Precisamos falar da tal transição energética

Quem acompanha o debate sobre mudanças climáticas certamente já se deparou com as discussões a respeito do assim chamado Green New Deal. Entre as diversas proposições que figuram nessa agenda de políticas ecológicas/climáticas, a que ocupa posição de destaque é a necessidade de realizar uma transição energética global ao longo das próximas décadas de modo que conseguíssemos alcançar a neutralidade global de carbono até 2050, meta preconizada pelo IPCC.

Observando panoramicamente as reflexões em torno do Green New Deal, nota-se com facilidade o predomínio de um tipo de perspectiva que não tem qualquer horizonte de ruptura com a sociedade capitalista e sua dinâmica destrutiva. No entanto, alguns de nossos camaradas se aproximam desse debate procurando tenciona-lo ao máximo, disputando rumos e imaginário, tendo como horizonte explícito a luta por uma transição ecossocialista. Receio, porém, que nós, ecossocialistas, estejamos abordando a questão a partir de um enquadramento que não nos proporciona possibilidades de sucesso. É isso que quero discutir na coluna deste mês.

Em geral, reconhece-se de partida que a estrutural inviabilidade ecológica que marca o nosso tempo só poderia ser equacionada com a superação do capitalismo. Isto é, só poderia encontrar uma resolução de fato a partir de um processo revolucionário. No mesmo fôlego, contudo, também é apontado que as condições para tal processo revolucionário seriam, na melhor das hipóteses, bastante rarefeitas. Quando esse raciocínio é colocado no quadro da discussão energética ficamos diante de um entendimento que tem sido algo frequente entre nós. Esse entendimento é que a transição energética ao menos preservaria as condições materiais de vida (inclusive a vida em sociedade) no planeta até que as condições para um processo efetivamente revolucionário se apresentem, num futuro indeterminado. A necessária transição energética é compreendida como um conjunto articulado de mudanças, como reforma no interior do sistema. O pressuposto lógico para um raciocínio como esse, portanto, é que a transição energética deve ser uma meta alcançável ainda no capitalismo. 

Colocando em outros termos, o objetivo da transição energética é, ao fim e ao cabo, um capitalismo descarbonizado, à espera da revolução. Essa formulação é produto de um beco sem saída que, inadvertidamente, armamos para nós mesmos, geralmente logo no início de nossas reflexões. Notem, quando se afirma logo de cara que não existe no horizonte a possibilidade de um processo revolucionário, todas aquelas alternativas que só se tornariam viáveis num processo como esse são interditadas de saída. Ao mesmo tempo, como procuramos ser rigorosos com o melhor da ciência disponível, também há, ao mesmo tempo, o reconhecimento explícito de que a descarbonização é urgente e incontornável. Com isso, arma-se a arapuca: estando a via revolucionária abstraída da reflexão, resta apenas a alternativa de conceber formas de descarbonização no capitalismo. Como, no entanto, o capitalismo não pode se reproduzir em escala decrescente, a única forma concebível de realizar a descarbonização é fazendo uma suposta transição energética, apoiada em ganhos de eficiência e ampliação das fontes renováveis na matriz energética mundial.

Ou seja, se precisamos descarbonizar e supostamente não temos condições de derrubar a ordem vigente, então é preciso descarbonizar ainda no capitalismo. Além disso, se no capitalismo não é admissível contrair a escala de nosso consumo de energia, então se tornaria necessário limpar o nosso consumo de energia de seu conteúdo de carbono. Isto é, seria necessário fazer a tal transição energética.

Percebem como, desembrulhada dessa forma, a agenda da transição energética tem um “quê” de capitalismo verde? Ora, se supomos ser possível limpar nossa matriz energética a ponto de obter o nível necessário de descarbonização, então estamos supondo que, ao menos do ponto de vista energético, o capitalismo pode ser limpo. Temos que rejeitar esse resultado. E não se trata de uma rejeição a priori. A crítica ecológica que o marxismo pode dirigir ao capitalismo demonstra muito solidamente que esse sistema não pode ser verde. Sendo assim, mesmo diante de um obstáculo que parece intransponível, nós precisamos ser consequentes com essa demonstração e concluir que não existe uma alternativa de desenvolvimento com esses contornos que não esteja para lá de um processo revolucionário.

É compreensível que diante da urgência e da magnitude do desafio, as reflexões práticas deslizem de volta para o rol de iniciativas que já são mais ou menos conhecidas, que já estão, em alguma medida, em movimento. Mas notem, é preciso ter clareza que não apenas as soluções via mercado são “capitalismo verde”. As soluções que se pretendem realizáveis sem que se tenha aberto um processo histórico de ruptura com o sistema são todas de capitalismo verde! Isto é, todas veiculam, ainda que não queiram, a ideia de que um capitalismo melhor do que este atual é possível. No caso específico da transição energética, um capitalismo descarbonizado ou em vias de descarbonização. Todavia, a referida crítica marxista à inviabilidade ecológica do capitalismo1 nos permite entender que as iniciativas em busca da dita transição sequer conseguem conter o ímpeto destrutivo de nossas atividades enquanto elas estiverem sujeitas ao metabolismo social correspondente ao capital.

Nada disso é por acaso. Esse modo de produção insano e febril que chamamos de capitalismo é absolutamente dependente de energia barata e abundante. Sem ela, as engrenagens da produção pela produção emperram e a dinâmica da acumulação engasga. A suposição de que passos em direção a uma transição energética possam ser dados ainda no capitalismo perde isso de vista. Seus proponentes sequer se dão conta, por exemplo, que toda a oferta de energia renovável de hoje – incluindo aquela proveniente das centenas de centrais nucleares espalhadas pelo mundo – seria suficiente para atender apenas a demanda de energia do início da década de 1950.

Claro, apesar dessa rápida crítica feita aqui, que nos levou à conclusão de que a ideia de transição energética tem um conteúdo semelhante a outras proposições de capitalismo verde, precisamos sublinhar que essa proposta, quando impulsionada por ecossocialistas, traz uma forma crítica e questionadora. Fernandes, por exemplo, diz que “A lógica deve ser de descarbonizar rapidamente, com foco no sistema público, combatendo a privatização a todo custo, e fortalecendo os movimentos e organizações populares”2. Ok, agora percebam, se essa agenda realmente desafia a lógica do capital, então ela é parte de uma revolução (caso pretenda desafiar o capital de maneira bem sucedida), e não parte de um processo que se restringe aos parâmetros reprodutivos do capitalismo. Mas, caso contrário, essa agenda desafia apenas a subjetividade própria do capital, a racionalidade típica do capitalismo. E aí ela será realizável apenas na medida em que for despida de seus potenciais disruptivos. E se ela for despida de seus potenciais disruptivos ela não poderá mais entregar os resultados que pretendia entregar, independentemente dos objetivos e ambições iniciais.

Correndo o risco de simplificar excessivamente o difícil e complexo tema da subjetividade, pensem o seguinte. A todo momento, há uma quantidade e variedade imensa de ideias e concepções em circulação. Algumas são conciliáveis entre si, outras inconciliáveis. Algumas apreendem melhor o funcionamento real das coisas, outras aprendem de maneira incorreta ou inconsistente. Algumas serão mais verdadeiras que outras. Entre essa multiplicidade de ideias, circulam as ideias que criticamos e as ideias que defendemos. A ideologia produtivista circula, assim como concepções relacionadas a uma vida simples ou ao bem viver. A obsessão pelo crescimento circula, assim como proposições relativas a uma abundância qualitativa. A ética perdulária circula, assim como as ideias de consumo consciente. 

Claro, não é difícil perceber que embora todas essas ideias circulem, algumas permanecem à margem enquanto outras são persistentes, são dominantes. Quando disputamos imaginário, precisamos tomar cuidado para não ceder inadvertidamente à tentação de achar que a hegemonia de certas ideias depende de sua qualidade ou, pior, de achar que seria possível alçar um outro conjunto de valores à posição dominante por meio de algum processo de convencimento. Marx sabia que as coisas não funcionam assim. Lembrem do famoso trecho de A ideologia alemã, em que ele e Engels afirmam que “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante”. 

Trazendo essa intuição para o nosso tema, é preciso ter clareza que a racionalidade destrutiva predominante não é predominante por acaso. Ela é predominante porque é ela que espelha mais perfeitamente a lógica real de reprodução da sociedade capitalista, qual seja, a acumulação de capital a qualquer custo e a colonização de todos os fios do tecido social pela lógica do capital. 

O desafio posto, portanto, é que a disputa do imaginário é necessária, porém insuficiente. Para subverter a predominância das ideias produtivistas, expansionistas, perdulárias, utilitaristas, carboníferas etc. é incontornável desafiar a própria sociedade que põe e pressupõe a ampla vigência dessas ideias. No entanto, o tipo de enquadramento que temos dado à questão impede que nos façamos um questionamento crucial: dado que a descarbonização é necessária e urgente; dado que ela não é obtenível no capitalismo; e dado que, mesmo em um cenário revolucionário, haveriam restrições técnicas que tornariam a descarbonização muito mais lenta do que o necessário; o que tende a acontecer? Isto é, dado que a descarbonização provavelmente não acontecerá a tempo de impedir uma catástrofe, quais serão as características mais ou menos previsíveis dessa catástrofe? Como preparamos e organizamos respostas a ela?

Referências

  1. Na minha página da Academia.edu é possível encontrar o que tenho escrito a esse respeito: https://uff.academia.edu/EduardoSáBarreto
  2.  Cf. https://jacobin.com.br/2020/07/ecossocialismo-a-partir-das-margens/.

Eduardo Sá Barreto

Professor de Economia, pesquisador do NIEP-Marx e autor do livro "O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas"

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