PAC para tolos

Anunciado com pompa e circunstância, em evento de gala no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o Novo Programa de Aceleração do Crescimento – PAC III – foi apresentado pelo presidente Lula como marco inicial de seu novo governo. Os primeiros sete meses de 2023 teriam sido apenas uma transição para os novos tempos. Os que esperarem uma mudança qualitativa nos rumos da economia brasileira ficarão frustrados.

Sem reverter a ofensiva liberal iniciada por Collor de Mello, que se aprofunda há três décadas, sem questionar a política de Metas Inflacionárias de FHC, que já dura duas décadas, e sem revogar o princípio de teto para os gastos públicos e a autonomia do Banco Central, estabelecidos por Temer e Bolsonaro, o governo Lula encontra-se perfeitamente enquadrado nos parâmetros do neoliberalismo implantado pelo Plano Real e radicalizado após a nova rodada de reformas liberais iniciadas no segundo governo Dilma Rousseff.

A forma espetaculosa de divulgação do PAC contrasta com a ausência de estudo circunstanciado que fundamente seu conteúdo. Nas plataformas virtuais do governo federal encontra-se apenas uma rudimentar lista de intenções de investimentos públicos e privados, sem nenhuma base empírica e argumentação teórica sobre sua necessidade e viabilidade econômica.1

A divulgação do PAC pelo presidente Lula alude à repetição de um suposto neodesenvolvimentismo e promete um novo ciclo de crescimento. Propaganda enganosa. Trata-se de um estratagema de marketing para exaltar a mitologia do “espetáculo do crescimento” e camuflar a absoluta continuidade da política econômica.2 Na realidade, nem a expansão da economia brasileira nos primeiros governos petistas – abaixo da média latino-americana – pode ser atribuída aos PAC I e II, nem o PAC III tem a menor condição de reverter a tendência à estagnação que mantém a economia brasileira prostrada desde 2014.

A associação do crescimento da economia brasileira entre 2007 e 2014 aos investimentos definidos no PAC é um engodo. O Tribunal de Contas da União constata que apenas 9% e 26% dos gastos previstos no PAC I (2007-2010) e no PAC II (2011-2014), respectivamente, foram de fato realizados.3 O crescimento desse período foi provocado fundamentalmente pela presença de uma conjuntura internacional particularmente favorável à expansão das exportações e ao financiamento externo barato.4

Após décadas de desindustrialização e especialização regressiva na divisão internacional do trabalho, a economia brasileira já não dispõe de mecanismos endógenos de crescimento. Como não se vislumbra a superação da crise capitalista que paralisa a economia mundial e deprime o comércio internacional, não há motivo para supor mudanças substanciais no ritmo de expansão do nível de atividade.5

Para além da ardilosa retórica dos arautos do PAC III, basta um rápido olhar crítico sobre as parcas informações disponibilizadas pelo governo federal para constatar que o PAC III dá continuidade ao modelo neoliberal 3.0 implantado por Temer e Bolsonaro sob os auspícios da “Ponte para o Futuro”, um programa ultraneoliberal de redução da presença do Estado na economia e progressiva mercantilização dos serviços públicos.6

A suposta volta do protagonismo do Estado na indução do desenvolvimento econômico não coaduna com o predomínio absoluto dos investimentos privados – 57% do total previsto no PAC III – nem com o reconhecimento explícito de que foram priorizadas obras paralisadas e demandas que respondam aos “anseios das lideranças locais” (replicando assim práticas espúrias do orçamento secreto). O pretendido protagonismo do planejamento público compatibiliza-se menos ainda com o fato de que o gasto orçamentário anual previsto no PAC – em torno de R$ 92,8 bilhões – é 7,5 vezes inferior às despesas de juros com a dívida pública nos últimos doze meses.

A preocupação com a redução das desigualdades sociais e a chamada “inclusão social” é meramente retórica e não tem consequência prática. O PAC III prevê investimentos em saúde e educação da ordem de R$ 30,5 e R$ 45 bilhões, respectivamente, 1,8% e 2,6% do total dos investimentos. Estes valores situam-se bem aquém do estipulado até mesmo para os gastos com defesa (R$ 53 bilhões), cuja importância estratégica para a sociedade brasileira é indefensável.7

O mesmo descaso vale para o cuidado com a sustentabilidade ambiental e a transição energética, teoricamente dois eixos centrais do PAC III. Os gastos com transporte rodoviário, aeroportos e portos alcançam cerca de R$ 257 bilhões – 15% do total.8 Os gastos previstos com transição e segurança energética no valor de R$ 540,3 bilhões serão destinados majoritariamente (62%) a combustíveis fósseis. Em outras palavras, o petróleo fica com 20% de todos os investimentos do PAC III, enquanto a produção de baixo carbono com irrisórios R$ 26,1 bilhões (metade dos recursos destinados aos militares).9

A falta de substância do PAC III como política de planejamento de investimento é apenas expressão da impotência do governo de frente amplíssima para enfrentar a ordem neoliberal. A ausência de coragem para romper a blindagem institucional que submete a sociedade aos imperativos dos negócios pelos negócios transformou o Brasil numa economia reflexa. Sem recuperar o controle sobre os centros internos de decisão e superar o processo de deterioração do nível tradicional de vida dos trabalhadores, é uma ingenuidade imaginar que se possa revigorar o mercado interno, interromper a desindustrialização e sobrepujar a tendência à estagnação que bloqueia a economia brasileira há quatro décadas. 

A estratégia de combater a escalada autoritária com medidas cosméticas e conchavos palacianos, esquivando-se de enfrentar as causas estruturais responsáveis pelo avanço galopante da barbárie, é uma irresponsabilidade. A dose mínima do veneno não evitará que as vítimas do neoliberalismo busquem novos caminhos, para escapar de uma existência infernal.

A dança imóvel da frente amplíssima é um tiro no pé. Frustradas com promessas de melhoria nas condições de vida que nunca se cumprem, as massas populares, na ausência de alternativa à esquerda da ordem, ficarão sujeitas à manipulação das forças reacionárias que buscam soluções por fora do estado de direito para a crise política e institucional que se aprofunda desde as Jornadas de Junho de 2013. Sem ruptura radical com o neoliberalismo, não haverá mágica capaz de evitar a escalada autoritária.

Referências

  1. Ver https://www.gov.br/casacivil/novopac. Para uma didática síntese crítica do PAC, consultar artigo de Paulo Kliass, “É preciso mais do que trilhão”, in: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/novo-pac-e-preciso-mais-que-trilhao/
  2. Para uma crítica do chamado neodesenvolvimentismo, ver Sampaio Jr., P.S.A. “Desenvolvimentismo e neodesenvolvimentismo: tragédia e farsa”, Revista Serviço Social e Sociedade; (112): 672-688, out.-dez. 2012, in: https://www.scielo.br/j/sssoc/a/XSSKWS3N6nGBxSfFwy7cvTF/?lang=pt
  3. Novo PAC: Lula lança programa nesta sexta, e governo prevê R$ 1,68 trilhão em investimentos, veja em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/08/11/novo-pac-lula-lanca-programa-nesta-sexta-e-governo-preve-investir-r-60-bi-por-ano.ghtml
  4. Para uma análise do desempenho da economia brasileira durante os governos petistas, consultar Oliveira, F.A. Governo Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2019. Ver também Gonçalves, R. Balanço crítico da economia brasileira nos governos do Partido dos Trabalhadores, Revista SEPLA, São Paulo, nº 37, p. 7-39, janeiro 2014.
  5. Para uma análise sobre as perspectivas da economia mundial, ver GEFF, Notas sobre a conjuntura econômica – agosto 2023. In: https://contrapoder.net/colunas/notas-sobre-a-conjuntura-economica-agosto-2023
  6. Uma ponte para o futuro, veja em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3359700/mod_resource/content/0/Brasil%20-%20Uma%20ponte%20para%20o%20futuro%20Fundação%20Ulysses%20Guimarães.pdf
  7. Novo PAC: investimento de R$ 30,5 bilhões na Saúde ampliará atendimento pelo SUS, veja em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/novo-pac-investimento-de-r-30-5-bilhoes-na-saude-ampliara-atendimento-pelo-sus
  8. Novo PAC define prioridades para os próximos anos e garante mais recursos aos transportes, veja em: https://www.gov.br/transportes/pt-br/assuntos/noticias/2023/08/novo-pac-define-prioridades-para-os-proximos-anos-e-garante-mais-recursos-aos-transportes
  9. 2/3 do investimento em transição energética do PAC vão para petróleo e gás, veja em: https://climainfo.org.br/2023/08/15/2-3-do-investimento-em-transicao-energetica-do-pac-vao-para-petroleo-e-gas/

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