado por Fidel Castro, de pequeno grupo de oitenta combatentes, em 2 de dezembro de 1956, transportado pelo iate Granma, dois dias mais tarde do combinado levantamento em Santiago de Cuba, concomitante a outros movimentos grevistas e de protesto. Após desembarque tumultuado e grave derrota militar em Alegria del Pio, Castro e quinze combatentes remanescentes – entre eles Raul Castro e Che Guevara – refluíram para a próxima serra Maestra, território pobre, isolado, pouco povoado, onde, foram apoiados por camponeses desde os primeiros momentos. Ali se mantiveram entrincheirados, como retaguarda armada de movimento de oposição atuante através de toda a ilha.

Nesse momento, todos, nas cidades, nos campos e na serra, do Movimento 26 de Julho às demais organizações associadas no combate à ditadura, com destaque para o Diretório Revolucionário 13 de Março, fundado em 1957, propunham a insurreição geral como estratégia de deposição da ditadura, sem qualquer esperança em derrotar o poderoso exército do Estado cubano a partir dos desmilinguidos guerrilheiros rurais. Em inícios de 1958, um ano após o desembarque no Granma e um ano antes da queda da ditadura, os guerrilheiros na serra Maestra eram uns duzentos homens, enquanto o exército ditatorial superava os cinquenta mil soldados. Os guerrilheiros da serra Maestra não constituíam fonte de inquietação para a ditadura sanguinária e o imperialismo, que não se aplicaram verdadeiramente em sua destruição, até meados de 1958.

Em 30 de julho de 1957, o assassinato de Frank País, com 20 anos, dirigente do Movimento 26 de Julho, em Santiago de Cuba, motivou amplo movimento espontâneo de greves, a partir daquela cidade e em outras grandes aglomerações urbanas da ilha, demarcando a enorme oposição popular ao regime, que se avolumava em forma incessante. Em inícios de 1958, a ação do Movimento e de outras organizações antiditatoriais através de Cuba, assim como a crise social e política, avançavam de tal modo que a direção do 26 de Julho, localizada integralmente na cidade, em acordo com Fidel Castro, propôs greve geral nacional, para lançar estocada final na ditadura.

Em 12 de março, o manifesto de 22 pontos assinado por Fidel Castro, designava como presidente do Governo Provisório ao dr. Manuel Urrutia Lleó [1908-1981], que presidiria, mais tarde, Cuba revolucionária, antes de abandonar a ilha e aderir à contra-revolução. A organização da greve geral deu-se segundo os princípios políticos e estratégicos do Movimento, sem tradição junto ao movimento operário. A paralização foi decretada de surpresa, sem a incorporação das principais organizações dos trabalhadores. O Partido Socialista Popular, comunista, com raízes no movimento operário urbano, foi mantido conscientemente à margem do comitê organizador clandestino da greve geral, por razões táticas, políticas e ideológicas.

Fidel Castro sempre se mostrara contrário à incorporação dos comunistas ao movimento, temendo as consequências no que se refere aos membros do frente anti-ditatorial – ou seja, não queria afastar os apoios burgueses do processo em marcha. Possivelmente, a colaboração passada dos comunistas com Fulgencio Batista fortaleceria sua resistência. Às 11 horas da manhã de 9 de abril, destacamentos do Diretório Revolucionário, membro do Movimento 26 de Julho, “interromperam as transmissões da Rádio Relógio e da Onda Hispano Cubana”, para conclamar os trabalhadores à greve. Ocupados em seus afazeres, uma enorme parte do operariado sequer escutou a conclamação para “greve geral revolucionária”; não poucos temeram tratar-se de provocação da ditadura, outros não aderiram à paralização por não escutarem o chamamento de suas organizações, etc. Militantes dos comandos armados que apoiariam à greve geral fracassada foram massacrados e ações planejadas através da ilha não se cumpriram ou pouco prosperaram. O fracasso da greve geral insurrecional constituiu uma enorme derrota para o Movimento 26 de Julho. [FURIATI, 2001: 465] Entretanto, ela não motivou refluxo da oposição popular crescente à ditadura, como o 26 de Julho esperava.

Apenas após o inevitável fracasso da proposta greve geral convocada de surpresa pela direção urbana do 26 de Julho, com a plena concordância e participação de Fidel Castro na serra, foi que a direção política do movimento em retirada passou da cidade para a montanha, assumindo então Fidel Castro a secretaria geral do comando geral revolucionário, além da direção do pequeno núcleo armado. Uma transferência precautória devida, em grande parte, à resposta repressiva que se abateu sobre os militantes nas cidades, depois do fracasso da aventura grevista. “A violenta repressão desencadeada pela greve fizera escassear até a generosidade de alguns bons burgueses: se antes era possível obter abrigo e auxílio em lares de classes média e alta, agora na grande maioria deles não se atendia ao telefone, nem se franqueava a porta. Mas a direção só podia enviar para a Serra os militantes de grande risco. Na cidade, o Movimento 26 de Julho entrava em profunda crise.” [FURIATI, 2001: 468]

Entre outros, o 26 de Julho e a luta anti-ditatorial contavam com apoio de setores da burguesia açucareira descontentes com a orientação econômica e política da ditadura, que suspendera a venda de açúcar para a URSS e países do leste europeu, por imposição estadunidense. Como os dirigentes do 26 de Julho, eles previam a restauração de uma ordem democrático-burguesa, quando esperavam fazer valer suas exigências econômicas. A transferência da direção do 26/07 da cidade para o serra teve decorrências e sentidos políticos, já que Fidel Castro, Che Guevara, Raul Castro, etc. constituíam fração da chefia do movimento mais radicalizada, contrária às acomodações com a ditadura e o imperialismo, apesar de não superarem o programa democrático-reformista.

Após o fracasso da greve geral insurrecional, a ofensiva da ditadura se expandiu das cidades para a Serra, com o envio, por primeira vez, de fortíssimo contingente de dez mil soldados, apoiado pela aeronáutica e pela marinha militar, para pôr fim definitivo ao frágil núcleo armado. Mesmo com os companheiros transferidos da cidade, nesse momento, o núcleo rural armado não contava mais de 280 combatentes! Apenas duzentos a mais do que os desembarcados em dezembro de 1956! Para enorme surpresa dos próprios guerrilheiros, que esperavam tempos dramáticos, em poucas semanas, após alguns duros e tensos combates, a ofensiva geral de abril da ditadura, derrotada, refluía, e os gatos-pingados da serra conheciam o milagre da multiplicação dos pães. Fidel Castro recorda esses estranhos momentos: “Depois da ofensiva, que durou aproximadamente uns 35 dias, em vez de 300 éramos mais de 800 homens armados.” Paradoxal fortalecimento que jamais cessou de crescer, até o abandono de Fulgencio Batista da ilha, em 1º de janeiro de 1959, e o posterior ingresso das colunas guerrilheiras em La Habana. [FURIATI, 2001: 468 et seq.]

Na natureza física e social não há milagres. Apenas a transformação da crise revolucionária, que abraçava a ilha, em situação revolucionária, após o fracasso da tentativa do putsch grevista, e o espraiar-se da insubordinação/insurgência popular nas cidades e nos campos, através de greves, confrontos, ações armadas, grupos guerrilheiros, etc., explicam o paradoxal fortalecimento do minúsculo mas decidido núcleo armado guerrilheiro, após a aparente gravíssima derrota de abril. Havia muito que, ao defrontar-se com população semi-sublevada, desmoralizados, os soldados negavam-se a sair dos quartéis; rendiam-se, mesmo quando superavam fortemente em número os oponentes; abandonavam as armas; saltavam para o outro lado da trincheira. O exército da ditadura ruiu sem organizar confronto geral com as colunas guerrilheiras que se avolumavam à medida que evoluíam aguerridas através do país. À exceção de combates travados na Serra, quando da ofensiva da ditadura, as forças revolucionárias comandadas por Fidel travaram apenas um confronto de maior amplitude, em Santa Clara, sob as ordens de Che Guevara, antes da fuga de Fulgencio Batista e da literal dissolução do exército ditatorial, processo ainda pouco estudado e conhecido. Na luta geral contra a ditadura, teriam morrido vinte mil cubanos.

A Revolução em Marcha

A origem do Movimento 26 de Julho nos partidos autêntico e ortodoxo circunscreveu o seu caráter democrático-burguês, desenvolvimentista e anti-socialista, oposto à luta de classes, que se manteve literalmente até após a conquista do poder, em janeiro de 1959. Realidade em geral pouco enfatizada pelos analistas de esquerda da Revolução Cubana. Em julho de 1958, já em plena crise da ditadura, quando o “processo insurrecional” se havia “estendido a todo o país”, em nome do 26 de Julho, Fidel Castro assinou o “Pacto de Caracas” com membros da oposição burguesa, representada pelos Partido Cubano Revolucionário (Autêntico), Partido Democrata, etc. No documento acordava-se reconduzir o país, após a “queda do tirano” e um “breve governo provisório”, à “normalidade” e ao “procedimento constitucional e democrático”. O programa mínimo do novo governo prometia o “castigo dos culpados, os direitos dos trabalhadores, a ordem, a paz, a liberdade, o cumprimento dos interesses internacionais e o progresso econômico, social e institucional”. O partido comunista cubano ficara fora do acordo. [PACTO, 1958.]

Fidel Castro detalhara em “A História me Absolverá” o programa político do futuro Movimento 26 de Julho. No plano econômico, ele defendia sobretudo a promoção por governo revolucionário provisório do aumento dos salários dos professores, militares, etc.; a entrega da terra, com indenização dos proprietários, aos “colonos, sub-colonos, arrendatários, parceiros e precaristas”, até 67 hectares; a participação dos operários nos lucros das empresas e dos colonos no rendimento da cana-de-açúcar; o apoio à industrialização; a nacionalização do Trust Elétrico e Telefônico”. O programa defendia a reforma agrária, da educação, da saúde, da habitação, da Justiça, da administração; política internacional progressista e a luta contra a corrupção. [CASTRO,1961,p. 55 et seq.] Após implementadas essas ações, eleições gerais promoveriam a volta à normalidade constitucional.

 No corpo do programa e na longa defesa de Fidel Castro, quando julgado, não há referências ao socialismo ou a medidas que ultrapassassem as instituições burguesas. Não mentia nem era oportunista o jovem comandante máximo do vitorioso Movimento ao declarar, em 17 de abril de 1959, quatro meses após a conquista do poder, em Washington, na Associação de Diretores de Jornais: “Não sou comunista, nem estou de acordo com o comunismo […].” “A democracia e o comunismo não são uma e a mesma coisa para mim.” [BAMBIRRA, 1975, p. 251; CASTAÑEDA, 2006.] Essa era a situação política e ideológica geral do núcleo dirigente guerrilheiro e da direção máxima do 26 de Julho, quando da vitória, em inícios de 1959, talvez à exceção de Che Guevara e, de certo modo, de Raul Castro.

Corre chiste em Cuba que, após a vitória, Fidel Castro distribuiu cientificamente os ministérios. Sobre uma mesa, em uma sala de reuniões, perguntou, aos gritos, as especializações dos guerrilheiros dirigentes, que em resposta iam levantando a mão. A um engenheiro, coube o ministério de Obras Públicas; a um professor, o da Educação. Ao perguntar gritando quem era economista, apenas o Che teria levantado a mão, no fundo da sala, onde conversava animadamente com alguns companheiros. Ao perguntar outra vez e a receber a mesma resposta, o argentino recebeu a direção da economia. Perplexo, após a reunião, Fidel tomou o novo ministro pelo braço e lascou: – Che, não quis retrucar! Mas tu és médico, não economista! Ao que o jovem comandante guerrilheiro respondeu, surpreso: – Mas Fidel, aqui atrás entendemos que perguntavas quem era comunista! Por isso, só ele teria levantando o braço! Registre-se que a formação marxista de Che, assim como a de Raul Castro, não superava a leitura de alguns textos e uma profunda simpatia para com a área socialista soviética. Na Serra, como comandante, o Che apontara a necessidade de uma revolução social mais avançada e antiimperialista. [CASTAÑEDA, 2006, p. 113, 120, 147.]

De 1959 a 1961

Há diversas explicações para a solução do aparente paradoxo posto pelo programa democrático-burguês do Movimento 26 de Julho e da direção vitoriosa, em 1º de janeiro de 1959, e a rápida evolução ao socialismo, consubstanciada já na segunda metade de 1960 e anunciada em abril do ano seguinte. Em A história me absolverá, Fidel denunciara, em forma dura, sentida e sem restrições, as desapiedadas condições de exploração e de miséria em que se encontravam enormes parcelas da população cubana, quanto ao trabalho; à saúde; à moradia; à educação; à Justiça. Já então, os jovens revolucionários juravam pôr fim àquela realidade. Diante do tribunal de exceção, Castro justificou as pretensões de vitória quando do assalto ao Moncada, precisamente pela certeza de poderem “contar com o povo”. “Entendemos por povo, quando falamos de luta, a grande massa não redimida, a qual todos oferecem e a qual todos enganam e traem, que anela uma pátria melhor e mais digna e mais justa; que está movida por ânsias ancestrais de justiça por ter padecido a injustiça e a burla, geração após geração, que deseja grandes e sábias transformações em todos os níveis e está disposta a dar, para lográ-las […] a última gota de sangue.” [CASTRO, 1961.]

Desde a fuga de Batista, cresceu a contradição entre os objetivos democráticos e sociais propostos e abraçados, vigorosamente pelos trabalhadores cubanos insurrecionados, e as medidas tímidas avançadas inicialmente para realizá-los pela direção do Movimento 26 de Julho. Desde logo, o programa democrático-desenvolvimentista burguês mostrou-se inconsequente, com os objetivos defendidos. Abria-se, assim, diante da nova direção, conformada sobretudo por jovens pequeno-burgueses radicalizados, a eventualidade da expropriação da burguesia cubana e do imperialismo.

Uma possibilidade que se transformou logo em necessidade com a imediata e crescente sabotagem geral da economia cubana pelo imperialismo – interrupção de compra de açúcar pelo governo estadunidense; negativas da Esso, Shell e Texaco de refinar o petróleo chegado da URSS. O ataque geral econômico e diplomático imperialista à revolução cubana precedeu e preparou a invasão da baía dos Porcos, por mercenários do imperialismo, em 17 de abril de 1961. A expropriação da grande burguesia e do imperialismo mostrava-se imprescindível ao cumprimento mínimo das próprias reformas democráticas propostas. Que foram materializadas, nas décadas seguintes, na medida das possibilidades materiais -moradia, educação, alimentação, saúde, trabalho, etc. A orientação da direção e do país em direção ao socialismo realizou-se sob a enorme pressão da necessidade econômica e, sobretudo, das forças trabalhadoras e populares. Uma radicalização que motivou fratura entre a direção estendida do 26 de Julho e, sobretudo, do bloco anti-ditatorial de dirigentes da própria luta armada – Diretório Revolucionário, Segundo Front de Escambray, etc. Inconformados, indignados e surpresos com a radicalização operária, plebéia e socialista da revolução, ex-participantes da luta anti-ditatorial adeririam à contra-revolução.

A crise revolucionária, a dissolução do Estado burguês-ditatorial, a população sublevada, um exército guerrilheiro estabeleceram dualidade de poderes fortemente favorável às classes populares. Uma direção revolucionária, ainda não socialista, apoiou-se e interpretou literalmente as exigências e as necessidades dos trabalhadores das cidades e dos campos. Nesse processo, ela se decantou e assumiu posições jamais sonhadas, sequer em janeiro de 1959, quando da queda da ditadura. Uma direção que certamente teve uma consciência apenas parcial das razões de sua própria acelerada evolução político-social. Nesse sentido, não procede o mito contra-revolucionário de direita, de jovens barbudos, “lobos travestidos em cordeiros”, propondo a luta democrática contra a ditadura para, quando possível, implantar um socialismo desejado ou sonhado desde o primeiro momento, quando viviam encarapitados na serra Maestra.

Não procede também as propostas da esquerda nacional-desenvolvimentista e etapista de um movimento revolucionário e socialista, com dois programas e duas etapas, definidos conscientemente e cumpridos sucessivamente: a primeira etapa democrático-burguesa, para não assustar eventuais aliados burgueses, exigida pelo baixo nível de consciência das classes populares, seguida de uma etapa, agora socialista, quando do salto de consciência da população. [CASTRO, 1961, p. 49.] O próprio Fidel Castro, ao se voltar sobre o passado, abraçou esta interpretação, certamente com dificuldades em explicar sua evolução política, em 1959, de democrata radical, não socialista e mesmo anti-comunista, para dirigente da marcha posterior em direção ao socialismo. Posição inicial registrada em declaração pública, nos USA, em 17 de abril de 1959, “[…] nosso programa de luta contra Batista não era um programa socialista, nem podia realmente ser um programa socialista. Porque os objetivos imediatos de nossa luta não eram ainda, nem podiam ser, objetivos socialistas. Teriam superado o nível de consciência política da sociedade cubana naquela fase; teriam superado o nível das possibilidades do nosso povo naquela fase.” [BAMBIRRA, 1975; CASTAÑEDA, 2006.]

Destaque-se que, devido a suas políticas colaboracionistas, determinadas pelo stalinismo, o partido comunista cubano jamais propusera, igualmente, a conquista do poder e a instauração do socialismo. A própria direção soviética teria visto, em abril de 1961, com mal-estar, a definição socialista da Revolução Cubana. Mas do que ter feito a revolução socialista, a direção cubana foi feita socialista por ela, isso sem que o próprio processo não tenha sido fortemente determinado, naquele sentido, pelo núcleo revolucionário do 26 de Julho.

III. A Revolução Cubana mal digerida e o Foquismo

O balanço geral da Revolução Cubana sobre a vitória será dominado pelo núcleo dirigente fidel-guevarista, de extração social e política sobretudo pequeno-burguesa, de limitada ou nenhuma formação política marxista e sem vínculos orgânicos com a luta popular e dos trabalhadores, nos anos anteriores e sobretudo durante os cruciais momentos finais da revolução. O resultado foi uma racionalização dos sucessos passados, quase exclusivamente desde a ótica da Serra. O que resultou em um arbitrário super-dimensionamento, certamente em grande parte inconsciente, da importância da ação guerrilheira. A luta armada na Serra e o avanço em direção à capital foram compreendidos como o alfa e o ômega do processo revolucionário como um todo. Uma leitura que não enfatizou o deslocamento tardio, meses antes da débâcle da ditadura, da dominância da cidade para a serra e a literal dissolução do Estado ditatorial pela insurgência das classes trabalhadoras e populares. Situação de revolta que foi condição sine qua non para o avanço e a vitória das colunas guerrilheiras. O foquismo surgiu dessa leitura truncada – bastaria um pequeno grupo subir para uma serra, que a descida vitoriosa em direção ao poder estava garantida! 

Após a fragorosa derrota da invasão imperialista da baía dos Porcos, de mais de 1.500 mercenários cubanos, em abril de 1961, e a radicalização da revolução em direção de posições socialistas, o imperialismo estadunidense, capitaneado por J.F. Kennedy [1917-63], promoveu a expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos [OEA], em janeiro de 1962, na conferência de Punta del Este [Uruguai], e uma ampla campanha de sabotagens e ataques terroristas a Cuba. A direção cubana respondeu à tentativa de isolamento do novo regime com a defesa da necessidade da expansão da revolução socialista latino-americana. O que era positivo. Disseminação revolucionária que promoveu e apoio, mesmo em oposição à orientação de “convivência pacífica da URSS”, sua nova e poderosa aliada. Mais tarde, em 10 de agosto de 1967, no encerramento da I Conferencia da Organização Latinoamericana de Solidariedade, OLAS, que lançaria oficialmente a estratégia guerrilheira vanguardista para o continente [foquismo], Fidel Castro reafirmou a dependência da revolução à ação de um pequeno núcleo revolucionário: “Qualquer um que fique esperando que as idéias triunfem primeiro nas massas, de maneira majoritária, para iniciar a ação revolucionária, não será jamais revolucionário. […] Se nós [núcleo guerrilheiro] tivéssemos tido essa concepção, jamais teríamos iniciado um processo revolucionário. Bastou que as idéias tivessem força em um número suficiente de homens para iniciar a ação revolucionária; e, através da ação, as massas [cubanas] foram adquirindo essas idéias, e […] consciência.” [CASTRO, Discurso, 1967.] Fidel propunha literalmente o fracassado desembarque e o refúgio do núcleo guerrilheiro dizimado por ele comandado como o ponto zero, inicial, da revolução cubana.

Visão que desconhecia e negava a dissolução da coerção da sociedade burguesa e ditatorial nascida da semi-insurreição que se espraiou pela ilha. Crise geral que, inicialmente, impediu a repressão maciça aos guerrilheiros e garantiu a substituição das suas perdas e, a seguir, propiciou a adesão maciça de combatentes às guerrilhas. Impulso social concluído com a literal insurreição popular, que desorganizou a repressão, impedindo choque geral entre as colunas guerrilheiras e as forças militares. Dinâmica ainda hoje pouco analisada pela historiografia da Revolução Cubana. A direção fidel-guevarista, em consolidação na direção do novo Estado, promovia, desde 1959, quando da vitória da Revolução, essa avaliação do processo revolucionário. Mesmo antes de 31 de junho de 1967, quando da reunião da OLAS, generalizava e universalizava, sobretudo para a América Latina, seu abusivo e unilateral balanço sobre as razões da vitória. Para tal, serviu-se dos recursos do Estado cubano e do prestígio e enormes esperanças despertadas pela Revolução, para difundir e apoiar, política e materialmente, a proliferação da tentativa de implantação de focos guerrilheiros urbanos, não importava quando, não importava onde, como estratégia de assalto ao poder. Iniciativas que fracassaram uma após a outra, como não podia deixar de ser. 

A melhor e mais conhecida apresentação do vanguardismo guerrilheiro foquista, apoiado nesse balanço distorcido da Revolução Cubana, foi produzida pelo intelectual francês Régis Debray, então com 26 anos, em Revolução na Revolução? Esse ensaio, espécie de manual da guerrilha rural, foi redigido a partir de “longas discussões” com Fidel Castro, que releu os originais e os oficializou com publicação cubana de duzentos mil exemplares, em janeiro de 1967, antes da assembleia da OLAS. O opúsculo registra o espírito do momento e a total ruptura da direção fidel-guevarismo com as propostas marxistas revolucionárias. Ele reduz as práticas, táticas e estratégicas da luta anti-capitalista a uma mera questão militar. O discurso de encerramento de Fidel Castro do I Congresso da OLAS reafirmou em forma sintética as estapafúrdias visões foquistas, com concessões formais a críticas em especial dos partidos comunistas latino-americanos presentes no encontro.

Luta Armada Exemplar e Incondicional

O foquismo tem como quase único e miserável axioma de base a proposta da desnecessidade e improcedência da organização dos trabalhadores das cidades e dos campos para o assalto do poder. Princípio essencial norteador da luta de classes que seria superado pela implantação de um pequeno núcleo de jovens armados em uma zona montanhosa “relativamente pouco povoada”. [DEBRAY, s.d, p. 138.] Para o foquismo, era totalmente obsoleto o princípio marxista revolucionário da organização dos trabalhadores desde seus níveis de consciência e reivindicações, na perspectiva de acumulação de forças para empreender a complexa destruição armada do Estado burguês e sua substituição pelo poder dos trabalhadores organizados. Negava também que, para o assalto ao poder, fosse imprescindível que a sociedade conhecesse “condições objetivas e subjetivas”. Isto é, que atravessasse um “período pré-revolucionário” desembocando em uma “situação revolucionária”, questão sobre a qual se debruçara V.I. Lenin. Realidades presentes em Cuba, quando da queda de Batista e assalto ao poder. [ANTÔNIO, 28/12/1974.] Para o foquismo, a luta armada constitui o começo da ação política revolucionária, e não o seu final. E todos os países americanos, com algumas exceções temporárias, estariam prontos para o lançamento de suas guerrilhas que iniciariam assim o assalto ao poder. Fidel lembrava, no citado discurso: “E nós [..] não duvidamos que exista alguns países nos quais esta tarefa não é uma tarefa imediata, mas estamos convencidos de que é uma tarefa a longo prazo.” [CASTRO, Discurso, 1967.]

A proposta tradicional e ortodoxa comunista e revolucionária de mobilização dos trabalhadores urbanos e rurais a partir de seus níveis de consciência e de organização era apresentada pelo fidel-guevarismo como deformação trotskista da revolução: “[…] despertar, pois, a espontaneidade latente dos trabalhadores. Para obter esse fim, [dizem que] a guerrilha não é a forma mais elevada de luta revolucionária, [que] é necessário [antes] instalar na base o ‘duplo poder’ […] chamar à formação de comitês de usina e de comitês de camponeses, cuja proliferação permitirá, enfim, constituir a Confederação Única dos Trabalhadores […] [que] através da insurreição instantânea [contemporânea] e geral da montanha e da cidade, será o instrumento da tomada do poder. O trabalho de agitação deve, desde já [o início] aspirar a desencadear greves e manifestações operárias. Na campanha, a construir sindicatos camponeses; proceder a invasões de terras […].” [DEBRAY, s.d, p. 23.] Todo esse processo complexo seria substituído pelo abracadabra do foco guerrilheiro. No discurso conclusivo da OLAS, Fidel Castro defendeu a possibilidade da introjeção da consciência revolucionária nas classes trabalhadoras, desde afora, pelo ato militar exemplar de pequeno destacamento de revolucionários: “Quem pare à espera que as idéias triunfem primeiro nas massas, de maneira majoritária, para iniciar a ação revolucionária [armada], não será jamais revolucionário.” [CASTRO, Discurso, 1967.]

Para além dos devaneios revolucionários, já estava claro, no momento em que se propunha e defendia o foquismo, que a “concepção do desenvolvimento da luta armada [por um pequeno núcleo de militantes] como ponto de partida de um processo revolucionário” constituía uma “ruptura estrutural com o marxismo revolucionário”. Visão proletária da revolução que compreendia e compreende a luta frontal e armada “como o resultado de um processo político de maturação, na consciência e na organização” das classes trabalhadoras, que se efetua “quando o desenvolvimento da dualidade de poder já objetivamente dividiu a sociedade em dois poderes autônomos e contraditórios”. Visão marxista revolucionária tradicional e ortodoxa que jamais viu o processo insurrecional como uma “concepção militar de guerra”, como “uma tática militar escolhida entre tantas outras para fazer frente a um inimigo poderoso”. A insurreição armada constitui o desdobramento de um processo de amadurecimento político da “classe trabalhadora” que determina a “situação revolucionária”. [ANTÔNIO, 28/12/1974.] 

Na estratégia marxista revolucionária, o processo duro, longo, contraditório de maturação da organização e da consciência dos trabalhadores é responsável pela própria auto-construção dos oprimidos como demiúrgos do novo mundo. Lembravam os fundadores do marxismo que a “libertação dos trabalhadores deve ser [necessariamente] obra dos próprios trabalhadores”. Desdobramentos centrais da luta revolucionária e da construção da nova ordem substituídos pela implantação, em um canto perdido de uma serrania, de pequeno núcleo de jovens, formado inicialmente sobretudo por “estudantes e intelectuais revolucionários”. [DEBRAY, s.d, p. 9.] Jovens que sequer necessitavam de formação política acabada. Segundo o foquismo, a própria luta armada contra as forças da repressão e do imperialismo responsabilizaria-se pela formação dos quadros, produto da capacidade social e ideológica didática e terapêutica da dura vida dos guerrilheiros nas selvas. A consciência política era, assim, deduzida da fortaleza moral individual no confronto militar. Ela não era construída através da absorção-expressão do programa, da prática e das visões de mundo dos trabalhadores na luta de classes.

“Uma perfeita educação marxista-leninista não é, inicialmente, uma condição imperativa.” [DEBRAY, s.d., p. 81.] As preocupações programáticas com o socialismo eram apontadas como próprias aos “trotskistas”, definidos como provocadores, que davam “uma grande importância ao caráter socialista da Revolução, ao seu programa futuro […]”. [DEBRAY, s.d., p. 24.] Apesar do duro ataque da direção cubana ao trotskismo, o foquismo influenciou e desorganizou também importantes setores desse movimento ou próximo a eles, como veremos.

Nessa visão romântica, ecológica e campestre da revolução, a dura vida do jovem guerrilheiro na floresta era o âmago do processo revolucionário. Fidel propunha que a “cidade” era “um cemitério de revolucionários”. Régis Debray completava lembrando que a “montanha” proletarizava “o burguês e o camponês”, enquanto a “cidade” podia “aburguesar até os proletários”, devido às facilidades e aos confortos permitidos pela vida urbana – lojas comerciais, água encanada, luz elétrica, banhos quentes e “prolongados”! [DEBRAY, s.d, p. 24 et seq.] De certo modo sugeria que, quanto mais sujo, mais revolucionário seria um guerrilheiro. Afirmava que, quando “uma guerrilha” falava com “seus representantes urbanos ou no exterior”, tratava com a “sua burguesia”. [DEBRAY, s.d, p. 54.]

Uma Questão Militar

O foquismo propunha a gênese direta do processo revolucionário e socialista a partir de pequeno núcleo de jovens protagonistas excelentes, “estranhos” e sem relações orgânicas com a população rural local. Alienação da vida dos camponeses para que a guerrilha não arcasse com o peso das “famílias dos combatentes”, com eventuais “evacuação da população” rural, “guarda do gado e das propriedades agrícolas, etc.” Defesa do mundo camponês que dificultaria a mobilidade e a efetividade militar do destacamento guerrilheiro. [DEBRAY, s.d, p. 30.] “A guerrilha é independente, na sua ação e organização militar, da população civil, e ela não tem, consequentemente, que assumir a defesa direta da população camponesa.” [DEBRAY1967. p. 27.] O paradoxo dessa proposta, a não responsabilidade do guerrilheiro pela defesa da população camponesa, com a afirmação mesmo formal de que a classe camponesa seria a vanguarda da revolução, levou possivelmente que essa passagem do texto francês tenha sido subtraída, em sua tradução ao português.

A guerrilha sequer expressava o mundo camponês. Era formada, literalmente, por ET aterrados em uma zona florestal, despreocupados com a população nativa, desconhecendo a urbana. Tamanha seria a dominância das tarefas militares que nem mesmo a agitação política era recomendável. [DEBRAY, s.d, p. 24.] A grande forma de propaganda seria o combate armado. A “destruição de um caminhão de transporte de tropas ou a execução pública de um policial torturador” fariam “mais propaganda efetiva” entre os camponeses do que “duzentos discursos”. [DEBRAY, s.d, p. 58, 54.] Concepção que supunha possuir o campesinato latino-americano como um todo ampla consciência política, ao considerá-lo capaz de ver nos guerrilheiros agentes de um movimento social emancipador e não estranhos ao mundo rural ou mesmo bandoleiros.

Para a visão foquista da revolução latino-americana, não importando qual fosse o nível de organização e de disposição de luta das classes trabalhadoras e populares, o pequeno grupo de demiurgos revolucionários injetaria, desde afora, a disposição revolucionária necessária para a adesão do campesinato à luta armada. E isso evoluindo nas matas necessariamente dissociados da vida objetiva da população rural na região de atuação da guerrilha, para não dificultar seus deslocamentos incessantes. Realizada essa ligação inicial, guerrilha-camponeses, através do exemplo do ato militar, o que era dado por inevitável, a coluna avançaria rapidamente, agregada por adesões maciças, em direção às cidades, ao igual do que se acreditava ter ocorrido em Cuba, no segundo semestre de 1958.

Do ponto de vista estratégico, como proposto, o foquismo apresentou-se como proposta da desnecessidade da consciência, organização e ativismo das classes trabalhadoras para desbocar em uma crise revolucionária. Era dispensável o esforço de construção da complexa maturação subjetiva-objetiva dos oprimidos para que, ao se apresentar um período e situação revolucionária, encetassem a disputa armada pelo poder. A instalação em qualquer condição da coesão social de um pequeno grupo de jovens militantes armados ensejaria a tomada de consciência pelas massas, sobretudo rurais, na necessidade de assalto ao poder. Predisposição à revolução nascida, segundo o foquismo, da situação de miséria objetiva que conheciam. Reafirmação da visão ingênua de que, quanto mais miserável era a situação de uma população, maior seria seu nível de consciência, no mínimo latente [“miserabilismo revolucionário”].

Deduzia-se da decadência ideológica e política tendencial do militante revolucionário em meio urbano, apenas referida, que a direção política do movimento devesse se encontrar nas mãos da guerrilha rural, mesmo quando a organização revolucionária nas cidades superasse fluvialmente o pequeno núcleo guerrilheiro, como ocorrera em Cuba, antes e mesmo imediatamente após o fracasso da greve geral de abril de 1958.“[…] é preciso que a guerrilha seja reconhecida como a ala diretora e motriz do movimento.” [DEBRAY, s.d, p.77, 58.] Posição sancionada por Fidel Castro na conclusão do encontro da OLAS: “A guerrilha está chamada a ser o núcleo fundamental do movimento revolucionário.” É absurda a “concepção de que desde a cidade se pode dirigir o movimento guerrilheiro”, propôs. [CASTRO, Discurso, 1967.]

Chega de Discussão!

Considerando-se as difíceis condições de contato entre os militantes da cidade e a direção da guerrilha no campo, sempre serpenteando as serranias desertas para fugir às tropas repressivas, eleito o chefe guerrilheiro, dirigente geral do movimento, procederia-se à “suspensão temporária da democracia interna no Partido” e à “abolição temporária das regras do centralismo democrático”. [DEBRAY, s.d, p. 82.] Não se elegia um secretário-geral, mas uma espécie de soberano, eventualmente temporário. A guerrilha rural exigiria também o fim dos pesados aparatos partidários urbanos, da “tradição das comissões, secretariados, congressos, conferências, plenários ampliados, reuniões e assembléias em todos os escalões nacional, provincial, regional ou local”. [DEBRAY, s.d, p. 82.] Havia que liquidar o “vício deliberante”, denunciado por Fidel, oposto “aos métodos executivos, centralizados e verticais, combinados com uma grande independência tática dos organismos subalternos” exigidos pela “condução de operações militares” nas selvas. [DEBRAY, s.d, p. 82.]

Tratava-se de uma revolução lançada por um núcleo de jovens guerrilheiros predestinados, de formação política frouxa, nos altos das serranias, sem maior participação dos trabalhadores urbanos e rurais, expectadores dessas lutas de jovens e apenas jovens prometeus. A guerrilha podia ser integrada apenas por militantes de trinta e menos anos, devido à fortaleza física exigida pela vida luta nas montanhas! O foquismo constituía um retorno rural e ecológico ao blanquismo urbanodo século 19, em antagonismo com a visão da revolução como nascida, desenvolvida e concluída sob a direção do mundo do trabalho.

Concorriam para a enorme aceitação das teses foquistas duas determinações centrais. Primeira, o rompimento da direção fidel-guevarista, ainda que destrambelhado, com as propostas colaboracionistas e de frente único com as burguesias nacionais progressistas. Teses defendidas pelos partidos comunistas, que haviam levado a derrotas históricas, como a do Brasil, de 1964. Lembrava Fidel, em 1967: “Porque há teses que têm quarenta anos de idade; a famosa tese sobre o papel […] das burguesias nacionais. Quanto trabalho custou convencer-se de que esse é um esquema absurdo para as condições desse continente; quanto papel, quanta frase, quanta falação. Na espera de uma burguesia liberal, progressista, antiimperialista.” [CASTRO, Discurso, 1967.] Segundo, o fato que essa estratégia revolucionária incorreta e anti-operária, nascida de absolutização dos sucessos mal compreendidos da serra Maestra, apoiava-se na consciência da necessidade da expansão da revolução para a América Latina.

A subalternidade das classes trabalhadoras urbanas de Cuba, na estratégia inicial do Movimento 26 de Julho, nascia do seu programa e caráter democrático-burguês e nacional-desenvolvimentista, que se opunha à luta de classes e jamais defendeu programa socialismo. O que não impediu que as classes trabalhadoras e assalariadas cubanas tivessem se lançado à luta. Essa minoração político-ideológica inicial do mundo do trabalho, pelo 26 de Julho, reemergiu na proposta foquista. E isso, no contexto da radicalização da revolução que iniciava a nacionalização dos grandes meios de produção e a planificação da economia.

IV. O Grande Desastre do Foquismo na América Latina

Com ênfase em meados de 1960, a proposta foquista impregnou e determinou profundamente, sobretudo – mas não apenas –, a vanguarda de esquerda latino-americana, com enorme destaque para a juventude estudantil universitária. Por em torno de uma década, sucederam-se tentativas, em geral de funestos resultados, de implantação de focos guerrilheiros, em regiões singularmente isoladas e desabitadas do continente, para dificultar a chegada das forças repressoras, como recomendava o receituário. Algumas dessas guerrilhas foram o Ejército de Libertación Nacional – ELN – [Colômbia]; Fuerzas Armadas de Libertación Nacional – FALN [Venezuela]; Ejército Guerrillero del Pueblo [Salta, Argentina]; Ejército de Libertación Nacional [Bolívia]; Fuerzas Armadas Revolucionárias – FAR [Guatemala]; Ejército de Libertación Nacional – ELN [Peru], Fuerzas Armadas Revolucionarias – FAR [Argentina], etc.

No Brasil, em 1966, uma vintena de guerrilheiros, entre eles sub-oficiais das forças armadas, ligados ao líder nacionalista e populista Leonel Brizola, tentou implantar-se na serra do Caparaó, na divisa entre os estados de Espírito Santo e Minas Gerais. A iniciativa do Movimento Nacionalista Revolucionário contou com o apoio de Cuba. O caráter agreste da região e a desconfiança da rala população rural levaram à extinção do foco, em abril de 1967, praticamente sem enfrentamento com as forças repressivas. [COSTA, 2007.] Em 1970, mais de setenta por cento dos noventa milhões de brasileiros viviam nas cidades.

Despreocupadas com a conjuntura econômica, política e social e com a organização, consciência e força dos oprimidos, etc., essas visões levaram à estranha aventura guevarista no Congo, em abril-novembro de 1965, e, a seguir, ao desastre final boliviano, com a morte de Che, em 8 de outubro de 1967. [GUEVARA, 2000.] Esta última derrota sequer ensejou reflexão sobre o enorme isolamento social em que o foco boliviano soçobrou. A derrota foi explicada como nascida das dificuldades nascidas quando da sempre difícil implantação do núcleo guerrilheiro. [DEBRAY, 1975.] Sob a consigna Volveremos a la montaña, na senda de Che Guevara, seguiu, não raro literalmente para a morte, toda uma geração de jovens revolucionários, na Bolívia, no Brasil, no Peru, na Argentina, etc.

No contexto do acirramento mundial da luta de classes, a proposta foquista galvanizou igualmente segmentos da juventude européia e extra-europeia radicalizada, que abraçaram a receita guerrilheira, adaptada ao meio urbano, como já ocorria na América Latina. No Velho Mundo, no Japão e em outras regiões do mundo surgiram grupos armados como, para citar os mais conhecidos, a Fração do Exército Vermelho, de 1970, na Alemanha; a Fração do Exército Vermelho e o Exército Vermelho Japonês, de 1969, no Japão; as Brigadas Vermelhas, Prima Linea, etc. na Itália; Action Directe, na França, de 1979; nos Estados Unidos, a Frente Unida da Liberdade [United Freedom Front], UFF; a “Weather Underground Organization” (WUO), [Organização Clandestina do Tempo]; o Exército Negro de Libertação [BLA]; a Brigada George Jackson, o Exército Simbionês de Libertação.

Na América Latina, ali onde a proposta do foco rural era gritantemente esdrúxula, dado a realidade fortemente urbanizada de países como a Argentina, o Brasil, etc., e a inexistência de montanhas, como no Uruguai, adaptou-se aquela política para as cidades, através do foquismo urbano, sobretudo na versão da “propaganda armada” e “ações exemplares”. Elas propunham-se a despertar, nas classes trabalhadoras e populares, sempre de fora para dentro, a disposição pela luta direta pelo poder – Brasil: Ação Libertadora Nacional – ALN; Comando Nacional Revolucionário; Vanguarda Popular Revolucionária – VPR; Vanguarda Revolucionária Palmares – VAR-Palmares; Movimento Revolucionário 8 de Outubro [MR-8], etc.; Uruguai: Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros [MLN – T]; Argentina, Montoneros, Exercito Revolucionário do Povo, etc. Como assinalado, muitas dessas organizações nasceram da pressão de crise revolucionária sobre as classes médias; do fracasso da via nacional-colaboracionista; do prestígio do fidel-guevarismo junto ao movimento comunista latino-americano, que comumente fracionou-se e cedeu militantes em favor das organizações militaristas, como no caso excelente da Ação Libertadora Nacional, de Carlos Marighella. 

O prestígio das visões fidel-guevaristas provocou igualmente enormes estragos nas próprias organizações trotskistas e marxistas não stalinistas: no Brasil, a OMR-Polop [luxemburguista e cripto-trotskista]; o POC-Combate [neo-trotskista]; ou organização claramente trotskista como o argentino Partido Revolucionário de los Trabajadores [PRT], nascido da fusão, em 1963-5, do Partido Obrero [PO], dirigido por Nahuel Moreno, com grupo americanista do norte da Argentina, o Frente Revolucionário Indoamericano Popular [FRIP]. O fracionamento do PRT, em fevereiro de 1968, em Buenos Aires, quando do seu IV Congresso, deu nascimento a organização militarista, de inspiração fidel-guevarista, o chamado PRT-Santcucho que, no seu V Congresso, após novo fracionamento, deu origem ao PRT-Ejército Revolucionário del Pueblo e se lançou à luta armada incondicional, até a sua literal destruição, em fins de 1976, após a morte de centenas de militantes. Nesse momento, o movimento de massas na Argentina se encontrava em pleno retrocesso. [SANTUCHO,2005. pp. 38 et seq.]

Destaque-se a enorme responsabilidade da direção do Secretariado Unificado da IV Internacional, sobretudo de seus principais dirigentes de então, Ernest Mandel [1923-1995] e Lívio Maitan [1923-2004] e a equipe francesa, pressionados por juventude universitária europeia radicalizada. A direção e militância do S.U da IV Internacional, galvanizadas pela experiência cubana e pela romântica proposta de atalho rápido para a conquista do poder, através de destemida adesão incondicional à luta armada, renderam-se às propostas foquistas … desde que realizadas na América Latina.

Na edição revista de 1972 de La Quatrième Internationale: contribuition à l’histoire du mouvement trotskiste, Pierre Frank, tradicional dirigente mundial do S.U, assinala exultante, entre os avanços das seções daquela organização no mundo, após o IX Congresso mundial, de 1969, que referendava as ações militaristas, a seção argentina: “Na Argentina, o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (P.R.T.), dirigente político do Exército Revolucionário Popular (E.R.P.), começou uma luta armada na qual algumas de suas operações valeram-lhe um prestígio em toda a América Latina.” [FRANK, 1973. p. 131. ]

Jamais o S.U. da IV Internacional e seus responsáveis realizaram auto-crítica efetiva e assumiram a responsabilidade pelo desastre político e humano determinado pela adesão ao vanguardismo armado pequeno-burguês, totalmente estranho ao marxismo revolucionário. O PRT-ERP constituiu a seção argentina da IV Internacional [SU] até fins de 1972, quando, sua direção [Roberto Santucho] comandou o abandono do programa socialista por amplo frente anti-imperialista de libertação nacional. Uma pequena dissidência formou a Fração Roja do PRT-ERP, apoiada e inspirada pelo SU da IV Internacional. A nova secção daquela IV Internacional prosseguiu na luta armada vanguardista incondicional, até o rápido e total massacre da organização pelas forças repressivas.[SANTUCHO, 205, pp. 142 et seq.]

Um Fim sem Balanço

Em meados da década de 1970, as teorias foquistas encontravam-se praticamente desmoralizadas pelos incessantes e trágicos fracassos, motivando a pronta retirada da promoção e apoio antes concedidos pela direção cubana, sem um efetivo balanço e autocrítica real dos resultados a que levara sua proposta fantasiosa sobre a luta de classes. O abandono da política, de quebra do isolamento de Cuba através da expansão da revolução, foi substituída pela procura de estabelecimento de relações diplomáticas com todos os países do continente, à exceção dos USA, que seguiu em sua campanha contra a revolução cubana. Realinhada com a política de “coexistência pacífica” da direção da URSS, a direção fidelista recomendou expressamente que o movimento sandinista não avançasse em direção ao socialismo – “não imitasse Cuba” – e intermediou mais tarde a suspensão da revolução salvadorenha. Como resultado dramático da rendição da revolução salvadorenha, às portas da vitória, o pequeno país vive, hoje, mergulhado em uma espécie de ditadura constitucional semi-fascista, promovida pelo presidente Nayib Bukele, já em sua segunda administração.

Nesse contexto, e com o envelhecimento e morte dos líderes guerrilheiros, compreende-se por que, até hoje, a direção cubana não tenha realizado avaliação efetiva sobre a dramática política que propusera e sustentara. No seio da esquerda marxista e classista brasileira, jamais se procedeu igualmente a uma crítica ampla e sistemática sobre o imenso sucesso das visões militaristas da revolução no país e na América Latina, e de suas raízes e decorrências político-ideológicas profundas. Todavia, quando da adesão da maioria do S.U., comandada por Ernest Mandell, Livio Maitan e a direção da secção francesa, ao vanguardismo militarista na América Latina, a formação de grupo oposicionista a essa orientação, constituído pelo SWP, estadunidense, pelo PRT argentino e pela OCI lambertista, divulgou crítica ampla metodológica do militarismo guerrilheiro, com pouca repercussão no Brasil. O refluxo internacional da revolução em fins dos anos 1980, assinalado pela destruição da URSS, contribuiu fortemente para esse semi-silêncio crítico sobre a aventura foquista. [MAESTRI, 2023.]

Em caráter exploratório, sugiro algumas razões que influenciaram o surgimento do foquismo. Cuba jamais foi país com classe operária urbana forte e moderna dominante, não superando, por razões objetivas, tal handicap sequer após a Revolução. A classe trabalhadora teve acesso à direção do Estado cubano apenas em forma indireta e parcial, jamais assumindo caráter diretor do país. Como vimos, a direção fidel-guevarista, de origens pequeno-burguesa e não socialista, acompanhou e impulsionou a radicalização socialista da Revolução e compreendeu a necessidade de sua expansão. Ainda assim, realizou um balanço da vitória da revolução desde a ótica da Serra, universalizando arbitrariamente essa incorreta avaliação, que serviu igualmente para consolidar sua hegemonia interna e perpetuação na direção do país,

Em boa parte da América Latina, o semi-monopólio do populismo e do stalinismo determinaram a fragilidade da inserção da esquerda marxista no movimento operário, não raro de constituição recente e fortes raízes camponesas. No Brasil, apenas o PCB e um pouco o PC do B, que negavam a luta pelo socialismo, possuíam alguma inserção em uma classe operária dominada pelo nacionalismo burguês e pequeno-burguês getulista, janguista, brizolista, etc. Na Argentina, onde a esquerda também sofreu forte influência fidel-guevarista, o movimento operário manteve-se sob a hegemonia do peronista, como proposto. O Chile percorreu um caminho diverso. Sob a hegemonia de uma classe trabalhadora organizada em torno dos PC e PS e de uma poderosa Central Única de Trabalhadores, os grupos guerrilheiros tiveram papel marginal. Eles reduziram-se substancialmente ao MIR que, nascendo, em 1965, terminou logo sob a “influência da Revolução Cubana”, defendendo a “guerrilha rural, as ações diretas”, em “pleno desenvolvimento da ascensão” “do movimento operário ”. Com essa orientação, “se orientou para os setores marginais [da população], procurando encontrar nos elementos mais explorados, mais miseráveis, os setores mais radicalizados”. [ANTONIO, SUSANA, 1.12.1974.]

 Mesmo antes da vitória da Unidade Popular, em 1969, o MIR não se lançou às expropriações e ações armadas, o mesmo ocorrendo com outros grupos pequenos, como o MR2. A única exceção foi o grupúsculo Vanguarda Organizada del Pueblo [VOP]. Durante a Unidade Popular, empurrado pela luta de classes, o MIR voltou-se para a conquista da direção dos trabalhadores urbanos e rurais mais avançados, na qual fracassou rotundamente. A forte, consciente e organizada classe trabalhadora chilena radicalizou e superou o projeto nacional-reformista da Unidade Popular, através da conquista substancial do setor produtivo e de grande parte do setor rural do país. Mas não conseguiu construir-se a direção política que necessitava para lançar-se à conquista do poder. Registre-se o fracasso do MIR, com forte responsabilidade de sua direção fidel-guevarista, que se auto-perpetuou monocraticamente na direção da organização. Ela jamais abandonara o projeto não explícito de se tornar o braço armado da UP, em um confronto direto com a burguesia, ou a espinha de um exército popular, que acreditava que se constituiria no caso de uma vitória golpista.

Salvador Allende e a direção da Unidade Popular traíram a revolução. Literalmente entregaram os trabalhadores à reação, com destaque para a repressão do movimento anti-golpista dos sub-oficiais e marinheiros da Armada, semanas antes do golpe; para o acordo com a Democracia Cristã para o plebiscito sobre a permanência de Allende no poder e, finalmente, ao não preparar e se negar a comandar resistência armada popular, para não superar as instituições burguesas. Nos dias 11 de setembro de 1973 e seguinte, os trabalhadores, as classes populares e a população foi abandonada totalmente sem direção.

Em 11 de setembro de 1973, o MIR abandonou igualmente o combate, preferindo não se juntar à resistência desorganizada dos trabalhadores e da população, para empreender sua proposta protagonista de luta guerrilheira “dura e prolongada”. Em meados dos anos 1970, quando o fidel-guevarismo amargava já seu fracasso, a direção do MIR, sem discussão na organização, tentou lançar guerrilha urbana e rural, no contexto do refluxo geral do movimento social após a vitória da contra-revolução. Levou, como era previsível e inevitável, ao massacre dos miristas, sem ter jamais passado a uma ofensiva, mesmo tática.

Socialmente, a luta guerrilheira foi em geral hegemonizada por segmentos radicalizados da classe média, que viviam situação geral de empobrecimento e perda relativa de poder. Apesar de reivindicarem-se como vanguarda da revolução proletária, disputavam nos fatos a direção do processo revolucionário aos trabalhadores. O caráter protagonista do guerrilheiro, herói e demiurgo individual do movimento social, foi sempre estranho à militância sindical e operária revolucionária, caracterizada pela associação, colaboração e anonimato de ativistas saídos da grande produção moderna. Nas décadas de 1960 e 1970, as grandes e fortes mobilizações operárias latino-americanas realizaram-se sem programa e sem direção revolucionária coerente, como foram os casos das importantes greves de 1968, em Contagem e Osasco, no Brasil; o Cordobazo, de 1969, na Argentina; a grande greve general uruguaia, de 1974, etc. [MAESTRI, 2024, I.]

Naqueles anos, como vimos, uma enorme parte da vanguarda não apenas abandonava a classe trabalhadora literalmente ao léu, como propunha substituí-la, como vanguarda revolucionária armada. Não apenas onde vigiam regimes militares, sonhava com o assalto armado e imediato ao poder, negando o caráter imperioso da difícil luta pela organização política e orgânica das classes trabalhadoras e de sua direção-aliança com os demais segmentos sociais populares.

O foquismo rural e urbano não foi a causa nem o responsável pela implantação de ditaduras na América Latina. Porém, facilitou-os, ao serviu de justificativa para a repressão daqueles regimes que se esforçaram em liquidar fisicamente boa parte da vanguarda revolucionária e reprimir sistemática o movimento social como um todo. Sobretudo, como assinalado, desorientou o esforço e a ação de amplos setores da já restrita vanguarda política latino-americana. Realizou igualmente atrofiamento da já frágil tradição marxista revolucionária latino-americana. Com a vitória da contra-revolução mundial em fim dos anos 1980, assinalada pela destruição da URSS, em 1989-91, sobreveio e impôs-se a enorme vaga conservadora que se mantém até hoje. O ingresso do mundo em uma era contra-revolucionária ensejou a dissolução e retrocesso de organizações de esquerda e de classe e a anatematização do próprio princípio de revolução.

Nesse contexto, as propostas vanguardistas de luta armada incondicional, que vicejaram, por anos, fortemente, na esquerda sobretudo latino-americana, raramente foram objetos, como proposto, de balanços nacionais e gerais sistemáticos desde a ótica do mundo do trabalho. Foram extremamente raros trabalhos elucidativos e críticos de dirigentes e militantes daqueles sucessos, como o empreendido por Jacob Gorender, em Combate nas trevas: A Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas à luta armada, publicado em 1987, dois anos após o fim da ditadura. [ GORENDER, 1999.]

Mais comumente, aqueles anos e sucessos foram e são tratados em uma produção bibliográfica de valor desigual, fortemente demarcada pelo peso de uma derrota incompreendida em suas razões e sentidos, sob o peso da consolidação da atual era conservadora. Não poucos ensaios autobiográficos de sentido penitencial registram, em forma dolorosa, um quase total estranhamento político-ideológico dos autores, militantes armados no passado, com a tradição, as propostas e os objetivos da revolução social e do mundo do trabalho que propuseram ser a vanguarda.

 Não raro, os autores “se debruçavam” sobre as experiências vividas “para anatematizar ou desqualificar o próprio direito à luta das classes oprimidas – jamais houvera possibilidade de vitória, o projeto da esquerda era igualmente totalitário etc. – e serviram de passaporte para a melhor inserção possível na política institucional, no mundo acadêmico etc.” [MAESTRI, 2014.] eguem sendo produzidas incursões jornalísticas e biografias comerciais romantizadas e apologéticas de sucesso. Dispomos, igualmente, de reconstruções da luta armada contra a ditadura no Brasil, muitas delas grande valor, mas, comumente, restritas aos limites estritos de seu objeto de trabalho e de uma produção historiográfica que se pretende “neutra”.

Foi igualmente um importante escolho, na discussão das razões, sentidos e sequelas do vanguardismo armado dos anos 1960 e 1970, o desinteresse interessado de não poucos protagonistas daquelas jornadas. Reciclados à vida civil e, sobretudo, como políticos tradicionais de todos os sabores, procuram manter no olvido os convulsionados anos em que fizeram parte de uma enorme parcela da esquerda que se lançou afoita à luta armada incondicional pelo poder, propondo-se e acreditando romântica e quixotescamente estar abrindo o cominho para a revolução social e socialista.

(*) Comunicação à mesa-redonda do Colóquio Internacional de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte “Marxismo e Ciências Sociais”. 24-26 de novembro de 2008, Natal, Rio Grande do Norte. O texto, agora corrigido e ampliado, foi publicado na Revista História: Debates e Tendências, PPGH UPF, Passo Fundo, RS, v. 10, n. 1, jan./jun. 2010, p. 96-121.


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