A guerra do hífen

O “marxismo-leninismo” não é marxista nem leninista

Foi uma surpresa a recente cisão do PCB, com a formação do Partido Comunista Brasileiro – Reconstrução Revolucionária (PCB-RR) e, ainda mais, a disputa em torno dos termos “marxista” e “leninista” ou “marxista-leninista”, o último há muito em semi-desuso. Como nos idos da URSS, chega-se a propor a categoria “marxista-leninista” como pedra de toque capaz de detectar todas as impurezas e desvios ideológicos.

Em 16 de janeiro de 2023, Gabriel L. Fazzio, hoje militante de destaque do PCB-RR, publicou longo artigo, de viés neoestalinista, defendendo a posição pró-hífen – “O desenvolvimento leninista do marxismo”. Ou seja, propondo que o “leninismo” constituiu uma obra que “sintetiza a teoria revolucionária contemporânea”, em um sentido tão acabado, que, fora dele “não” haveria “marxismo verdadeiro”. [FAZZIO, 2023.] Salvo engano, não temos ainda artigo igualmente detalhado em defesa da proposta oposta.

Queda em picada

Uma união, com um hífen, da produção do “marxismo”, do século XIX, apresentada como uma era não revolucionária, com o “leninismo”, que absorveria a produção anterior e sintetizaria toda a teoria revolucionária correspondente ao século XX, era do imperialismo, do capitalismo monopolista e da revolução proletária. No “marxismo-leninismo”, portanto, encontraria-se a base da solução de todos os dilemas atuais da revolução.

É rica a bibliografia sobre o nascimento do conceito “marxismo-leninismo”, com um conteúdo sintético, excluidor e conclusivo, e não apenas como sinônimo de marxismo revolucionário. Categoria jamais chancelada por Karl Marx ou Vladimir Lênin, já que posterior às suas mortes. [MARIE, 2009; CARR, 1968.]

É mais pobre a literatura sobre a queda em picada do uso e abuso do conceito “marxismo-leninismo”, quando do salva-se quem puder entre seus defensores, devido à dissolução dos aparatos políticos-estatais que o sustentavam, com destaque para a URSS, em 1991, quando da vitória mundial da maré contra-revolucionária. [FITZPATRICK, 2023; MAESTRI, 2021 [A].]

Invasão da Itália pela Rússia

É pouco estudado o revival neoestalinista dos últimos anos. Fenômeno alimentado pelo enfraquecimento do mundo do trabalho, sobretudo após a “Queda do muro de Berlim”, e pelo dinamismo da restauração capitalista na China e na Federação Russa, apresentada como o novo Caminho de Damasco da esquerda, que exigiria, porém, suportar, por até um século, o tacão capitalista, antes de se chegar ao socialismo.

No Brasil, o grande profeta do “socialismo de mercado” foi o neoestalinista e farsante italiano Domenico Losurdo (1931-2018). Em fins dos anos 1970, esse “marxista-leninista” de carteirinha propôs a união dos maoístas italianos, entre os quais ele militava, aos neofascistas, ao imperialismo, ao exército italiano, à OTAN. Tudo para enfrentar uma próxima invasão da Itália pela URSS, apoiada pelo Partido Comunista Italiano. [MAESTRI, 2021. [A].]

Teve igualmente importância na difusão do neoestalinismo, sobretudo entre jovens militantes, a incapacidade das organizações se reivindicando do trotskismo em responderem à crise dos anos 1980. Em geral, elas emergiram da II Guerra dizimadas pela repressão policial, fascista e estalinista, acéfalas de dirigentes fogueados nos anos 1930, sem vínculos com o mundo do trabalho, mergulhando comumente em enorme confusão.

Nascimento do “marxismo-leninismo”

A apologia do “marxismo-leninismo” jamais se alonga sobre o surgimento da categoria, nos anos 1930, como ideologia de Estado e sentido restritivo, anatematizando tudo e todos que não se encontrassem no interior daquele cercadinho. E, sobretudo, como apoio político-ideológico da repressão criminal crescente que liquidou dezenas de milhares de bolcheviques e dissidentes, sob a acusação de desvio ou de traição ao “marxismo-leninismo”, muito logo rebatizado de “marxismo-leninismo-stalinismo”. [SERGE, 1987; CILIGA, 1938.] A permanência daquela carnagem no DNA do “marxismo-leninismo” é uma das razões do esforço de recuperação de J. Stalin e do estalinismo por seus defensores. [MARTENS, 2003; LOSURDO, 2019.]

A partir de 1956, a extensão “stalinista” do “marxismo-leninismo” foi abandonada, sem maiores reflexões, na URSS e nos partidos de disciplina moscovita, devido à denúncia dos crimes do estalinismo, por Nikita Kruschev (1894-1971), como produto exclusivo do seu antigo chefe máximo. O Koba serviu de “boi de piranha” para a passagem liberatória da boiada sem fim dos burocratas comprometidos com a hecatombe repressiva.

No Brasil, o PCB estalinista transformou-se, sem grandes solavancos, sempre sob a direção de Luís Carlos Prestes (1898-1990), em pós-stalinista. A nota destoante foi o nascimento do PCdoB, que seguiu na adoração ao “Pai dos Povos” e, a seguir, se abraçou ao “marxismo-leninismo” no sabor chinês. [CHILCOTE, 1982.] Na China, nesse ínterim, surgira o “marxismo-leninismo-stalinismo-pensamento do presidente Mao-Tsé-Tung”. E, em continuação, o “marxismo-leninismo” de Enver Hoxha (1908-1985), na minúscula Albânia, quando a China se abraçou com o imperialismo ianque em viés anti-URSS. Todos se propondo o “marxismo-leninismo” legítimo. [GUILLERMAZ, 1973; MAESTRI, 2021 [B].]

Origem do “marxismo-leninismo”

A construção e a dominância do “marxismo-leninismo” nasceram do choque entre as políticas da esquerda e da direita do Partido Bolchevique, com o oscilar de uma burocracia centrista preocupada apenas com a manutenção e expansão de seus privilégios. A esquerda defendia a necessidade da aceleração da industrialização, a partir de gradual coletivização da agricultura, para a restauração da classe trabalhadora e da economia dizimadas pela Guerra Mundial [1914-1918] e pela Guerra Civil [1918-1923].

Em 1923, León Trotsky deu o ponta-pé inicial na campanha contra a burocracia e na constituição da “Oposição de Esquerda” com a publicação de artigos, reunidos no opúsculo Curso novo. Nele, apontava o grave processo de burocratização do Partido Bolchevique e do Estado, que se confundiam, e a fragilidade do proletariado soviético. Lembrava que se vivia na URSS ditadura em “nome do proletariado” e não a ditadura de um proletariado semi-inexistente. [TROTSKY, 2023.]

O bloco direitista defendia a manutenção permanente da Nova Política Econômica [NEP], votada, em 1921, como medida transitória, para desafogar um país exangue, liberalizando a produção mercantil-capitalista. Em 21 de janeiro de 1924, a morte de Lênin exacerbou aquela disputa, com a união contra a esquerda e L. Trotsky dos principais dirigentes do partido que disputavam a direção da URSS.

A Oposição de Esquerda nascia enfraquecida devido à força da Nova Economia Política [NEP]; à fragilidade do proletariado industrial; à consolidação do aparato burocrático. Ela depositava as esperanças, em reverter o curso da orientação do PCUS, no avanço da revolução mundial que refluiu, com destaque para a Alemanha, em 1924. Em 1927, a Revolução Chinesa foi derrotada. O refluxo da revolução mundial aplainou o caminho para a consolidação da burocracia na URSS. [BROUÉ, 1964; SERGE, 1971.]

Restauração capitalista

León Trotsky era, após Lênin, o mais destacado e reconhecido dirigente bolchevique na URSS. Ele fora o último presidente do soviete de Petrogrado, em 1905, dirigira a construção do Exército Vermelho, vencera a Guerra Civil. [TROTSKY, 1968.] Os principais dirigentes da velha guarda e a casta burocrática temiam que a posição de Lênin pusesse fim à NEP, avançasse a reindustrialização acelerada do país. Trotsky tinha, porém, um “calcanhar de Aquiles” fortemente exposto. Havia ingressado tardiamente no Partido Bolchevique e travara, por anos, forte debate com V. Lênin. [CARR, 1964.]

À morte de Lênin seguiu-se campanha, em nada inocente, de construção de seu culto e sacralização do termo “leninismo” e “marxismo-leninismo”, ainda sem o conteúdo posterior. Na Praça Vermelha, seu corpo embalsamado foi conservado em mausoléu. Ele passou a ser apresentado como corporificação teórica-espiritual da Revolução. Buscava-se aumentar o combalido apoio à nova ordem sobretudo entre as multidões de camponeses de credo cristão ortodoxo.

Em 1924, no ensaio As lições de Outubro, L. Trotsky questionou Kamenev e Zinoviev por terem se oposto à insurreição proposta por Lênin. [TROTSKY, 1979.] Entretanto, eles haviam defendido a política democrático-burguesa construída sob a direção de Lênin, que propusera a urgente necessidade de superá-la com as Teses de Abril, de 1917. Um e outro centraram suas respostas, não nas propostas da Oposição de Esquerda, mas na publicação das desavenças políticas do passado entre L. Trotsky e V. Lênin.

Após o início da I Guerra, sobretudo Lênin, Trotsky e Rosa Luxemburgo conformaram o pelotão de esquerda do marxismo europeu, discutindo de igual para igual, ao divergirem. Nos anos anteriores à 1917, polemizando, haviam voado epítetos duríssimos entre Lênin e Trotsky, como habitual na época. Kamenev e Zinoviev construíram e divulgaram o termo “trotskismo” com o sentido de “anti-leninismo”.

Revolução em perigo

As disputas de Lênin-Trotsky descontextualizadas municiaram o combate contra o principal crítico da burocracia e, a seguir, contribuíram para a dizimação da esquerda bolchevique, quando da maré de sangue de meados dos anos 1930. [BROUÉ, 1966.] O antitrotskismo tornou-se parte do núcleo constitutivo do “marxismo-leninismo”.

No combate da burocratização e defesa da industrialização, L. Trotsky foi obrigado a enfatizar seus acordos essenciais com Lênin e minimizar as divergências passadas, mesmo quando ele, e não Lênin, tivera razão. N. Bukharin se ergueu como principal defensor da continuação ad eternum da NEP, apoiado no partido e no Estado, representada por J. Stalin. [COHEN, 1990.]

J. Stalin, militante sem brilho e prestígio, progredira no aparato como protegido de V. Lênin, que apoiou sua nomeação a secretário-geral do Partido. Momentos antes de sua morte, Lênin recomendou em seu “testamento político”, jamais divulgado ao Partido, a substituição do seu antigo protegido, por brutalidade. J. Stalin não pariu, mas foi parido pela burocracia, coerida por pequenos, médios e grandes privilégios, em país e época onde, o que não faltava, era racionado. Nos crimes da burocracia ficaram indelevelmente impressas as digitais de Stálin. [MARIE, 2011.]

A burocracia se assusta

Em fins dos anos 1920, a conformação do Partido Bolchevique modificara-se em relação a 1917. Sobretudo durante a Guerra Civil [1918-1923], em situação de crescente debilidade do proletariado, o partido fora infiltrado por carreiristas e técnicos, funcionários, administradores, etc. da era pré-revolucionária, com capacidades ainda raras na URSS e sem compromisso com a revolução ou simpatia pelo bolchevismo. [BROUÉ, 1969.]

Nesses anos, os trabalhadores industriais conheciam duríssimas condições de vida, enquanto os empreendedores surgidos com a NEP prosperavam nas cidades e os camponeses ricos, nos campos. Os burocratas do Estado e do Partido, aferrados aos seus privilégios, não raro, se associavam a empresas privadas. Proliferavam restaurantes, hotéis, cabarés, prostíbulos de luxo, enquanto muitos trabalhadores seguiam para o trabalho de pés descalços. [CILIGA, 1938.]

Em novembro de 1927, L. Trotsky foi expulso da URSS enquanto a Oposição de Esquerda era duramente reprimida. Ele alertara anteriormente sobre a “Crise das Tesouras” – o desnível entre os preços dos produtos industriais, altos, e os dos produtos rurais, baixos, devido à frágil produção industrial. Com apoios no Partido Bolchevique, os camponeses pressionavam por aumentos dos preços agrícolas e maior poder político. A “greve dos grãos” ameaçava as cidades com a fome e com o retorno do confisco da produção camponesa e deprimia os limitados investimentos na industrialização.

A burocracia compreendeu que o prosseguimento da NEP e a aliança com N. Bukharin e a direita bolchevique levariam à contra-revolução, como denunciara a Oposição de Esquerda. A contra-revolução na URSS poria fim à sociedade soviética, e com ela, aos privilégios dos burocratas, ameaçando suas próprias vidas. [CARR & DAVUEM, 1968.]

Autoritarismo e incompetência

Em fins de 1928, reorientando-se radicalmente em suas posições, J. Stalin, sua equipe e a burocracia parasitária romperam com N. Bukharin, puseram fim à NEP, apropriaram-se do programa da Oposição de Esquerda, sem qualquer atenção aos métodos de implantação propostos por ela e apresentados pelo economista E. Preobrazensky. [PREOBRAJENSKY, 1979; BUKHARIN e PREOBRAZENSKIJ, 1973.]

A Oposição de Esquerda defendera o financiamento da industrialização com parte da renda rural, apropriada através de mecanismos fiscais; trocas desiguais entre os produtos urbanos e rurais; coletivização das melhores terras, rentabilizadas pela exploração com instrumentos e técnicas avançadas, prestigiando a coletivização do campo. Tratava-se de acelerar a industrialização sem meter a carroça diante dos bois ou de avançar a carroça sem bois, como terminou sendo feito.

A rústica burocracia, desconfiando e temendo os trabalhadores, impôs industrialização e coletivização geral das terras, forçadas, autoritárias, voluntaristas, sem planejamento efetivo. Elas causaram danos incomensuráveis, por décadas, à economia soviética, com destaque para a agricultura e os meios de transportes.

Os camponeses foram forçados a entregar suas glebas, animais, ferramentas e trabalhar as terras coletivizadas com ferramentas próprias à exploração familiar, o que determinou forte queda da produção rural. O que seria repetido, em situações diversas, por Mao Tsé-Tung, quando do dito Grande Salto Adiante, em 1958-60, com iguais resultados desastrosos. [GUILLERMAZ, 1973, 1959; MAESTRI, 2021.]

O Holodomar, na Polônia, com milhões de camponeses mortos de fome, em 1931-1933, no início da coletivização forçada, não foi invenção ou acontecimento devido à maldade maquiavélica de J. Stalin, como propõe a direita ucraniana. Foi produto da enorme incompetência, suficiência e brutalidade da equipe estalinista. Um secretário-geral burocrata menos obtuso não teria mudado certamente o curso dos acontecimentos, mas talvez minorasse as hecatombes produzidas pela enorme incompetência de J. Stalin.

Revolta dos campos

Foi enorme a oposição e a resistência geral dos camponeses que abateram seus animais, aos milhões, para comê-los, produzir vestimentos, não entregá-los ao Estado. Membros do Partido apareciam degolados nos caminhos rurais e eclodiram pequenas sublevações através da Rússia. A oposição foi sobretudo rural, mas atingiu também a cidade, com os trabalhadores submetidos a ritmos de trabalho crescentes e a salários decrescentes.

O desastre econômico geral foi explicado pela burocracia como exclusivamente devido a sabotagens contra-revolucionárias. A repressão se espraiou pelo país, com aprisionamento, deportação e exploração de milhões de camponeses. [CARR & DAVUESM ,1968.]

A repressão golpeou a militância bolchevique que participara da Revolução de 1917 e da Guerra Civil, com verdadeiro paroxismo quando dos processos de Moscou, com a execução de alguns dos mais próximos companheiros de Lênin. [BROUÉ, 1966.] Tratava-se de reescrever a história e construir um novo partido, sem raízes com o passado. O que foi alcançado. [MAESTRI [A].]

Solução final

Concomitante aos Processos de Moscou, impôs-se a “solução final” ao que restava dos militantes da Oposição de Esquerda e de outros dissidentes aprisionados, fuzilamento sem julgamento, aos milhares. [BROUÉ, SD; CANARY, 21/11/2019.] Contam-se nos dedos de uma mão os militantes trotskistas aprisionados que escaparam ao massacre, como Victor Serge e Ante Ciliga, que escreveram dilacerantes páginas sobre o inferno estalinista. [SERGE, 1987; CILIGA, 1938; JOFFE, 1978.]

A ditadura burocrática mantinha sob rígido controle a produção intelectual. Os ideólogos da Era Estalinista caminhavam sobre um fio de navalha interpretando os ventos incertos chegados do Kremlin. A peça central do controle das consciências foi a imposição da escolástica “marxista-leninista-stalinista”, com a qual se excomungava a ação, a memória e a produção dos marxistas revolucionários russos e europeus.

 Com a consolidação da burocracia na URSS, o dito “marxismo-leninismo-stalinismo” e, a seguir, o “marxismo-leninismo”, se espraiaram pelo mundo, como instrumento de submissão dos partidos da III Internacional. Uma expansão que se apoiou no prestígio do Partido Bolchevique e da URSS, nascidos da conquista do poder, em 1917 e, da vitória sobre a Alemanha nazista.

O peso da burocracia

Vitórias apresentadas como obras do “grande dirigente dos povos”, sob a orientação do “marxismo-leninismo-stalinismo”, e não como produto do esforço titânico dos trabalhadores da União Soviética, carregando sob os ombros o pesado fardo burocrático. Fardo que levaria à destruição da URSS, em 1991, sem resistência por parte de uma população castrada politicamente por décadas de ditadura burocrática “marxista-leninista”. Como alertara L. Trotsky que ocorreria, caso os trabalhadores não reassumissem a direção da URSS.

Os neoestalinistas voejam como moscas em torno de pote de mel tentando definir quando o “marxismo-leninismo” teria sido traído, possibilitando o fim da URSS. Em geral, apontam a morte de J. Stalin e o advento de N. Kruschev como a grande virada. Declaração de célula do PCB, de adesão à Reconstrução Revolucionária, registra quão fundo prosperou entre uma juventude pouco formada essa visão conspirativa da história. “Acaso, não aprendemos com a experiência da URSS que a crítica ao ´stalinismo´, feita por Khrushchev, […], era o abandono do marxismo-leninismo e a vacilação rumo ao revisionismo que conduziu à dissolução da URSS? Negar o marxismo-leninismo de nossa tradição é abrir o mesmo precedente […].” “Como argumenta Stalin: “O Leninismo é o marxismo da época do imperialismo e da revolução proletária […].” [Manifesto de adesão.]

O enfraquecimento do caráter referencial do mundo do trabalho permite a retomada de visões opostas a ele, defendidas em seu nome. Se fortalece as fantasmagorias sobre o caráter progressivo da construção de movimento comunista à imagem dos tempos em que um aparato partidário “esclarecido” pelo “marxismo-leninismo” manteve a sociedade e os trabalhadores na disciplina autoritária, com os resultados conhecidos.

Métodos coercitivos

Em seu artigo, no mesmo sentido, Gabriel Fazzio propõe como tarefa primordial em nosso país a agitação dos métodos coercitivos entre os trabalhadores. “Ora, em uma época na qual predominam sobre o movimento operário concepções reformistas e gradualistas da luta de classes, uma das principais tarefas da propaganda revolucionária consiste na legitimação dos métodos coercitivos que o proletariado deve empregar, necessariamente, na sua luta pela reorganização socialista da sociedade.”

O Brasil possui uma robusta classe trabalhadora que jamais completou em forma substancial sua transição de classe em si em classe para si. [MAESTRI, 2019] Para capacitar-se ao assalto ao poder, ela tem muito que avançar na organização, ideologia, consciência, através de plena e ampla democracia operária, e jamais de métodos coercitivos e golpes de mão.

 Após a II Guerra, o “marxismo-leninismo” foi a ideologia oficial das ditas Democracias Populares, nascidas nas áreas de influência da URSS, definidas autocraticamente, em fins de 1943, pelos novos senhores do mundo. Após a contra-revolução liberal de 1991, em nenhum desses países, que viveram longamente sob a hegemonia do “marxismo-leninismo”, se conformou partido comunista com uma mínima expressão significativa.

O núcleo político-ideológico do “marxismo-leninismo”

A vulgata “marxista-leninista” codificou uma série de rupturas essenciais com o marxismo revolucionário, nascidas das necessidades da burocracia da URSS. Muitas delas ainda partes integrantes do “marxismo-leninismo” do século 21, abraçado pelo neoestalinismo. Ela se organizou em torno da renúncia à revolução mundial, à democracia proletária, ao poder soviético.

Desde sua origem, os principais axiomas da escolástica “marxista-leninista” foram a “construção do socialismo em um só país”, contra o princípio da união dos Estados socialistas europeus e mundiais. A ruptura com o internacionalismo, consagrado na liquidação da III Internacional, por Stalin, em 1943, como “agrado” aos aliados imperialistas. Até hoje, mesmo o “marxismo-leninismo” de esquerda tem dificuldade de compreender o internacionalismo como um “partido mundial da revolução”, para além de associação entre organizações congêneres, deslize igualemente comum no atual trotskismo. [CARR, 1968; FRANK, 1979.]

Na doutrina “marxista-leninista” destacava-se a proposta de “revolução por etapas”, em aliança com as burguesias progressistas, em oposição à concepção, proposta por Trotsky, após 1905, e reafirmada por Lênin, em 1917, da concretização, nas nações coloniais e semi-coloniais, das tarefas democráticas em associação às tarefas socialistas. [MAESTRI, 2021.]

No programa “marxista-leninista”, assumiu igualmente destaque a defesa da superação econômica do capitalismo pela URSS, rompendo com a própria lembrança de V. Lênin da necessidade de fim da ordem capitalista pela sua destruição. Postulado que condicionava a ação revolucionária mundial às necessidades da URSS, já que seu avanço materializaria o sucesso da revolução mundial. Defendia a “inevitabilidade da vitória do socialismo”, em visão teológica estranha ao marxismo.

Coexistência pacífica

Foi política referencial do “marxismo-leninismo” a defesa das “frentes populares interclassistas”, não apenas contra o fascismo, em contradição com a oposição essencial do marxismo à colaboração de classes. Orientação que levou a enormes derrotas através do mundo. Outra sua pedra basilar foi a defesa do “partido único”, antes e após a revolução, compreendido como demiurgo substitutivo dos trabalhadores na luta pela emancipação social.

O denominador comum do “marxismo-leninismo” foi a colaboração e a pacificação da luta de classes mundial, na tentativa da construção de irrealizável convivência entre o mundo capitalista e socialista, que permitiria à burocracia da URSS viver em paz seus privilégios, sem os sobressaltos e as incertezas dos confrontos revolucionários.

Os partidos de obediência moscovita e multidões de honestos revolucionários foram criados na obediência litúrgica e na servidão voluntária ao “credo marxista-leninista”, ao igual que a maioria dos partidos comunistas que não desapareceu ou metamorfoseou-se em organizações sociais-liberais, após a destruição da URSS, em 1991. Mesmo seguindo orientações díspares, prosseguiram propondo-se “marxista-leninistas”, como se aquela designação os ligasse a um passado de glória e não fosse responsável pela debacle internacional do mundo do trabalho.

Mesmo após 1991, foi geral a incapacidade de realizar autocrítica do passado de colaboração de classe. Mesmo as organizações que rejeitaram algumas das propostas constitutivas do “marxismo-leninismo”, abraçando, por exemplo, o programa socialista, seguiram reafirmando um pertencimento ao “marxismo-leninismo” cada vez mais confuso, o que facilitou, comumente, afloramento de neoestalinismo jamais digerido.

Leninismo como transcendência

O “marxismo-leninismo” dogmático nasceu da proposta do “leninismo” como síntese da produção teórica de Marx e Engels, produzida em uma “era não revolucionária”, completada em forma conclusiva pela produção de Lênin, própria à era do imperialismo e da revolução. O “leninismo” e o “marxismo-leninismo” propunha possuir caráter transcendental que tornaria tendencialmente desnecessário qualquer outra produção marxista.

Esse movimento iniciou-se, em 1924, com a morte de Lênin, e se radicalizou com a consolidação da burocracia. O “marxismo-leninismo” tornou-se ideologia de Estado na URSS e na China e foi duramente golpeado com a restauração capitalista no “Reino do Meio”, e, mais tarde, com a destruição da URSS. Atualmente, ele conhece um revival neoestalinista, devido à fragilidade do mundo do trabalho, ao dinamismo da produção capitalista na Rússia e na China, à ausência de proposta marxista revolucionária crível, como proposto.

A sacralização litúrgica do “leninismo” impede a compreensão do enorme valor da obra de V. Lênin, no contexto de suas inevitáveis limitações. Na Europa Ocidental e Oriental, após a debacle oportunista e nacionalista da I Guerra Mundial, consolidou-se um escol de dirigentes revolucionários, com destaque para Vladimir Lênin, León Trotsky e Rosa Luxemburgo. Eles não apenas produziram riquíssima reflexão sobre a revolução, como também participaram do assalto ao poder, com sucessos e fracassos. Rosa Luxemburgo morreu em 1919, Lênin em 1924, e Trotsky em 1940.

Vida excepcional

Vladimir Lênin, pensador brilhante, estudioso sistemático e disciplinado, formado na tradição do marxismo ocidental, dedicou sua vida à revolução russa e mundial, abordando em forma desigual temas políticos, econômicos, filosóficos, etc., sempre desde a ótica da emancipação dos trabalhadores. Sobrepôs sempre sua vida de revolucionário à sua vida privada, morrendo precocemente, com 54 anos.

Lênin, orador e escritor sem recursos excepcionais, destacava-se pelo conteúdo de suas proposta. Seus principais instrumentos de luta foram o jornalismo e o partido. Fortemente comprometido na construção do Partido Bolchevique, publicou sobretudo duas grandes obras teóricas. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia, de 1899, e Materialismo e empirocriticismo, de 1909.

Seus trabalhos referenciais são, sobretudo, opúsculos destinados à solução de problemas políticos candentes conjunturais. O que fazer? [1902]; O Imperialismo, fase superior do capitalismo [1917]; O Estado e a Revolução [1918]; Esquerdismo, a doença infantil do comunismo [1920], entre tantos outros. Na apresentação da segunda edição do Desenvolvimento do capitalismo na Rússia, de 1907, portanto, dois anos após a Revolução de 1905, reafirmou que, em forma “absolutamente irrefutável”, a “revolução na Rússia” seria “uma revolução burguesa”.

Proposta incorreta, ainda que abraçada pela totalidade do Partido Social-Democrata Russo. Lênin propôs também uma “ditadura democrática dos operários e camponeses”, sempre nos quadros de revolução democrático-burguesa. Em Balanço e Perspectivas, de 1906, apoiado nos ensinamentos da Revolução de 1905, na qual participara com destaque, León Trotsky resolvera corretamente a charada da revolução russa. Defendeu que as tarefas democráticas seriam completadas no bojo da revolução socialista. A revolução russa não devia e não podia ser uma “revolução burguesa”. [TROTSKy. 1906.]

Rompendo os consensos

Em 1917, Lênin superou a proposta do marxismo russo de revolução democrático-burguesa com suas célebres Teses de abril, de 1917, ao propor a necessidade urgente do assalto ao poder pelos trabalhadores. A grande diferença entra a proposta precoce de Trotsky, de 1906, e a tardia de Lênin, de 1917, é que este último apresentou-a a um partido aguerrido e disciplinado, de milhares de militantes, que o reconhecia como referência máxima.

Como proposto, V. Lênin participou, com destaque, da tendência marxista revolucionária europeia minoritária, que se avolumaria, após 1917, dando origem à III Internacional. Ela se opunha ao oportunismo, ao colaboracionismo, ao nacionalismo, etc. A grande contribuição inovadora de V. Lênin foi a teoria de partido proletário de combate, formado por revolucionários profissionais, saídos das fileiras da vanguarda proletária, regido pelo centralismo democrático.

A organização celular, sobretudo nos locais de trabalho, informaria, alimentaria e controlaria a direção. Mas além de expressar o mundo do trabalho, segundo Lênin, era imprescindível a produção de uma visão de mundo revolucionária, no contexto de um debate amplo e livre, em geral apresentado nos jornais operários, em opúsculos, em livros, em conferências.

O partido e os trabalhadores

A proposta leninista, comprovada pelo sucesso em 1917, fora, anteriormente, por longos anos, criticada duramente por Rosa Luxemburgo, Leon Trotsky e outros marxistas revolucionários. Eles defendiam o espontaneísmo das massas, que se mostrou insuficiente, e temiam a substituição do mundo do trabalho pelo partido, que se realizou quando do refluxo da revolução mundial e da interrupção do Partido Bolchevique como vaso comunicante de um proletariado semi-inexistente.

A história ensinou que quando inexiste ou recua o enraizamento de um partido revolucionário nas classes trabalhadoras, as múltiplas possibilidades de degeneração tornam-se um grave perigo – oportunismo, burocratismo, sectarismo, esquerdismo etc.

A necessidade do partido leninista jamais foi específica à Rússia ou a espaços sociais de “sociedade civil” pouco desenvolvida, como proposto. [MAESTRI 2021] No Ocidente e Oriente, inúmeras revoluções fracassaram por não contarem com um partido no molde leninista adaptado à sua realidade. Como nos casos da Bolívia, nos anos 1950; do Brasil, em 1964; do Chile, em 1973, para ficarmos na América do Sul. E, em todos esses países, havia organizações “marxistas-leninistas” que entravaram e não impulsionaram a revolução.

Marx e Lênin

A produção de Lênin é colossal, no valor e na extensão, e foi valorizada pela vitória da revolução russa. Lênin ampliou e precisou questões esboçadas por Marx, Engels e outros marxistas revolucionários que o antecederam. Mas o leninismo jamais foi a proposta extensão conclusiva do marxismo na era do capital monopolista.

Também não há sentido em aproximar a obra de Lênin à dimensão da fundação por Karl Marx do socialismo científico e sua dissecação do modo de produção capitalista. Obra que, certamente, não esgotou e jamais pretendeu esgotar o objeto de sua análise e seus desdobramentos posteriores. A produção de Marx valorizou-se devido ao conteúdo, mesmo sem vitória referencial dos trabalhadores enquanto viveu.

É sempre arriscado propor desdobramentos de fatos jamais ocorridos. Entretanto, parece claro que a derrota da Revolução de 1917 teria redimensionado Lênin como teórico da revolução, sem impugnar seu valor. O que ocorreu, parcialmente, após a destruição da URSS, desastre que, paradoxalmente, permite, com a perda de força do culto estatal a Lênin, melhor e mais precisa avaliação do “leninismo”.

Obra imanente

E, se Lênin elucidou questões que não haviam se apresentado durante a vida de Marx e de Engels, ou que não tinham sido por eles amadurecidas, ele não pode fazer o mesmo com sucessos essenciais da luta de classes dos últimos cem anos, que exigem investigação empírica e correto tratamento metodológico. A tal de análise concreta de situação concreta. A produção de Lênin apresenta, quando muito, orientação sobre fenômenos complexos que se seguiram a sua morte, sobre os quais não pode refletir e discutir com seus pares.

Entre os importantes fenômenos sobre os quais Lênin não pode se debruçar encontram-se o refluxo da revolução na Europa; a consolidação do fascismo e o surgimento do nazismo; a revolução chinesa em uma nação camponesa; a construção do socialismo em nações isoladas e seus consequentes desastres; a destruição da III Internacional etc. [FRANK, 1979.] E, com destaque, a gênese e consolidação dos fenômenos burocráticos e estalinistas que levaram a destruição da URSS. Questão abordada em forma detalhada por León Trotsky, o que explica os ataques que ele sofre, ainda hoje, de parte dos neoestalinistas. [TROTSKY, 1974.]

As avaliações de Lênin de fenômenos por ele analisado que se perpetuaram devido à não superação do modo de produção capitalista devem ser contextualizadas e conhecer as mediações necessárias ao serem utilizadas na crítica de fatos hodiernos. Houve modificações enormes na sociedade e na produção capitalistas nos últimos cem anos. [MANDEL, 1976.]

Soluções certas e acabadas

O que nos exige, na análise de fenômenos atuais, estudos detidos e aprofundados, sobre eles, interpretados sempre segundo o método materialista-histórico, servindo os textos referenciais do marxismo apenas como apoio, já que incapazes de nos entregar soluções certas e acabadas. Recentemente, o Partido Comunista da Grécia, “marxista-leninista” em interessante processo de auto-crítica, lembrava que: “[…] quando nos referimos a citas para poder entender su significado, hay que saber cuándo se dijeron, dónde y por qué motivo. Esto no significa que estamos obligados a estar de acuerdo con todo lo que escribió o dijo una figura revolucionaria.” [KKE, 4/11/22, MAESTRI, 11.03.2021.]

O marxismo revolucionário é essencialmente um método em aberto, direcionado para uma práxis comprometida com a emancipação social, através sobretudo da luta dos oprimidos, da qual, cada vez mais, a humanidade depende, para não se afundar de vez em uma ordem neofascista com um perfil que já começa a se delinear. Vivemos hoje uma crescente crise mundial sanitária, ambiental, ecológica, etc. que, por primeira vez na história, ameaça a própria sobrevivência do gênero humano.

O mundo do trabalho é o único capaz de dirigir a efetiva superação das contradições patológicas do modo de produção capitalista em crescente senilidade. Entretanto, ele se encontra atualmente fortemente debilitado na consciência e na organização, sem termos sequer um núcleo político revolucionário significativo fortemente enraizado no mundo do trabalho.

Avançar em direção da unificação dos comunistas revolucionários de todas as pelagens não nos garante a solução do impasse histórico que vivemos. Mas é um passo adiante no apoio à retomada da centralidade dos trabalhadores, no Brasil e no mundo. Não é o momento, portanto, de se construir e se reconstruir áreas de conforto, de todos os sabores, em torno de cercadinhos que reunam os fiéis de nosso credo em eterna auto-contemplação.[1]


Referências

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CANARY, Henrique. O partido dos fuzilados: Stalinismo e memória de esquerda. Esquerda On-Line, 21/11/2019.

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TROTSKY, L. I. Comment la revolución s’est armée. Écrits militaires. Paris: l’Herne, 1968.

Nota


[1] Agradecemos a leitura da linguista Florente Carboni e da historiadora Nara Machado.


Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.

Mário Maestri

Historiador, autor de: Revolução e contra-revolução no Brasil. 1530–2018.

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