Fascistização e militarização no governo Bolsonaro

Presidente Jair Bolsonaro participa da cerimonia do Dia do Soldado (25/08) ao lado do Vice-presidente Hamilto Mourão, Sérgio Moro, no QG do Exércio. Brasilia, 23/08/2019. Ricardo Salles Foto: Sérgio Lima/PODER 360

Por: Eblin Farage1 e Kátia Lima2

O processo de fascistização e militarização das estruturas de poder em curso no Brasil pós 2019 só pode ser analisado tendo como base a identificação da natureza da burguesia brasileira e dos traços estruturantes da inserção capitalista dependente do Brasil na economia mundial.

O perfil ultraconservador da burguesia brasileira e suas ações antissociais e antinacionais de exploração crescente da força de trabalho, de exportação de parte do excedente econômico para os centros imperialistas, de privilegiamento da lucratividade do capital e de intensificação das desigualdades econômicas, políticas e sociais formatam uma modalidade duplamente rapinante do capitalismo forjada por uma mentalidade burguesa extremamente reacionária, egoísta e estreita, que realiza uma superexploração da força de trabalho, gerando setores da classe trabalhadora apartados do acesso às condições mínimas de vida inerentes ao próprio capitalismo.

A expansão do capitalismo dependente realiza a renovação, com novas aparências, do próprio capitalismo dependente, fazendo com que a frágil democracia restrita, em curso historicamente no Brasil, sob qualquer ameaça mínima à concentração de riquezas, prestígio e poder burguês, adquira a feição de uma catástrofe iminente, provocando estados de extrema rigidez estrutural. 

Aqui também o papel do Estado é central: organizar a polícia e as forças armadas – realizando a militarização do poder – e o aparato judiciário para reprimir, prender, excluir, disciplinar e exterminar, se for necessário. Daí a compreensão da autocracia burguesa pelo poder ilimitado de uma classe estabelecida no capitalismo dependente. Sequer a democracia de participação ampliada é conduzida pela burguesia brasileira, mas tão somente a esvaziada democracia restrita ofertada apenas aos considerados “mais iguais”, isto é, às classes dominantes. 

A condição burguesa implica, neste sentido, uma movimentação tirânica na arena política. Assim, no capitalismo dependente, a condição colonial permanente se renova. O burguês tem a mentalidade do senhor rural. O ódio de classe manifesta-se pela intolerância religiosa, pelo racismo, pela aversão aos indígenas, pela homofobia e a misoginia, expressando a manifestação de traços fascistóides que reivindicam, em momentos de crise, a intensa militarização das estruturas de poder.

No livro Poder e Contrapoder na América Latina, Florestan Fernandes (1981, p.15) destaca que os regimes fascistas foram derrotados, “o fascismo, porém, como ideologia e utopia, persistiu até hoje, tanto de modo difuso, quanto como uma força política organizada”. O autor analisa como a manifestação do fascismo persiste através de traços e tendências mais ou menos abertas ou dissimuladas, especialmente em países capitalistas dependentes, onde o autoritarismo foi largamente intensificado e reciclado. Assim, o fascismo nos países capitalistas dependentes “pressupõe mais uma exacerbação do uso autoritário e totalitário da luta de classes, da opressão social e da repressão política pelo Estado, do que uma doutrinação de massa e movimentos de massa” (FERNANDES, 1981, p. 17).

Estes traços fascistóides, para o autor, apresentam também certas continuidades culturais herdadas das estruturas autoritárias de poder do colonialismo, mas não se constituem em meros produtos dessas estruturas arcaicas que são permanentemente recicladas pelo processo identificado como condição colonial permanente acima mencionada. O fascismo, para Florestan Fernandes (1981) é uma força moderna associada aos interesses imperialistas na periferia do capitalismo.

Tratando especificamente do Brasil, Fernandes (1981) analisa como os setores dominantes organizam historicamente, a partir de composições civil-militares, uma política conservadora-reacionária que articula interesses externos e internos, realizando a nova face dos padrões de sobreexpropriação do excedente econômico e de hegemonia burguesa. O processo de fascistização combina, portanto, o regime autoritário (por uma política econômica afinada com os interesses imperialistas), com a difusão de valores conservadores que encontram suas raízes na mentalidade colonial (racismo, homofobia, misoginia) e com a militarização do poder, especialmente de funções estratégicas do Estado burguês no capitalismo dependente.

É neste quadro analítico que devemos inscrever o avanço de um intenso processo de fascistização conduzido, entre outras ações, pela militarização das estruturas de poder no governo Bolsonaro. O exame dos dados sobre a composição do governo revela que os militares controlam oito dos 22 ministérios, além de várias áreas do serviço público federal e de estatais. A tabela abaixo demonstra como ocorre o processo de militarização no Governo Bolsonaro, particularmente nos cargos estratégicos do governo.

Tabela 1.3 Militarização no Governo Bolsonaro (2019- fevereiro de 2021)

Militar da ativa/reserva ou com formação militarCargo no Governo Bolsonaro
Jair BolsonaroCapitão do ExércitoPresidente da República
Hamilton MourãoGeneral do ExércitoVice-presidente da República
Otávio do Rêgo BarrosGeneral da reserva Porta-voz da Presidência.4
Walter Souza Braga Netto General do Exército
Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira (março 2021)General do Exército
Ministro da Casa Civil

Augusto Heleno Ribeiro PereiraGeneral da reserva do Exército
Gabinete de Segurança Institucional
Luiz Eduardo Ramos B. PereiraGeneral do Exército
Deputada Federal Flávia Arruda (PL-DF) (março 2021)
Secretaria de Governo
Fernando Azevedo e Silva General do Exército
Walter Souza Braga Netto General do Exército (março 2021)
Ministro da Defesa
Marcos PontesTenente-coronel da AeronáuticaMinistro da Ciência e Tecnologia
Bento Costa Lima Leite de Albuquerque JúniorAlmirante da Marinha
Ministro de Minas e Energia
Eduardo PazuelloGeneral do Exército
Marcelo Queiroga (março 2021)
Ministro da Saúde
Milton RibeiroSegundo Tenente do ExércitoMinistério da Educação
Ministro Tarcísio de FreitasConcluiu o curso da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), que forma oficiais do Exército.Ministério da Infraestrutura
Anderson TorresDelegado da Polícia Federal 
Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Ministro Wagner Rosário Concluiu o curso da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), que forma oficiais do Exército. Capitão do Exército.Controladoria-Geral da União (CGU)
Flávio Augusto Viana RochaOficial geral da MarinhaSecretaria de Assuntos Estratégicos (SAE)
Joaquim Silva e LunaGeneral do ExércitoPresidência da Petrobrás
Eduardo Bacellar Leal FerreiraAlmirantePresidente do Conselho de Administração da Petrobrás
Ruy SchneiderOficial da reserva da Marinha
Conselheiro do Conselho de Administração da Petrobras
Valdir Campoi JuniorCoronel da reserva ExércitoMembro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT)
Eduardo Miranda Freire de MeloCapitão de corvetaMembro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT)
Fonte: Tabela elaborada pelas autoras com base em:
http://www.portaltransparencia.gov.br/download-de-dados/servidores, https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2021-02/bolsonaro-indica-joaquim-silva-e-luna-para-presidencia-da-petrobras e https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/02/20/sucessao-na-petrobras-saiba-quem-sao-os-conselheiros-que-vao-avaliar-indicacao-de-silva-e-luna-para-a-presidencia-da-estatal.ghtml https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-nomeia-dois-militares-para-comite-de-combate-a-tortura,70003624736
Acesso em 23 fev. 2021.

Neste quadro de militarização do serviço público federal, de estatais e de órgãos oficiais merece um destaque a militarização da saúde, especialmente na conjuntura da pandemia da Covid-195, conforme tabela abaixo.

Tabela 2 – Principais cargos ocupados por militares no Ministério da Saúde (2020)

MilitaresCargos no Ministério da Saúde
Eduardo PazuelloGeneral
Marcelo Queiroga (março 2021)
Ministro da Saúde
Antônio Élcio Franco FilhoCoronel do ExércitoSecretário-executivo interino
Reginaldo Machado Ramos Tenente-coronelDiretor de Gestão Interfederativa e Participativa
Jorge Luiz KormannTenente-CoronelSecretário Adjunto. Diretor de Programa.
Marcelo Blanco DuarteTenente-CoronelAssessor no Departamento de Logística
Paulo Guilherme Ribeiro FernandesTenente-CoronelCoordenador Geral de Planejamento
Alexandre Magno AsteggianoCapitãoAssessor
Luiz Otávio Franco DuarteCoronelAssessor especial do ministro
André Cabral BotelhoSubtenente de infantariaCoordenador de Contabilidade
Giovani Cruz CamarãoSubtenenteVagner Luiz da Silva RangelTenente-coronelCoordenador de Finanças do Fundo Nacional de Saúde
Coordenador de execução orçamentária
Ramon da Silva OliveiraMajorCoordenador geral de Inovação de Processose de Estruturas Organizacionais
Marcelo Sampaio PereiraTenente-coronelDiretor de programa da Secretaria deAtenção Especializada à Saúde
Angelo Martins DenicoliMajorDiretor do Departamento de Monitoramentoe Avaliação do SUS
Alexandre Martinelli CerqueiraCoronelSubsecretário de Assuntos Administrativos
Flávio RochaAlmiranteChefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE)
Laura Triba AppiTenenteDiretora de Programa da Secretaria de Atenção Primária
Mario Luiz Ricette CostaTenenteAssessor técnico da Subsecretaria de Planejamento e Orçamento, atuava na Diretoria de Saúde do Ministério da Defesa
Celso Coelho Fernandes JúniorMajorCoordenador-Geral de Acompanhamentoe Execução de Contratos Administrativos
Paulo César Ferreira JúniorCapitãoDiretor de Programa da Secretaria-Executiva
Giovanne Gomes da SilvaCoronelPresidente da Fundação Nacionalde Saúde (Funasa)
Vilson Roberto Ortiz Grzechoczinski Segundo-tenenteCoordenador-geral da Secretaria Especialde Saúde Indígena
Robson Santos da SilvaCoronelSecretário especial de Saúde Indígena
Marcio Vieira da SilvaCoronelCoordenador-geral de Orçamento e Finanças
Nivaldo Alves de Moura FilhoTenente-coronelDiretor de Programa da Secretaria-Executiva
Roberto Bentes BatistaCoronelDepartamento de Engenharia de Saúde Públicada Fundação Nacional de Saúde
Fonte: Tabela elaborada pelas autoras com base nos dados disponíveis em:
http://www.scielo.edu.uy/pdf/rucp/v29n2/1688-499X-rucp-29-02-33.pdf Acesso em: 17 fev. 2021

Quando analisamos os dados referentes aos principais setores do Ministério da Saúde, identificamos como os militares estão distribuídos em cargos estratégicos.6

Tabela 3 – Distribuição de militares pelas principais áreas do Ministério da Saúde (2020).

Departamentos do Ministério da SaúdeMilitares
Departamento de Logística em Saúde– Tenente-coronel Alex Lial Marinho, coordenador-geral de Logística de Insumos Estratégicos para Saúde;- Tenente-coronel Marcelo Batista Costa, substituto na coordenação-geral de Aquisições de Insumos Estratégicos para Saúde;- Coronel da reserva Marcelo Blanco da Costa, assessor especial- General da reserva Ridauto Lúcio Fernandes, assessor.
Subsecretaria de Planejamento e Orçamento– Coronel da reserva Paulo Guilherme Ribeiro Fernandes, coordenador-geral de planejamento;- Capitão Mario Luiz Ricette Costa, assessor técnico que foi exonerado em 19 de janeiro de 2021, sendo nomeado Marcos Eraldo Arnaud Marques, marqueteiro conhecido como “Marquinhos Show” como assessor especial do Ministro da Saúde.
Secretaria de Atenção Especializada à Saúde– Coronel Luiz Otavio Franco Duarte, secretário.
Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena– Coronel da reserva Robson Santos da Silva, secretário- Segundo-tenente Vilson Roberto Ortiz Grzechoczinski, nomeado em maio de 2020 como Coordenador Distrital de Saúde Indígena.
Fonte: Tabela elaborada pelas autoras com base nas informações disponíveis em:
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55923963 Acesso em: 17 fev 2021 

Para o desenvolvimento de sua política pautada na anticiência, o governo Bolsonaro, articula sua política econômica com o conservadorismo fascistóide, que têm, como afirma Löwy (2020)7, como um dos resultados da “versão fundamentalista do neoliberalismo, o desmantelamento do sistema de saúde pública brasileira (SUS), já bastante fragilizado pelas políticas de governos anteriores”.

Essa política, pautada na articulação entre a perspectiva fundamentalista, miliciana e militarizada, sem precedentes na história do Brasil, inaugura uma quadra histórica de profundos retrocessos e extermínios de trabalhadores e trabalhadoras. 

“O desprezo pela ciência, em aliança com seus apoiadores incondicionais, os setores mais retrógrados do neopentecostalismo “evangélico” (idem), fortalecem o projeto da necropolítica à brasileira, explicitada nos posicionamentos do presidente da república, que trata a pandemia da Covid-19 como ‘gripezinha’, indica remédios sem comprovação científica para tratamento, justifica a inoperância e lentidão na compra de vacinas pela responsabilidade com os brasileiros para ‘não virarem jacaré’ ou para que os ‘homens não passem a falar fino’. 

Assim chegamos a mais de 318 mil mortes8, sem contar as subnotificações, e o país caminha a passos de tartaruga na vacinação, enquanto a fascistização e a militarização das áreas estratégicas do governo caminham a passos largos.

Nota: Texto originalmente publicado na Carta Capital em 12 de abril de 2021 e atualizado para o Contrapoder.

Referências

  1. Professora da Escola de Serviço Social e do PPGSSDR da UFF.
  2. Professora da Escola de Serviço Social e do PPGSSDR da UFF.
  3. Tabela elaborada pelas autoras para o Dossiê Militarização do Governo Bolsonaro e Intervenções nas Instituições Federais de Ensino do ANDES-SN, disponível na íntegra em www.andes.org.br
  4. Em 07 de outubro de 2020, o presidente exonerou o general da reserva do referido cargo. Junto a exoneração, o cargo foi extinto oficialmente.
  5. No dia 11 de março de 2020 o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus anunciou em Genebra, na Suíça, que a COVID-19, doença causada pelo novo coronavírus, era caracterizada como uma pandemia. Mais detalhes sobre o pronunciamento da OMS podem ser encontrados em https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6120:oms-afirma-que-covid-19-e-agora-caracterizada-como-pandemia&Itemid=812 Acesso em: 3 Jan. 2021.
  6. Cabe ressaltar que os militares que estão atuando na saúde recebem as seguintes gratificações: Direção e Assessoramento Superiores – DAS, das Funções Comissionadas do Poder Executivo – FCPE e das Funções Gratificadas – FG do Ministério da Saúde.
  7. LÖWY, Michael. O neofascista Bolsonaro diante da pandemia. Abril, 2020. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/04/28/michael-lowy-o-neofascista-bolsonaro-diante-da-pandemia/.
  8.  Hoje, 13 de abril de 2021, chegamos à triste marca de mais de 355 mil mortos por covid-19. (nota do editor: hoje, 27 de abril, temos mais de 392 mil mortos)

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