Na ausência de uma contraposição programática, a burguesia define unilateralmente a agenda e o contexto que norteiam o debate eleitoral. Os parâmetros estabelecidos ditam as questões prioritárias e suas possíveis soluções. Assim, qualquer que seja o resultado do pleito – um pouco mais à esquerda ou à direita –, os interesses estratégicos do capital ficam preservados. Sem uma pauta de mudanças estruturais que questionem os pilares da ordem, as escolhas permanecem restritas à miséria do possível. Os partidos políticos que não se enquadram no consenso da ordem são sufocados pela pantomima eleitoral.
Em 2014, acompanhando os ares do mundo, o debate eleitoral girou em torno da suposta necessidade de um “ajuste fiscal” como único meio de evitar a crise econômica que se aproximava. O clima de crescente polarização política funcionava como um elemento disciplinador dos agentes políticos. É o que explica o estelionato eleitoral de Dilma Rousseff, que mergulhou a economia brasileira na estagnação mais longa de sua história e pavimentou o caminho para o deslocamento de parcela do eleitorado do PT para a extrema direita.
Em 2016 e 2018, sob a batuta da Lava Jato, a pauta da “austeridade fiscal” foi combinada com a operação “pega ladrão”. O verdadeiro objetivo da cruzada moralista, como se sabe, não era acabar com a corrupção, mas desmoralizar a esquerda da ordem e, sobretudo, passar o comando do Estado para a direita da ordem – fato que já era evidente então e, hoje, está amplamente comprovado. É o que levou ao golpe parlamentar-judicial que abriu caminho para a República dos Delinquentes, liderada por Temer, e, em seguida, para a eleição fraudulenta de Bolsonaro e a ascensão da República dos Milicianos. A consolidação do golpe de classe contra os trabalhadores, iniciado pelo ajuste fiscal de Joaquim Levy, destituiu definitivamente a Constituição de 1988 do pouco que ainda restava de seu conteúdo cidadão e democrático.
Na eleição de 2020, que transcorrerá em plena barbárie da crise do coronavírus, o objetivo estratégico da burguesia é garantir que, apesar da depressão econômica e da crise social aguda, a situação política seja estabilizada para que as reformas liberais possam avançar. A desgraça sanitária, o flagelo do desemprego, a escalada da fome, o desmantelamento das políticas públicas, o genocídio negro e indígena e o fogo que arde a floresta amazônica não são motivos para que se questione a solução liberal-autoritária imposta pelos donos do poder. O importante é garantir a “paz social” e consolidar a solução liberal-autoritária para os problemas nacionais.
O “novo normal” é a bandeira da hora. Em plena catástrofe humana, sem precedentes na história brasileira, a burguesia definiu que o principal problema do país é honrar os compromissos com os credores do Estado. Para evitar que a plutocracia tenha qualquer tipo de sobressalto no futuro, tudo deve ser feito para assegurar a sustentabilidade intertemporal da relação dívida pública/PIB – o parâmetro utilizado pelos banqueiros para calcular o risco de não pagamento da dívida. Quem aderir à agenda do capital será perdoado de seus pecados e reconhecido como agente político legítimo. Por isso, a oposição ultramoderada, quase invisível, a Bolsonaro.
Em nome da pacificação nacional, a performática fúria contra a corrupção foi definitivamente abandonada (sem que nenhum dos elementos estruturais da corrupção sistêmica tivesse sido sequer arranhado). Os interesses do capital estão acima de questões morais. A “Nova Política” de Bolsonaro rendeu-se ao fisiologismo descarado do “Centrão”. A reabilitação do PT como agente político legítimo, que não está moralmente nem acima nem abaixo de nenhum dos outros partidos, faz parte da operação “enterrar a Lava-Jato”, em pleno curso. Para equilibrar o jogo, até o PSDB acabou tendo de arcar com sua quota de desgaste, vendo suas principais lideranças finalmente denunciadas pelos mesmos crimes de que acusavam o PT. Vida que segue, todos novamente abraçados na mesma lama.
Sem enfrentar nenhuma das causas estruturais responsáveis pela falência do Estado, a burguesia pressiona para dobrar o ajuste fiscal. Em plena depressão, com um terço da força de trabalho marginalizada do emprego e os governos estaduais e municipais à beira da falência, a plutocracia insiste na “austeridade fiscal” como panaceia para os problemas nacionais. O objetivo é circunscrever a discussão nacional às diferentes formas de combinar privatizações (grandes negociatas às custas do patrimônio público), reforma administrativa (ataques aos direitos dos servidores e desmantelamento das políticas públicas) e reforma tributária (desoneração dos encargos sobre o capital e mais impostos diretos e indiretos sobre o trabalho). O ajuste fiscal é permanente e tem por objetivo real ganhar tempo, empurrando a falência do Estado com a barriga, às custas da pilhagem e da devastação do país.
O impacto catastrófico da estagnação econômica sobre as finanças públicas é olimpicamente ignorado. A sangria provocada pelas despesas financeiras do Estado nos cofres públicos, calculada em R$ 478 bilhões em 2019 (aproximadamente metade do gasto com todo o funcionalismo público brasileiro), é criminosamente ocultada do debate público. A escandalosa subtributação da renda e da riqueza do capital e de seus asseclas – um dos sistemas tributários mais regressivos do mundo – não é submetida ao crivo da opinião pública.
Sem trazer à baila as questões fundamentais que afetam a vida dos brasileiros, é impossível ir além de propostas de programas institucionais, inspirados no famigerado “modo petista de governar”, do tipo “Minha Casa, Minha Vida”, cuja insuficiência para levar a cabo questão da moradia é evidente. As causas estruturais das mazelas do povo não são discutidas: a questão urbana e a questão agrária; a subordinação das finanças públicas ao jugo da dívida púbica; a urgência da revogação da Lei de Responsabilidade Fiscal e do Teto de Gastos; a necessidade de uma completa inversão nos critérios que presidem as políticas públicas – a começar pela lógica perversa do Plano Real que submete a sociedade brasileira aos caprichos do capital internacional; a refundação do pacto federativo; a impugnação do novo código de águas que abre as comportas para a privatização do saneamento básico, para mencionar apenas algumas que dizem respeito diretamente à eleição municipal.
Na ausência de uma oposição programática, a solução liberal-autoritária permanece como único horizonte possível. A esquerda socialista precisa de um programa de transformação radical, anticapitalista, à altura de uma conjuntura histórica extraordinária, marcada pela escalada da barbárie capitalista. Sem colocar em pauta a urgência de mudanças radicais, os socialistas entram nas eleições impotentes e pavimentam a estrada para a consolidação do projeto reacionário que leva o Brasil ao século XIX.
Contrapoder, 17 de agosto de 2020.
Pelo primeiro parágrafo já deu pra ver que foi escrito pelo Plininho. Muito bom, hehehehe, claro, preciso, direto ao ponto, adoro o estilo do Pf. Plinio Sampaio Jr.
Olá Loan. Tudo bom? Os editoriais são escritos pelo Plinio, mas não só. Temos um corpo editorial que debate o tema e alterna a escrita. Nesse você acertou em cheio, as palavras vieram dele.
Forte abraço