Há um processo de quasi-uberização dos docentes, afirma Selma Venco.

Selma Borghi Venco é professora na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e pesquisadora associada do Centre de Recherches Sociologiques et Politiques de Paris (CRESPPA), vinculada ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional (GREPPE). Formou-se em ciências sociais pela Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), é mestre e doutora em Educação pela UNICAMP. Suas pesquisas versam sobre as relações e condições de trabalho dos professores e professoras, demonstrando como a precariedade é um fenômeno articulado e dirigido na tentativa de amoldamento da educação, do trabalho docente e da escola pública. Nesse sentido, há alguns anos a autora articula um interessante paralelo entre as condições de colocação no trabalho dos motoristas de aplicativos de transporte de passageiros e aquelas de contratação dos docentes nas redes públicas. Esse fenômeno é chamado de uberização em clara referência à empresa norte-americana Uber. 

A partir de um trabalho rigoroso que perpassa profunda análise documental, estudo dos dados censitários educacionais e entrevistas com professores da rede estadual paulista; a autora coloca em diálogo o quadro geral de precariedade das relações de trabalho em articulação com o trabalho instável, para revelar que a uberização do trabalho docente a despeito das possíveis inovações tecnológicas que possam se sobrepor para expropriar os professores do governo de si, carrega permanências e se inscreve dentro de uma situação histórica de acúmulos das diversas formas de precariedades que assolam a docência e, portanto, a educação.

Contrapoder: Professora Selma Venco, suas pesquisas sobre o trabalho docente no Brasil são reconhecidas pelo rigor e pelo zelo metodológico. Elas estão muito marcadas por uma preocupação persistente com as condições de trabalho e com as formas de contratação de professores. Nos últimos anos, a senhora traça um paralelo entre a situação dos professores na rede paulista e as formas de precarização que atingem outros segmentos de trabalhadores, o que vem sendo chamado uberização. A senhora poderia caracterizar esse paralelo e nos falar mais sobre o que constitui a precarização das relações de trabalho e de fazer educativo no trabalho dos professores?

Selma Venco: Em primeiro lugar, é importante destacar a matriz teórica a qual me filio. Faço a distinção entre relações e condições de trabalho e não as concebo em um só bojo, como outros autores e autoras o fazem. Para mim, as relações de trabalho dizem respeito às formas de contratos e o que nelas se estabelecem. Enquanto condições de trabalho concernem tanto aos aspectos ergonômicos como ventilação, luminosidade, mobiliário adequado, quanto às formas de gestão do trabalho que ocasionam, por exemplo, diferentes formas de adoecimento ao solicitar metas impossíveis de serem cumpridas, práticas de assédio entre outras. Dito isso, o que já sistematizei em dois artigos é que a organização do trabalho caminha pari passu às formas de contratação, aos direitos conquistados ou supressão deles. No fordismo, com grandes concentrações de operários, a mobilização conquistou, por exemplo, a delimitação da jornada de trabalho e o direito a férias; no toyotismo, com a lógica da fábrica enxuta, há importante redução de concentração de trabalhadores nos locais de trabalho, vários setores foram terceirizados e, com isso, parte significativa dos trabalhadores passaram a compor a onda de pejotização – a obrigatoriedade de se tornarem pessoa jurídica – ou trabalharem para as empresas terceirizadas, com nítidas perdas de direitos. Podemos citar bancários, metalúrgicos que, uma vez demitidos, abriram ou a trabalharam em pequenas empresas e, assim, perderam uma série de direitos conquistados pela categoria profissional, o trabalho foi intensificado e a jornada de trabalho desregulamentada, pois era e é comum o pagamento por produção. E, na onda “uber”, a individualização ganha força, regida pelo discurso da autonomia e da liberdade, o trabalhador pode fazer seu próprio horário e salário, mas não dizem que eles, literalmente, pagam para trabalhar, pois 25% do trabalho realizado vai diretamente para a conta da empresa; precisam arcar com os custos do veículo e todos os demais gastos a ele vinculados. São totalmente desprovidos de direitos, mas há resistência. No Canadá, os motoristas iniciaram troca de informação entre si, organizaram cursos de formação política e “haquearam” o sistema Uber, de forma a transferir as chamadas para sua própria plataforma, sem o pagamento do percentual. Em Londres, os motoristas uber conquistaram o direito a um salário mínimo mensal, agora no Brasil, a greve dos entregadores. Há limites para a exploração e felizmente a consciência e a organização se manifestam.

Agora, como essas alterações estabelecem relação com docentes? Vou tomar como referência o governo paulista, pois vários outros o acompanham na implementação de políticas educacionais. A Secretaria de Educação sempre fez uso de trabalho temporário, mas destaco que em 1999 mais de 7 em cada 10 professores eram temporários e, gradativamente, esse segmento conquistou alguns direitos. O exame da série histórica (2000-2019) indica a presença de um percentual médio anual a ser atingido: 51% dos docentes são não concursados ao longo desses anos. Mesmo que haja redução desses percentuais nos anos recentes, não se pode compreendê-la como sendo fruto de uma política de ampliação de concursos. Ao contrário, significa fechamento de turmas e escolas, maior quantidade de alunos por sala e redução do número de matrículas.

Eu considero que há um processo de quasi-uberização dos docentes. Isso porque: a) os motoristas da Uber não possuem formação específica para o trabalho, diferente dos de táxi que para obter licença precisam ter vários cursos, inclusive de primeiros-socorros. Os professores, por sua vez, também não precisam ter ensino superior concluído ou mesmo terem licenciatura. Além disso, é muito comum ministrarem aulas de conteúdos diferentes à sua formação; b) assim como os motoristas, eles também não sabem qual será seu ganho mensal, não sabem quantas horas trabalharão e se desdobram de escola em escola para minimamente obter seu sustento. Então, se ainda não são uberizados, certamente estão no caminho. Lembrando que a prefeitura de Ribeirão Preto criou uma plataforma do “professor uber”, mas, felizmente a câmara vetou o projeto, ao menos por ora.

Contrapoder: Entre os diversos aspectos que são muito comoventes nos seus trabalhos sobre os regimes de contratação de professores, é possível ressaltar o modo como você e seus orientandos nos colocam diante de um aspecto humano mesmo em face a uma temática que poderia ser reduzida a um aspecto estritamente técnico, acerca dos contratos e da regulação normativa da colocação de docentes nas escolas públicas. O seu leitor é chamado constantemente a refletir sobre como as diversas precariedades e, entre elas, a instabilidade e temporariedade do professor na escola, têm a força de serem articuladas com objetivo de moldar o sentido e a lógica para a educação em sentido amplo. Isso nos provoca a pensar que aquilo que intuitivamente nós pensamos ser um efeito colateral, na realidade é o remédio amargo que persiste em ser prescrito na reforma permanente da educação brasileira e que há uma razão de ser na instabilidade docente. Você poderia nos falar sobre como pensar essa articulação?

Selma Venco: Eu constato que os idealizadores dessa política educacional sempre souberam o que estavam fazendo. Guiados por uma educação padronizada, tinham, por um lado, a racionalidade econômica como alimento da política; por outro, são obcecados pela mensuração de resultados e pela quantofrenia, para usar a expressão cunhada por Vincente de Gaulejac. Assim, construíram uma política “sem pontas soltas”: homogeneizaram o currículo, elaboraram cadernos para professores e estudantes, elaboraram avaliações em grande escala independentes das do governo federal e tentaram e tentam prescrever o trabalho intelectual. Ou seja, quem concebeu essa política sabia que metade dos docentes não possuía formação e que entrariam para ministrar qualquer disciplina, sabiam que esses profissionais trabalham até 64 horas semanais e, portanto, sem tempo para estudar e para preparar aula. Ora, como fazer para alcançar resultados diante de tão grande fracasso? Padronizar tudo! Atentem para o fato que esses cadernos são produzidos no modo imperativo, e, portanto, com nítida mensagem ao docente: você não sabe dar aula! Eu preciso dizer a você, professor, qual exercício fazer e como fazer. Uma das entrevistas que fiz com uma professora prestes a se aposentar me comove até hoje. Ela disse: “eu com essa idade e eles me dizem que eu não sei dar aula, mas o que eles fazem não é, na minha opinião, educação”.

Então, há uma intencionalidade que compreendo ser de maior amplitude. Com essa educação projetada continuamos nos inscrevendo na economia global como subalternos, na condição de país com força de trabalho para realizar trabalhos repetitivos, para sermos o celeiro da terceirização internacional para fornecimento de força de trabalho a baixo custo aos países centrais. A divisão internacional do trabalho dita certas normas e o país seguiu à risca essas orientações.

Contrapoder: A rede estadual paulista é uma das maiores do Brasil e, talvez, um imenso laboratório na qual são implementadas medidas de reconfiguração da educação. Como está a situação dos professores dessa rede hoje? Processos como a uberização, temporariedade e instabilidade atingem o conjunto da docência nas escolas públicas de forma homogênea ou existem diferenças?

Selma Venco: Eu faço uso dessa ideia que o estado de São Paulo foi o “laboratório social”, na gestão Covas, da reforma educacional promovida no governo FHC. E há 24 anos aprimora a adoção da Nova Gestão Pública. Há uma parcela de professores concursados e, mesmo com baixos salários, ainda contam com direitos próprios do funcionalismo público. E eu defendo que tenham direitos distintos dos trabalhadores das empresas privadas, pois trabalham para o interesse geral da população, são eles que garantem o funcionamento das escolas, hospitais, creches diante de qualquer intempérie na política. Houve impeachment? Sim, mas tudo continua a pleno vapor para atender a população. Então, as diferenças existem. Minha pesquisa atual é cruzar dados referentes às zonas de maior vulnerabilidade social e precariedade nas relações de trabalho docente nas escolas. E, posso adiantar, que as regiões mais pobres do estado de São Paulo não são providas de supervisor de ensino concursado, de diretor concursado e nem de professores concursados em maior número. Ou seja, as cidades e os bairros com menor poder aquisitivo, com maiores índices de violência também são “brindados” com escolas sem a esperada estrutura de funcionários públicos.

Estamos prestes a vivenciar novas e importantes mudanças na educação. A própria pandemia poderá nos levar a uma maior valorização do professor, ao menos por parte das famílias, agora obrigadas a lidar com o ensino realizado em casa por papel ou online, dependendo da classe social; mas, a política tenderá a essa valorização ou à adoção da ampliação do ensino a distância ou mesmo do uso da inteligência artificial na substituição do professor? Deixo aqui essa pergunta a vocês.

Contrapoder: É muito interessante pensar esses movimentos que tem largo alcance sobre o sentido mais da educação no Brasil, pois nesse caso processos como aqueles que você aponta como a uberização do trabalho do professor são orientações para as escolas públicas. Há relação entre as persistências e os acúmulos de modalidades de precariedade do trabalho dessas escolas e os movimentos de reorganização do ensino privado? Quais são os alvos privilegiados da uberização na educação pública?

Selma Venco: Eu não diria que são orientações para as escolas, mas sim decisões políticas mais abrangentes. Nos anos recentes as escolas paulistas sofreram restrições, inclusive, para contratar professores temporários e as crianças e jovens ficaram, efetivamente, sem aula. Quando eu acompanho os intervalos da realização dos concursos e o número de vagas disponíveis, mesmo que sempre imprecisas, a intencionalidade é muito nítida. São Paulo ficou 15 anos sem realizar concurso para professores do ensino fundamental I. O que isso nos informa? Há aposentadorias, desistências, mortes…e esses não foram repostos por novos concursados. Houve, portanto, uma decisão política em reduzir concursados.

Chamo a atenção que isso ocorre em todo o Brasil, pois no país 4 em cada 10 docentes não são concursados. E temos os “campeões da precariedade” como Santa Catarina, Ceará, Acre, Espírito Santo, Mato Grosso que possuem entre 60 e 78% de docentes não efetivos. Ou seja: quem são os professores nas redes estaduais em todo o país? Não sabemos. Não questiono aqui a competência e reconheço que esses profissionais estão na escola diariamente, prontos para fazer a escola funcionar, mas enquanto política pública é um desastre, pois não há valorização da educação como direito e bem comum.

Contrapoder: Certamente é um quadro difícil para todos aqueles que defendem uma educação nacional em sentido substantivo e uma escola comprometida com a socialização do conhecimento humano e da capacidade de crítica. Como a senhora pensa que essas orientações chegam até o professor? Existem formas de resistências? De que forma elas são condicionadas pelas formas de contratação dos professores.

Selma Venco: Sim, eu mencionei anteriormente que “há a tentativa de prescrever o trabalho intelectual”. Tentativa porque considero que há resistência, mesmo que as formas de controle estejam sendo diariamente aprimoradas. Em SP o chamado “trio gestor” assiste as aulas com vistas a verificar se estão seguindo o Caderno do Professor, porque o que está lá cairá no exame anual. Há escolas inteiras que se rebelaram desde o início contra a padronização do ensino e realizam um trabalho fantástico, com envolvimento da comunidade e são verdadeiros estímulos a docentes e estudantes. Há greves prolongadas, mas sem ganhos e isso arrefece os ânimos. Além disso, a política estabelece mecanismos de retirada de direitos sem, contudo, fazer legalmente. A prova do mérito, por exemplo, atrela o direito a realizá-la se o docente não tiver feito uso de licenças (exceto a maternidade), se não faltou mais do que o permitido…então, quem com salário baixíssimo, com família para ser sustentada irá aderir a movimentos que poderão impedir de concorrer a um aumento salarial? É difícil…os professores temporários são, em várias escolas, ameaçados de não serem mais chamados se participarem dos movimentos e até mesmo de conceder entrevista para um dos meus estudos. A situação nunca é propícia para nós trabalhadores, mas eu acredito que há sempre resistência e que precisamos ter consciência de que juntos podemos muito e dizer não a medidas individualizadoras que tentam nos impingir.

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